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A herança da mulher-tribo

Marielle representa o anseio de nossa sustentabilidade como ser humano dentro de um sistema perverso. Ela é a síntese que o país precisa para sair desse imbróglio de suspensão de ética, de omissão e sadismo do Estado sobre a população

Por Elisa Lucinda*

query_builder 26 mar 2018, 15h50

*Elisa Lucinda é poetisa, jornalista, cantora e atriz brasileira

Há pessoas que sozinhas são multidão, um coletivo. A exemplo do conceito de coletivo na língua portuguesa, que é um singular que representa plurais, assim são determinados seres que, por ancestralidade, por empatia, pelo seu olhar de compaixão à sua volta, embora singulares, representam plurais. Assim como a palavra cardume representa muitos peixes num rio ou num mar, uma pessoa pode representar muita gente em pouco tempo de vida num país.

Nasci e fui criada numa casa católica, estudei em colégio de freiras até a universidade. Apesar de meu pai ser advogado e ter um escritório de prestígio, de ter sido secretário do Estado do Espírito Santo e ter alçado ótimos cargos na Superintendência da Vale do Rio Doce, ele dedicou sua vida a defender pessoas pobres, excluídas, sem acesso à Justiça, aquela dita cega e que é propagada por todos como a de todos. Na escola e na igreja falava-se com muito amor dos pobres, dizia-se que Jesus nascera num estábulo, que tal manjedoura sobre o feno tinha sido escolhida por Deus para provar ao mundo que a riqueza de um messias era outra, não essa que conhecemos e pela qual o mundo tanto mata. Na minha casa não se falava de direita ou esquerda quando éramos pequenos, mas meus pais sempre nos faziam crer que quando chovia, por exemplo, havia quem não tivesse casa ou vivesse em barracos cujo telhado furado era de zinco, por onde entrava água e molhava tudo, destruindo os poucos bens, enquanto nós curtíamos o seu barulhinho de dentro de nossa segura e confortável casa. Minha mãe, uma professora de ioga ecumênica, entoava o violão e cantava para nós: “Para mim a chuva no telhado é cantiga de ninar, mas, para o pobre meu irmão, para ele a chuva é fria e vai entrando em seu barraco e desmancha o barracão...”.

Então cresci sabendo que havia gente muito desprovida de tudo e outras pessoas com muito e que não era certo. Parecia uma matemática que falhava na conta de dividir. A ideia do meu pai era a de uma justiça dentro do nosso cotidiano, exercida e aplicada no varejo: fazer estudar as pessoas que trabalhavam em nossa casa, que conviviam com a gente; era sempre um espalhamento de um benefício coletivo que mais tarde eu entendi e todos nós identificamos como dignidade. Para todos.

Pois bem, num país cujos habitantes sofrem tanto pelo excesso de tributos cobrados que são retribuídos em forma de abandono e descaso por parte do Estado, num país em que bandidos, muitos políticos, mais a ideologia da corrupção, muitos juízes e alguns policiais formam uma perigosa e letal mistura, num país onde se morre nas filas da saúde, que tipo de político é o mais desejado? Que virtudes queremos nele? O que esperamos ao escolhermos para nos representar? O que você responderia?

Marielle Franco, vereadora do PSOL morta no Rio de Janeiro (Márcia Foletto/Agência O GLobo)

Certamente, nas respostas dadas pela avassaladora maioria dos brasileiros conteria conhecidos e novos ingredientes, mas todos girando em torno de uma só baliza — a do planeta que atende pelo nome de dignidade humana. Para significar e sintetizar esse político comprometido com a população e que represente realmente a todos, existiu e existe Marielle. Com o perfil dos anseios da nova política querida pelos brasileiros, chegamos facilmente à Marielle. Ela que não teve em vida, na sua curta, potente e frutífera vida, a visibilidade que está tendo a sua morte. Por que será?

A verdade é que o tiro que atingiu a mulher-tribo atingiu todo homem e toda mulher de bem. Desde então, cada reitor, professor, juiz, profissional deste país que tenha um olhar para o seu vizinho e para o bem de todos está ameaçado. Quando querem matar Marielle, o que querem matar? Quando matam Marielle, o que pensam que estão matando? O que querem atingir? Sabemos que ali tínhamos a voz de quem raramente é escutada e escutado. Uma mulher, negra, lésbica, socióloga, formada em administração pública, parlamentar honesta, protagonista de uma campanha transparente de financiamento coletivo e espontâneo de seus eleitores, que cumpria o dever de prestar contas semanalmente do seu mandato limpo, em praça pública. Um superexemplo!

A mulher que venceu as impossibilidades e driblou quanto pôde as adversidades, que entrou na vida pública a partir da bala “perdida” que tirou a vida de uma amiga e que se pôs na linha de tiro para defender todos nós. Essa mulher representa o anseio de nossa sustentabilidade como ser humano dentro de um sistema perverso e, ao mesmo tempo, ela é a síntese da qual o país precisa para sair desse imbróglio de suspensão da ética, de omissão e sadismo deste Estado sobre sua população.

Nessa confusão essa mulher se confirma como ouro; ela é tudo que a gente quer. Nós não queremos uma mulher que lute por todos? Marielle. Se queremos creches para os nossos filhos, então nós também queremos uma mulher que lute por aquelas que não trabalham porque não têm onde deixar as crianças. Quem lutaria por elas? Marielle. Nós não queremos que alguém lute para que a gente tenha hospital? Marielle. Não queremos que alguém defenda os policiais que saem para matar ou para morrer, que saem para dar a vida por gente que nem conhecem? Marielle. O coronel Robson Rodrigues, grande pensador da área de segurança pública do Rio de Janeiro, desabafou: “Marielle, com suas bandeiras, defendia muito mais nossos policiais do que fomos capazes de defendê-la e de fazê-lo”.

Os nossos mais profundos desejos de cidadãos brasileiros preocupados com o coletivo desembocam no mesmo Rio, vão todos dar no mesmo rio-síntese de uma só palavra: Marielle, o corajoso cardume. Quando desejamos que nossos filhos voltem para casa em segurança, que eles tenham uma boa escola, um bom sistema de saúde que os atenda, que tenham uma boa alimentação e que possam crescer preparados para colaborar com o processo de desenvolvimento do país e do mundo, estamos querendo que eles tenham direito à vida, ao trabalho digno, à própria dignidade. São direitos do ser humano.

Àqueles que pensam que a expressão “direitos humanos” se restringe à defesa de bandidos, é bom que se esclareça que pensar assim é render-se à ignorância dos que acham que as pessoas são ignorantes a ponto de pensar essa besteira. Essas pessoas fazem crer que “direitos humanos” é um dispositivo para defender vilões. Como assim? Vivemos num país torto nesse sentido. Tão torto que grandes flagrantes, como malas flagradas em rede nacional abarrotadas de dinheiro e outras trapalhadas e falcatruas de grandes ladrões protegidos por uma rede poderosa, não são punidos ou o são timidamente, diante da volumosa população carcerária, que só cresce e se revolta contra um sistema perverso que põe na mesma jaula o ladrão de celular, o pedófilo, o pequeno traficante e o assaltante à mão armada. E não têm interesse na saúde daquele conjunto de injustiça e descaminhos, oriundos em sua maior parte da evasão escolar.

"A verdade é que o tiro que atingiu a mulher-tribo atingiu todo homem e toda mulher de bem. Desde então, cada reitor, professor, juiz, profissional deste país que tenha um olhar para o seu vizinho e para o bem de todos está ameaçado"

Quem nunca viu uma imagem do que acontece nas cadeias, não fosse pelas roupas modernas, facilmente a confundiria com uma senzala. Muita gente ganha com essa miséria. Para quem fornece quentinhas e uniformes para os presídios, quanto mais presos, melhor.

Pergunto: que tipo de paz esperamos que venha dessa realidade? Dessa realidade não há como vir paz alguma. Carolina Maria de Jesus, grande escritora brasileira, ensina: “Quem inventou a fome são os que comem”. Portanto, quando se fala em bem coletivo não é nada contra ninguém. Pelo contrário. É uma coisa a favor de todo mundo. Todo mundo que quer paz precisa se posicionar contra os mecanismos de guerra. Quanto mais injusta, mais violenta é a sociedade. E todos pagamos esta conta. Um dos produtos ideológicos da guerra, um dos dispositivos fundamentais da guerra é o ódio. Se estou passando muita fome e no seu prato tem muita comida, é muito natural que isso me maltrate, é muito natural que eu me revolte contra essa realidade. E aí alguém vem falar de mérito. Mas só podemos falar de mérito se as duas pessoas que estão concorrendo estiverem em condições iguais na disputa. Assim como no esporte todos são preparados igualmente, todos têm o mesmo tempo de treino e a linha de chegada é para todos. Mas, no jogo em que existe uma raia cheia de obstáculos ao lado de outra raia sem obstáculo algum, não se pode falar em meritocracia. Tal juízo exige iguais condições.

A morte de Marielle abriu a garganta de muitos inocentes, soltou o grito, soltou as vozes. Tentaram matá-la de novo inventando calúnias, reduzindo sua tragédia à não menos vergonhosa tragédia comum do feminicídio e do genocídio do povo negro, uma máquina homicida acostumada a matar estruturalmente nos hospitais, nas escolas, nos subempregos, nos cárceres, nas favelas. Tentaram matá-la de novo, afundar sua memória em alguma coisa que justificasse a sua morte, ainda que de modo insano, mas não conseguiram. Não conseguirão. Ela era inocente! Entre os indignados públicos estão aqueles que indiretamente participaram de sua morte. E quem são esses?

Por isso nessa hora é importante saber de que lado estamos. E eu peço alguma coerência na vida dos que agora me leem. Se você é a favor do crescimento do negócio de armas no mundo, o negócio que precisa do ódio para alimentar o seu comércio, você também matou Marielle! Não adianta nada ir a igreja todo domingo, ir ao culto ou a qualquer encontro em nome de Deus, se fora do templo você é um escravagista, um homofóbico, um lesbofóbico, alguém que se acredita maior que o outro só porque o outro é mais pobre. Não adianta nada. E, se você for alguém que crê no juízo final, saiba que tais atos contarão nesse derradeiro tribunal. Até onde eu sei, racistas, vendilhões, corruptos, usurpadores do povo, pedófilos, homicidas, feminicidas não serão bem-vindos ao alardeado reino do céus. Até onde eu sei, Jesus foi condenado por poderosos porque respeitava a todos, inclusive as putas, e queria a multiplicação dos peixes para matar a fome de todos, e não de uma classe só. E não me parece que Jesus, se vivo fosse, discordaria das ações de Marielle. Vendo assim de fora, me parece que ela, que tanto professava uma fé de matriz africana, era mais cristã na prática do que muitos cristãos de plantão. Ajudar hospitais, orfanatos e outras caridades não é por si só antídoto dos pecados contra o próximo nem solvente deles. Fé sem amor indiscriminado ao coletivo é inócua. Não convence no papel de fé. O que pesa é a necessidade de alinhar o discurso da fé com a prática da vida. Só assim ela serve e faz sentindo. O resto não é fé nem bondade nem religiosidade, e sim salvar a própria alma num carro blindado, e o mundo que se exploda.

Marielle tinha o que queríamos para nossos pobres e pretos: educação. Era uma intelectual vinda da favela. A que tipo de cidadão isso incomodaria? Seu projeto de cidadania pregava saúde pública de excelência para o povo. Para que o seu motorista não tenha de assistir à remoção de helicóptero do patrão para uma UTI com leitos disponíveis, enquanto sua mulher passou a noite na fila da UPA com a criança muito febril nos braços, sem saber se haverá atendimento. Este é o cotidiano do grande povo brasileiro. O desprezo do Estado quando não cumpre seu papel tem resultado letal. Querem nos fazer crer que o Estado é, por natureza, incompetente, e tal conceito pretende subtrair nossa esperança e não nos força a cobrar nada dele. Seguimos matando negros e índios e, simultaneamente, entregamos de novo nossas riquezas. O Estado é sucateado para que tudo seja privatizado, como já estão a saúde e a educação. Muito do que digo agora aprendi lendo e ouvindo Marielle. Uma pensadora fundamentada e criteriosa, considerada caxias pelos advogados e pela equipe de sua transparente campanha.

Marielle estava como relatora no Observatório da Intervenção Militar. Seu projeto de cidadania incluía investimentos estruturais de educação, cultura e trabalho nas favelas, e ela tinha plena consciência do fiasco, da degradação e do fracasso contumaz que tem sido a política contra as drogas: só aumenta a população carcerária, formada por brasileiros em plena força de trabalho, amplia a mortandade de jovens negros e ainda aquece o mercado de armas. Fora o desperdício da grana que poderia ser usada para trazer vida digna a territórios onde faltam escolas de qualidade, teatros, cinemas, bibliotecas. Era uma intelectual, repito, e sabia que, assim como o estudo mudara seu destino, poderia mudar os rumos de seus irmãos.

Por ela ser a encarnação de grande parte de minha utopia, a morte de Marielle destroçou meu coração, bombardeou minha noite, apedrejou minha possibilidade de alegria. Porém, o ressurgimento da voz brasileira nas ruas deu um colorido ao meu luto.

Percebi que sua morte se tornou um escândalo mundial dos direitos humanos! Sua morte promoveu uma saia-justa a seus executores. Ela era inocente, e todos perguntam por que nesse país se mata inocentes sem se tratar de um latrocínio? Esse fuzil então está apontado para quem? Assim como havia a invisibilidade de Marielle, apesar de seus 46.000 votos maravilhosos, continua havendo a invisibilidade das Marielles que sobreviveram — que não são poucas. Ninguém pode dar ré num país, na consciência de uma nação nova. Podem dar ré em alguns processos efetivos, oficiais, mas na consciência de um povo não.

Para os que ficaram mais conscientes não há volta. É irreversível. O Brasil não tem o mesmo painel do 1964, daquela intervenção militar, em que se sabia onde estavam os intelectuais: nas principais universidades, em alguns quadros partidários e naquele bando de sonhadores meninos, jovens, guerrilheiros, que queriam um país de sonho. Pobres estudantes. E agora, em 2018, quem são os intelectuais brasileiros? Os ativistas? O sistema de cotas, ou seja, a política da inclusão, trouxe novas narrativas para a sociedade, e por isso o Brasil de hoje não é o mesmo país de cinquenta anos atrás, nem o mesmo de quinze anos atrás. Agora os intelectuais pipocam em todo canto, estão espalhados, inclusive nas periferias, e todos cada vez mais conectados e falantes no poder das plataformas digitais.

Agora que o Brasil e o mundo vivem o luto da rara parlamentar, ela vive multiplicada de maneira incontável: padres, pastores, políticos, empresários, ativistas dos direitos humanos, policiais, todos se veem em Marielle. É como se tivéssemos descoberto que a alguém ou a algum grupo interessa a morte de quem quer o bem coletivo. A espalhafatosa e sangrenta tragédia, com direito a balas da Polícia Federal, expôs o brasileiro comum, gente boa, representado também pelo pobre Anderson, morto tal como Marielle no pleno exercício de sua profissão. O ato de tentar calá-los escancarou para o mundo o genocídio diário do povo brasileiro. A intervenção militar, que faz tantas trapalhadas com sua violenta presença nas favelas, além de não nos apresentar seu programa de atuação, não foi capaz de proteger Marielle e, como era alvo das críticas da parlamentar, está também sob suspeita.

Pronto. Agora o mundo todo viu que matam a todo momento o povo brasileiro. Quando se mata um índio, há quem pense que era apenas um índio. Só que todos perdemos. No índio assassinado morre muito da floresta — ele era um guardião. Quando se mata a floresta em que ele morava, perde a floresta, perde o país, perde o planeta, pois a mata é um pulmão de toda humanidade. Portanto, aquele que não se incomoda com a morte de “Marielles” quer a morte do planeta, o fim de tudo. Quem discorda dela discorda também do papa Francisco; quem não se incomoda com a morte de Marielle não pode dizer que é seguidor de Jesus Cristo. Quem não se incomoda com a morte de Marielle é quem ainda não entendeu que ela lutava por um mundo mais justo, inclusive para os que hoje não se incomodam com a sua execução.

O luto virou luta porque a vida dela era maior que a vida dela. Porque ela, que parecia estar só, não estava. Porque ela não era só uma mulher, e uma mulher negra, ela era uma tribo inteira! Sua execução, qual uma espécie de ressurreição cívica, acordou a floresta, incendiou de indignação uma nação, que não pode seguir anestesiada diante da escalada homicida que circula livremente em nosso cotidiano urbano.

Os tiros mataram a pajé ou o cacique, e as tribos todas se viram ameaçadas. Gritam “Marielle, presente” nas escolas, nas ruas, nos teatros, nas praças, nas universidades. Muitos usam a sua foto como identidade nos perfis das redes, dentro e fora do país. Desperte também. Se mataram Marielle, e Marielle defendia você, então o alvo agora é você.