Hoje mais conhecido como o pai do apresentador Tiago Leifert, recém-promovido ao comando do Big Brother Brasil, programa da Globo que é a maior fábrica de subcelebridades do país, Gilberto Leifert está longe de ser um estranho ao mundo da mídia. E por mídia pode-se entender também, e sobretudo, o jargão usado por publicitários para indicar o espaço que os veículos de imprensa loteiam para campanhas de marketing. Há mais de trinta anos Leifert é peça-chave do departamento comercial da Rede Globo, função da qual se aposenta em julho, e do Conar, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária, que dirige há dez mandados bienais consecutivos. Criado em 1980 com inspiração no Advertising Standards Authority (ASA), de Londres, para fazer frente a uma ainda persistente ameaça de censura por parte dos militares, o órgão se tornou uma indiscutível instituição da propaganda brasileira, capaz de acolher, encaminhar e solucionar denúncias de abuso ético em campanhas. Sua eficiência se deve à boa aceitação, segundo Leifert. “O órgão nasceu com apoio da grande imprensa. A publicidade é um excelente remédio para evitar interferência do Estado, por ser a única fonte legítima de financiamento que os veículos de comunicação têm, e garantir a ética é saudável para qualquer atividade”, diz. Apesar dos quase quarenta anos transcorridos desde a criação do Conar, e da unanimidade que cerca o órgão, Gilberto Leifert reconhece que ainda é preciso avançar na ética da publicidade no Brasil. Em especial, no campo político.
Em 2002, o senhor fez o alerta de que a ética publicitária precisava avançar. Na sua opinião, como está hoje? Estou ligado há tantos anos ao Conar que a minha visão pode ser enviesada. Eu vi mudanças grandes na propaganda de bebidas alcoólicas, em relação às crianças, na propaganda que evoca benefícios de sustentabilidade. Vi progressos notáveis. Mas é preciso lembrar que a propaganda é um processo tão dinâmico que, embora tenha pretensão de ser vanguarda, no fim reflete a sociedade. Tanto assim que os sotaques locais fazem muita diferença na comunicação. A propaganda não impõe padrões. Ela reproduz ou ilumina tendências.
Mas a publicidade política permanece fora da alçada do Conar. Ela também não deveria ser regida por um código de ética? No evento de celebração dos 25 anos do Conar, em 2003, eu fiz um apelo público aos partidos para que estabelecessem códigos de ética. O Conar estaria à disposição para ajudá-los. Até hoje, ninguém me ligou.
Por que o Conar não julga as campanhas eleitorais? O Conar não avalia a propaganda eleitoral porque ela é previamente analisada pela Justiça eleitoral. A gente fica com comichão, com água na boca, mas não vai além disso.
Que pontos negativos o senhor vê na propaganda eleitoral? Existe uma franquia para a propaganda eleitoral que não existe para a indústria. Por que motivo a indústria deve ser mais fiel à verdade do que um candidato ou partido? A verdade tem de ser uma só. E a consideração aos cidadãos tem de ser a mesma. Aliás, as consequências da propaganda política não verdadeira são muito mais nefastas. E levam quatro anos para ser corrigidas.
“Existe uma franquia para a propaganda eleitoral que não existe para a indústria. Por que motivo a indústria deve ser mais fiel à verdade do que um candidato ou partido?”
A propaganda religiosa também é motivo de preocupação? Não para o Conar.
O senhor trabalhou na Semprel, aprimeira agência de relações governamentais do país. A partir do mensalão, em especial, tornou-se frequente associar agência de publicidade a corrupção. Foi uma surpresa ou o senhor viu muita coisa errada? O lema interno da Semprel era “Não temos coquetéis, não carregamos malas e não fazemos programas noturnos para autoridades”. Era uma forma de distinguir a agência das outras. No mercado, já havia essa prática de corrupção. Parece que Adão e Eva tinham um tio que fazia isso (risos).
O senhor falou que a publicidade reflete a sociedade. De que maneira, na sua opinião, isso vem ocorrendo hoje? Os alimentos industrializados, por exemplo:as mães que, nos anos 1950, cuidavam das crianças e cozinhavam ou tinham alguém que cozinhasse para elas, agora estão na rua, trabalhando, e investem nos alimentos prontos. Não que prefiram, é a solução que a família tem para se alimentar, e os anunciantes vão disputar aquela panela. Também vale dizer que a propaganda brasileira é bem-humorada porque o brasileiro gosta de piada. Eu diria até que boa parte do sucesso da internet e das redes sociais no Brasil se deve ao humor, à capacidade que o brasileiro tem de produzir piada. Um minuto depois da notícia, já vem o meme. Outro reflexo, que diz respeito mais diretamente ao Conar e à internet, é que antes era o próprio órgão quem liderava as denúncias contra as campanhas, e, há coisa de três anos, são os consumidores. Hoje, é muito fácil denunciar, basta mandar e-mail, não precisa ligar ou passar fax.
A ascensão da classe C não se refletiu na propaganda? A classe C teve uma participação maior nos últimos anos e agora está em declínio, por causa da crise econômica e do desemprego.
O senhor é a favor de cotas para que a publicidade represente de maneira fiel a população? Não. Caberia discutir isso no âmbito da comunicação pública. Na privada, não. Determinar por lei quantos serão gordinhos, negros ou deficientes físicos, não. A publicidade não deve deformar a realidade, mas não se pode impor ao anunciante a mensagem. É ele quem paga a conta e quem pode escolher quem quer no seu anúncio, desde que não discrimine ninguém. Se discriminou o gordinho, o Conselho de Ética pode pedir a alteração ou a sustação do anúncio.
As denúncias ao Conar também refletem mudanças na sociedade? Chama atenção, por exemplo, como o público reclama de machismo em comercial de cerveja. O debate é interessante, porque, de um lado, a exposição do corpo feminino é um dado de realidade em um país que tem uma costa litorânea como a nossa. De outro, a exploração do corpo de um modelo contratado, que o faz de forma voluntária, é um direito. Ninguém pode ser proibido de posar de biquíni. E a indústria é muito equipada tecnicamente. Ela testa previamente os comerciais antes de exibi-los e vê a resposta nos pontos de venda. Sabe que, se existe uma exposição maior do corpo feminino nos comerciais de cerveja, as mulheres não vão deixar de beber. Elas passaram a beber mais, prova de que não repudiam as marcas e autorizam os anunciantes a persistir na prática. Tem uma questão de condicionamento, acho, os consumidores das cervejarias estão acostumados a receber essas mensagens. As modelos toleram e as mulheres consomem. Se houvesse repulsa e boicote, os anunciantes repensariam a estratégia.
Mas ele não passaria a mesma mensagem se, em vez de uma loira gostosa na praia, colocasse um casal negro para vender cerveja? Esse é um juízo dele.
O senhor acha que o público é muito moralista? Há muitas queixas contra comerciais que incitariam a homossexualidade e o fim do casamento. Os indignados têm uma energia superior à dos conformados. E hoje está mais fácil fazer denúncia, dá para fazer pela internet. Não vejo mudança no público, mas na forma de expressão.
Na sua opinião, as proibições à propaganda de bebidas alcoólicas e de cigarros deveriam ser retiradas? Quando o cigarro teve a propaganda proibida, o Conar entendeu que sim, que houve mão pesada do Estado, porque o Conar defende o princípio da liberdade de expressão comercial, segundo o qual todo produto lícito pode ser anunciado. A Constituinte de 1988 rejeitou todas as emendas e propostas de banimento. A Anvisa licencia a marca do cigarro, a agência de vigilância sanitária permite que ele seja comercializado. Se um produto oferece risco, tem de ter a fabricação, e não a publicidade, proibida. Se o governo permite a comercialização, não pode querer que o anunciante pague a conta.Propaganda não faz mal à saúde.
“Propaganda não faz mal à saúde”
Uma parte das autoridades e especialistas entende que a propaganda induz o consumo. Mas não deveria ser proibido, porque a liberdade de iniciativa é um dos pilares da nossa democracia. Eu sempre alinhei o cigarro ao molho de tomate e à bicicleta, não tem diferença para o Conar. Na ocasião da proibição, o esforço do órgão era para que não se confundisse produto, publicidade e consumo. Mas a posição do órgão é legalista, ele acata as leis. Nossa meta é iluminar o tema para que o legislador não cometa excessos, aprovando uma lei que seria inconstitucional.
Há projetos de lei que preocupam o Conar no momento? É um quadro de tensão permanente. Há projetos sobre brinquedos, medicamentos, crianças. Um projeto de lei que causou celeuma defendia o banimento de crianças na propaganda. Algo que não reflete a realidade. Então, uma ceia de Natal não poderia ter crianças. Um comercial de volta às aulas também não. Há também projetos que querem que o anunciante fale mal do próprio produto, destacando pontos negativos, como o de que um determinado refrigerante pode causar obesidade. É ao governo que cabe fazer campanha de conscientização. Por que ele não promove a alimentação saudável? Ele tem verba e dispõe do conhecimento. O papel do fabricante de alimentos é alimentar e faturar. Além disso, vale lembrar que uma das formas de exercer controle, por parte do Estado, é atuar sobre a receita dos veículos, tornando-os dependentes da verba de publicidade oficial e frágeis.
É correto valer-se de uma celebridade para vender um produto que ela mesma não usa? O caso em que a Angélica, que é vegetariana, apareceu comendo uma salsicha foi alvo de muitas críticas. O anunciante lida com a commodity atenção. E, como o ambiente midiático é poluído, uma das formas de atrair o olhar do público é fazer uso da celebridade. Por empatia, por beleza, por credibilidade, por mérito, por história, ela vai facilitar a transmissão da mensagem, vai fazer com que o público preste atenção. Claro que, se chegar uma reclamação, o Conar vai examinar. Proibido não é, mas tem limite.
Foto: Ricardo Matsukawa/VEJA.COM