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O empreendedorismo pode diminuir a violência dentro (e fora) das cadeias

Privatizar presídios ou endurecer a legislação e dar liberdade aos policiais para atirar em suspeitos não parece ser a solução

Por Ricardo Anderáos*

query_builder 12 jun 2019, 21h20

*Ricardo Anderáos, Vice-Presidente de Operações do Instituto Humanitas360

Motins penitenciários, como os que se repetem em Manaus, não devem nos preocupar só por razões humanitárias. Na verdade, representam uma ameaça à segurança de cada um de nós. Os muros das prisões já não nos separam da criminalidade. Presídios superlotados e violentos amplificam a degradação de quem vive no cárcere, que transborda para as ruas na forma de crime organizado. Privatizar presídios não parece solução, já que o palco dos massacres em Manaus é gerido por uma empresa privada. A situação é complexa e não aceita soluções simplistas. Iniciativas com bons resultados concretos, como as Apacs e cooperativas de detentos, pipocam em vários pontos do país, mas carecem de apoio dos governos estaduais, responsáveis pelas políticas de segurança pública.

Endurecer a legislação criminal e dar à polícia mais liberdade para atirar em suspeitos, como propõe o ministro Sergio Moro, só piora o quadro. Isso é o que vem sendo praticado há décadas no Brasil, da Lei de Crimes Hediondos, de 1990, à Lei de Drogas de 2006. Como consequência, a população carcerária explodiu. Em 1990 o país tinha 90.000 presos. Hoje, são cerca de 730.000. O resultado é uma epidemia de violência que toma conta de nossas ruas. O Brasil tem hoje cerca de 60.000 homicídios/ano, o maior número do planeta. Das cinquenta cidades mais violentas do mundo, quinze estão aqui, segundo o Conselho Cidadão para a Segurança Pública e Justiça Penal do México. O número de pessoas mortas por policiais no país saltou de 3.300, em 2015 para 6.100, em 2018, segundo números do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

A ligação entre encarceramento em massa e aumento da violência é comprovada pelo fato de que é dentro das prisões superlotadas que as facções criminosas nascem e crescem, projetando seus tentáculos para fora dos muros. O Primeiro Comando da Capital (PCC) surgiu na Casa de Custódia de Taubaté (SP) meses depois do massacre do Carandiru, de 1992. Seus objetivos eram combater os maus-tratos e evitar novos massacres. Depois, passaram a apoiar ex-detentos fora da prisão e a utilizar sua mão de obra ociosa na escalada de crimes, já que são quase ínfimas as possibilidades de trabalho para egressos.

(Ueslei Marcelino/Reuters)

A Família do Norte, pivô dos massacres em Manaus, criada em 2007, e o Comando Vermelho carioca, surgido em 1989, tiveram trajetórias semelhantes. A fonte do seu poder dentro da cadeia é o apoio que dão aos detentos, ante autoridades judiciárias e carcerárias que nem sempre trabalham para a volta dessas pessoas à vida em sociedade. Às vezes tratados como animais, os detentos respondem de maneira cada vez mais feroz. Para completar, quase 40% dos 730.000 presos brasileiros nem sequer foram julgados. São os chamados "presos provisórios".

Esse "estado de coisas inconstitucional", como bem definiu o STF, é turbinado pela política de drogas, causa maior do encarceramento em massa, fechando o círculo vicioso que faz das ruas um espelho da violência no cárcere. Segundo o Ministério da Justiça, 33% dos detentos no país cometeram pequenos delitos de tráfico. Entre as mulheres, o número sobe para 62%. Antes da Lei de Drogas de 2006, só 8,7% dos detentos eram traficantes. Ao não especificar a quantidade que configura tráfico, essa lei deixa a decisão nas mãos dos PMs. Jovens brancos de classe média flagrados em bairros nobres raramente são presos. Jovens negros das periferias quase sempre o são, independentemente das quantidades que estejam portando.

Ao pisarem na penitenciária, pequenos traficantes são compelidos pelos outros detentos a se filiar a uma facção. Assim, cada novo preso é mais um soldado que a sociedade entrega de mão beijada para essas organizações. O Brasil gasta, segundo dados do Orçamento federal, cerca de 20 bilhões de reais por ano só na manutenção dos detentos. Dinheiro dos nossos impostos, convertido em ferramenta de alistamento para as facções.

Entretanto, há iniciativas de sucesso nesse cenário de catástrofe. Uma das mais antigas é a metodologia Apac (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados), que cria presídios sem policiais e carcereiros. Neles, as chaves das celas ficam em poder dos próprios detentos, corresponsáveis por sua recuperação. Seus pilares são o envolvimento direto das famílias dos condenados e o uso da religião como apoio na jornada dos condenados rumo à liberdade. Criadas em 1972 em São José dos Campos (SP) pelo advogado Mário Ottoboni, as Apacs têm atualmente cerca de cinquenta unidades em cinco estados (Minas, Maranhão, Paraná, Rondônia e Rio Grande do Norte) e atendem 5.000 detentos.

A mais recente inovação no setor foi criada numa penitenciária feminina de Belém do Pará há quatro anos, por sua diretora, Carmen Gomes. Para remunerar o trabalho voluntário das presas na produção de artesanato, ela registrou uma cooperativa social que tem as detentas como sócias. Das 250 mulheres que passaram por essa cooperativa, nenhuma voltou ao cárcere. O indicador motivou o Instituto Humanitas360, onde trabalho, a desenvolver pilotos em duas penitenciárias de Tremembé (SP), a partir de acordo tácito com a Secretaria de Administração Penitenciária paulista, no governo Alckmin.

"Geração de renda para detentos reunidos em cooperativas sociais traz variáveis positivas para a conta do custo mensal de um preso. Já a privatização dos presídios é inegavelmente mais cara para a sociedade."

Em um ano e meio de trabalho, o H360 investiu 1 milhão de reais em recursos próprios no projeto. As possibilidades de inovação em políticas de inclusão produtiva permitiram a aproximação com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que firmou parceria com o instituto para levar a experiência a outros estados. No mês passado, a Secretaria de Administração Penitenciária do Maranhão e o Tribunal de Justiça local acordaram, com o CNJ e o H360, a expansão do projeto para o Complexo Penitenciário de São Luís.

Apesar disso, o governo de São Paulo acaba de suspender temporariamente a operação das cooperativas nos presídios de Tremembé. O projeto continua, por ora, apenas com cooperadas que já saíram da prisão. Sua principal inovação é dar ao cooperado a perspectiva de renda depois do cárcere, construindo uma alternativa real à reincidência criminal. A administração Alckmin não formalizou o termo de parceria com o instituto, e o governo atual faz uma interpretação restritiva da Lei de Execuções Penais, que obriga o pagamento de um salário mínimo a cada detento contratado para trabalhar para uma empresa comercial no cárcere. Acontece que a cooperativa social faz dos detentos empresários, e não funcionários. Assim, o governo Doria fecha espaço para a inovação, uma de suas bandeiras de campanha. Afirmar que essa iniciativa contraria a lei, como faz o governo paulista, significa dizer que o governo Alckmin permitiu, por mais de um ano, uma atividade ilícita dentro de seus presídios.

Qual a lógica por detrás de tudo isso? A matemática, pelo menos, é clara. O custo mensal de um preso em penitenciária pública é de pouco mais de 2.000 reais. Em uma Apac, não chega a 900 reais. Geração de renda para detentos reunidos em cooperativas sociais traz variáveis positivas a essa equação. Já a privatização dos presídios é inegavelmente mais custosa para a sociedade. O complexo prisional Ribeirão das Neves, erguido e administrado pelo consórcio GPA (Gestores Prisionais Associados), custou 279 milhões de reais (em valores de 2012, não atualizados), e onera em 3.500 reais por mês para cada detento os cofres do Estado de Minas Gerais. No presídio privatizado de Manaus, palco dos recentes massacres, cada detento custa 4.700 reais mensais, segundo o Tribunal de Contas do Amazonas.