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Tonico Pereira

"Trabalho com anjos e demônios"

Ao estrear seu primeiro monólogo, ator critica colegas que fazem “laboratório” em vez de mergulhar nas próprias contradições, conta que não decora textos na TV e fala sobre a política nacional

Por Maria Carolina Maia

query_builder 3 ago 2018, 16h00

“Eu enganei vocês.” É assim que o ator Tonico Pereira encara o público ao fim do espetáculo O Julgamento de Sócrates, seu primeiro monólogo em 70 anos de idade e cinquenta de carreira. “Foi um pouquinho de Sócrates, mas muito da minha angústia como cidadão pelo que estamos vivendo”, continua, antes de o público explodir entre gritos de “Lula livre” e “Lula preso”. Depois de rodar por algumas cidades, a peça se instalou na última semana no Teatro Nair Bello, em São Paulo, onde tem sessões aos sábados e domingos, às 21horas e às 19 horas, até 9 de setembro.

Ator que nunca escondeu sua posição política à esquerda e chegou a ser agredido nas redes sociais por emitir sua opinião no Domingão do Faustão – um pastor, diz, até o ameaçou de morte pela internet – às vésperas do impeachment de Dilma Rousseff, Tonico Pereira traça no palco um paralelo entre a condenação do mentor de Platão, sentenciado à morte por incitar a juventude ateniense à filosofia e ao questionamento dos deuses, e a punição do ex-presidente, preso por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do tríplex do Guarujá e réu em outros seis processos, dois em Curitiba e quatro na Justiça Federal de Brasília.

“As duas foram prisões políticas, porque calaram ideias, assim como calaram Marielle Franco”, diz, antes de se pôr “à vontade” para tirar fotos. Por “à vontade” leia-se apenas de cueca – uma samba-canção vermelha como toda peça íntima que, por superstição, ele veste para subir ao palco, onde atua sem laboratório e com ponto eletrônico. “A menina do ponto fala o texto para mim. De preferência, eu não decoro, nem na televisão. O importante é entender o texto, quem decora corre o risco de parecer um papagaio. (A novela) A Regra do Jogo eu fiz assim”, conta o ator.

“Sobre a cueca vermelha, eu tenho umas vinte”, retoma. Mas, se Tonico Pereira está convicto da sua posição, a classe artística está “dividida” como nunca viu.

Funcionário da Rede Globo, Tonico está pré-reservado para uma produção em 2019, mas ainda não sabe qual. E, se sair da emissora, não descarta atuar em outra, como a Record, conhecida por suas tramas bíblicas. “Meu amor, se meus filhos estiverem passando fome, eu sou capaz de matar”, ironiza o ator, quatro filhos de dois casamentos.

Além do compromisso com a Globo e do teatro, Tonico tem assinado contratos no cinema. Acaba de rodar três filmes. Entre os longas, está Compro Likes, de André Moraes, que o deixou horrorizado com o “mercado de likes” que existe: quem quer tornar seu perfil relevante em uma rede social investe em seguidores robôs, que podem trazer trabalhos e contratos publicitários. “Eu tenho 67.000 seguidores, mas nunca comprei nenhum, nem mandei nude.”

É o seu primeiro monólogo em cinquenta anos de carreira. Por que só agora?

Eu tinha preconceito. Pensava no monólogo como algo egoísta, individualista, e até um tanto pretensioso. Mas não é um stand-up o que eu faço. Não é uma coisa egoica. É uma exposição das ideias do Sócrates com toda a grandiosidade e preocupação que ele tem com o ser humano, o cidadão. Também não é um monólogo, descobri que monólogo não existe. Não estou sozinho. Os meus interlocutores são a plateia, e eu recebo a reação do público sem filtro, tanto para o bem como para o mal. Não existe o sozinho no palco. A não ser que não tenha plateia. O monólogo é coletivo.

Você tirou uma foto no palco fazendo “L” com os dedos. É uma referência ao ex-presidente Lula?

É, sim. Sócrates foi condenado por suas ideias 2 400 anos atrás. Pela sua visão do ser humano, do mundo etc. Esse julgamento vem acontecendo por toda a história. Passou por Jesus Cristo, passou por Joana d’Arc, passou por Mandela, por Zumbi, mais recentemente Marielle Franco. No palco, eu cito esses episódios e tem uma hora que eu digo, como Sócrates: “E não há perigo de que isso acabe em mim”. Não falo o nome do Lula, mas a peça acaba muitas vezes com gritos de “Lula livre”.

Ao que parece, esse bordão substituiu “Fora Temer” entre os eleitores de esquerda.

Temer está fora desde que entrou, né, meu amor? Ele nunca esteve dentro. Ele é tão insignificante... Medíocre. E ladrão. Está tudo comprovado e não acontece nada.

A ideia de montar a peça surgiu com a iminência da prisão do Lula?

A ideia da peça foi do Ivan Fernandes, no ano passado, sem contextualizar no presente. Eu que insiro o presente no espetáculo. Mas as coisas já estavam de fato se encaminhando para o quadro atual. Desde 2014, quando o Aécio, que é o plantador dessa semente fascista, perdeu a eleição e falou que não iria deixar a Dilma governar. Ele só, não. O Jucá, o Temer. Um grande acordo com o Supremo. O Jucá preconizou tudo o que iria acontecer. E o Judiciário não faz nada. Ou é cego ou está comprometido.

Você foi criticado por emitir sua opinião no Domingão do Faustão. Avalia que há intolerância?

Há muito ignorância. Eu sou brizolista até hoje. Acho que falta Brizola ao Brasil. Se o Brasil tivesse a educação que o Brizola e o Darcy Ribeiro propunham, que foi destruída pelo Moreira Franco, a gente teria um país hoje. Como o Darcy falou, não constrói escola hoje, daqui a alguns anos vai faltar dinheiro para erguer prisão. O povo não sabe ler. Pega eleitor do Bolsonaro, que me persegue... Teve um pastor aqui de São Paulo que me ameaçou de morte pela internet.

À parte o paralelo com a política atual, você se identifica com Sócrates?

Eu digo que sou socrático porque aprendi tudo empiricamente. Eu não era mau aluno, mas não estudava. Aprendia na sala de aula, na vida. No dia da estreia do monólogo, escrevi um texto a mão, no segundo sinal, sobre os Sócrates que tive na vida, em Campos dos Goytacazes, a minha cidade, como o barbeiro Mário, o sapateiro que era amigo do meu avô. Também gostava muito de acompanhar júris, pensei em ser advogado. Tinha um advogado que sempre chegava ao tribunal com uma garrafa de água mineral. Mas, dentro, era cachaça pura. Eu também já fui assim.

Assim com a bebida?

Tinha espetáculo que eu fazia com um litro de cachaça. Tomava no camarim, ao lado do palco, onde desse.

E sobreviveu...

Minha saúde hoje está melhor, mas já tive oito tumores na bexiga. Depois, um tumor de pulmão. Tenho DPOC (Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica), enfisema, diabetes e estive recentemente à beira da hemodiálise, o que acabaria com a minha carreira. Fiz uma dieta rigorosa. Carne vermelha nem pensar, cortei bebida também. Mas ontem eu tomei uma garrafa de vinho.

A citação a Raul Seixas, na peça, foi coisa sua ou do dramaturgo, Ivan Fernandes?

Minha. Eu também cito o Zezé Di Camargo, como o cantante sertanejo que disse que é muito politizado e que não existiu ditadura no Brasil. Não teve no (...) dele. “É o Camargoooo, que mexe com a minha cabeça e me deixa assim...”. Mas com o Raul rola uma identificação, até pelo aspecto marginal. O meu passado não foi muito diferente do dele.

O que você ouve hoje?

Eu gosto muito de MPB. Mas hoje em dia não sei mais o que é MPB. Eu gosto do Caetano, do Chico, do Gil. Tem outros, Sergio Ricardo. Já não consigo gostar de certas coisas hoje, das quais parece que somos obrigados a gostar. Eu costumo dizer que eu não sou hipócrita o suficiente para ser politicamente correto. As pessoas hoje abraçam causas externas, como a baleia do outro lado do mundo, geralmente causas abrangentes para ganhar uns likes nas redes sociais.

Você é avesso a decorar textos. Quando você adquiriu liberdade para atuar dessa forma?

Eu não adquiri, eu tomei a liberdade. Nunca fui dirigido. Há pessoas que adoram trabalhar comigo assim, e tem gente que detesta. Eu fiz um filme com um ator que eu admirava, o Nelson Xavier, com direção de um cara bem mais jovem. No final de uma cena, ele veio reclamar que eu não tinha falado algo que devia ter dito. Eu abaixei a cabeça e disse: “Tudo bem, então vamos de novo”. Fiz tudo igual, no final perguntei se tinha sido bom e ele aprovou. Eu e o Nelson rimos muito. Era só um sintoma de obediência que ele queria. Agora, naquele momento não me custou nada satisfazer a insegurança dele.

Você faz preparação de atores. O que ensina, com esse "gênio indomável"?

Eu adoro dirigir atores, e não facilito. Se não estiver bom, durmo na frente do cara. Ou digo para ele procurar profissão. Minha divulgação é assim: “É ator, atriz? Está desesperado, o trabalho não rende? Venha com o texto mais ou menos decorado que eu trago o personagem em três dias. Ou o seu dinheiro de volta”. É um deboche absoluto. Eu nem cobro, a pessoa dá o que quiser. Tinha uma menina que ia fazer vestibular para teatro, com um texto do Nelson Rodrigues, e o pai quis ir junto para acompanhar a preparação. Eu mandei que ela falasse o texto para ele, e era um texto que envolvia pai e filha. Ele ficou com uma cara (risos)... Ela passou na prova. Ele me pagou bem e ainda mandou uma caixa de vinho. Acho que a aula serviu mais para ele que para ela.

Você coleciona carros antigos e adora futebol. Como analisa a performance do Brasil na Copa da Rússia?

Foi uma m... Hoje, tudo é mercado. Eu termino a peça falando do mercado, coisa que acrescentei recentemente. O Brasil, nessa Copa, teve muitos problemas. Primeiro que não teve llíder, foi escalado um para cada jogo. Outro ponto é que o Neymar precisa passar por uma análise. A questão é que ele é impulsionado por esse individualismo... O jogador hoje faz um gol e, em vez de comemorar com quem passou a bola para ele, corre para a câmera da TV. É o like. Eu era ponta-direita. Adorava servir, cruzar, botar a bola para o cara fazer o gol. Neymar é um garoto arrogante, que já falou que não é negro.

Mas sempre houve racismo entre os jogadores, não?

O racismo é antigo, mas em 1958 o Didi deu o verdadeiro grito de independência do Brasil. O país não era favorito para levar o título. E era claramente racista. Se tivesse um jogador branco e outro negro, e o branco jogasse um pouquinho a menos que o negro, ele era o escalado. E foi o Didi e o Nilton Santos que escalaram o Garrincha no lugar do Joel, o titular, que era branco. Em um jogo da Copa, o técnico, o Feola, começou a falar do ponta-direita de um outro time. E o Didi falou, “É, e o senhor tem um muito melhor aqui e não escala”. É o único ponto em que eu discordo do Nelson Rodrigues, que fala que 1958 foi quando o Brasil deixou de ser vira-lata. E eu, que sou rodriguiano, falo que é o contrário: ali, o Brasil se assumiu como vira-lata, sem vergonha de ser. E ser vira-lata é a essência nacional, porque é a mestiçagem absoluta.

Você se diz rodriguiano. Havia contradição entre Nelson Rodrigues escrever os textos que escrevia e ser tão conservador?

Isso é completamente normal. O autor, quando cria, trabalha com anjos e demônios. Como o ator. Eu trabalho com anjos e demônios. O ser humano é capaz de tudo. Eu fico p... com os atores que falam em fazer laboratório, que vão fazer um v... e têm de ir a uma boate gay. Mergulhe no seu ser humano, acesse esse conteúdo interior, você tem tudo aí dentro. Todo ser humano tem tudo ou é um hipócrita de plantão, o tempo todo se censurando. Eu creio em Deus, meu Deus é o homem. Não posso nem dizer que sou ateu.

Você faz laboratório para compor os personagens?

Tá louca? Eu sou autor do primeiro beijo gay do cinema nacional, no filme República dos Assassinos, mas isso não quer dizer que eu seja ou não seja gay.

Mas fazer laboratório não demonstra humildade, numa pesquisa sobre uma profissão, por exemplo, que o ator desconhece?

Não é um exercício de humildade, mas de discriminação. Quando a menina vai à zona para ver uma prostituta, alega que vai ver aquilo que ela não é, que é diferente dela.

Essa leitura é psicanalítica.

Ah, meu amor. Eu penso, né?

Fotos: Heitor Feitosa/VEJA