O jornalista americano Michael Oreskes, de 62 anos, viu seu país ser varrido por uma onda de desinformação perigosa nos últimos meses, que mistura a disseminação de notícias falsas, a defesa do que foi chamado de “fatos alternativos” por autoridades e a crença de que se vive numa era da “pós-verdade”, em que os fatos importam menos que a emoção. Oreskes virá ao Brasil para o Festival Piauí Globonews de Jornalismo, nos dias 7 e 8 de outubro, para falar sobre sua experiência como vice-presidente de notícias e diretor editorial da NPR, a rádio pública americana, financiada majoritariamente por contribuições privadas. Entre seus doadores está a viúva do fundador da rede do McDonald’s, que entregou mais de 200 milhões de dólares. Segundo Oreskes, as rádios públicas batem recordes de audiência, apesar dos tempos sombrios. “As pessoas acreditam na maneira como estamos apresentando as notícias. Querem conhecer os fatos independentes, não apenas os que são apresentados pelo presidente ou pelos seus oponentes. É encorajador”, diz. Ele falou a VEJA por telefone, de Nova York.
No Brasil e nos Estados Unidos, as pessoas parecem só querer ler informações enviesadas que comprovem seus pontos de vista. A verdade não existe mais? De forma alguma. A realidade e os fatos não desapareceram. A maior evidência disso é que repórteres estão sendo intimidados, presos e até assassinados em vários lugares do mundo para impedir que eles reportem os acontecimentos. Organizações corruptas e governos autocráticos não querem deixar que vozes independentes venham à tona. Em vez de “pós-verdade’, o que estamos presenciando é uma espécie de “pós-respeito pela verdade”. Tudo agora é tão brutalmente combatido que muitos pensam que podem simplesmente negar os acontecimentos para promover seus próprios argumentos. Esse tipo de comportamento tem ficado mais recorrente porque muitas mudanças no funcionamento da imprensa, como a ascensão da distribuição digital e o declínio de muitos jornais, facilitaram a negação da realidade. Em contrapartida, ficou mais complicado para os jornalistas defender os fatos e fazer com que os leitores, usuários e ouvintes acreditem que há fatos essenciais. O senador americano democrata Daniel Patrick Moynihan (1927-2003) dizia que todos têm direito a sua própria opinião, mas não têm direito a seus próprios fatos. Precisamos retomar a ideia de Moynihan.
O que essa falta de respeito pela verdade pode acarretar? Se os cidadãos se iludirem achando que os fatos não existem ou não importam, a sociedade acabará tomando decisões equivocadas. Se alguém acredita em um conjunto de versões sobre a realidade e outro em algo oposto, eles não irão concordar sobre nada. O debate não terá sentido algum. Pode até ter uma discussão, mas essa será vazia, rasa. A premissa fundamental de uma democracia é a de que as pessoas podem chegar a um acordo e tomar as decisões mais inteligentes, seja sobre como distribuir os recursos ou sobre como avançar em um tema. Na “pós-verdade”, isso não tem chance de acontecer. Se o clima do planeta está esquentando, como afirma a maior parte dos cientistas, não importa se as pessoas vão debater isso ou não. O certo é que o nível do mar vai subir e acabará nos inundando. Podemos discutir o assunto, mas o efeito será nulo.
Como o desrespeito aos fatos afeta a imprensa americana? Nosso trabalho tem sido o de apresentar os fatos da forma mais clara e racional possível, sem medo de ser intimidado. Em setembro de 2016, Trump disse ao canal Fox News que uma pastora “muito nervosa” tinha interrompido sua fala em uma igreja, mas que o público tinha pedido para ele continuar o discurso. Nosso repórter era um dos poucos jornalistas que estavam presentes naquele momento. Ele fez uma ótima matéria que sobrepunha seu testemunho pessoal do que tinha acontecido com o que o presidente tinha falado. (Dizia que a pastora não parecia nervosa, apenas pediu a Trump não fazer um discurso político dentro de um templo.) Todo mundo podia ler aquilo e tirar suas próprias conclusões.
"Chefes de governo e de Estado, prefeitos, líderes políticos e corporações não precisam mais da imprensa para alcançar grandes audiências"
O que aconteceu depois? Apesar da polêmica, nós da imprensa nunca entramos em discussão com o presidente. Não deixamos ele nos arrastar para brigas. Trump diz que a imprensa está em guerra contra ele, mas só fazemos o nosso trabalho. A resposta dos leitores tem sido ótima. Nossa audiência cresceu dramaticamente. Os canais e as rádios públicas nos Estados Unidos atingiram um recorde de audiência. As pessoas acreditam na maneira como estamos apresentando as notícias. Querem conhecer os fatos independentes, não apenas os que são apresentados pelo presidente ou por seus oponentes. É encorajador.
Quando o presidente se comunica diretamente com o público por meio do Twitter, isso enfraquece a imprensa? Chefes de governo e de Estado, prefeitos, líderes políticos e corporações não precisam mais da imprensa para alcançar grandes audiências. Esse não é mais o papel do jornalismo. Nossa função é a de produzir informação completa e precisa. O público pode receber a mensagem que quiser do presidente, mas precisa que alguém conte o resto da história e fale sobre os outros fatos que não estão sendo abordados. Temos de construir uma relação de confiança com o público, para que as pessoas saibam que somos uma fonte de informação independente.
A democracia vai sobreviver a essa onda notícias falsas? Sim, sou muito otimista em relação a isso. Em primeiro lugar, será preciso trabalho duro por parte dos jornalistass. Eles não podem consertar todos os problemas do mundo, mas somos muito bons em identificar o que é um fato e isso conta. Além deles, é preciso ter governantes e líderes comprometidos com a democracia. Para eles, ganhar eleições não pode ser o único objetivo. Por fim, precisamos da pessoa mais importante em uma democracia: o cidadão. Se o indivíduo não está disposto a gastar seu tempo para se informar de forma adequada, a democracia corre perigo.
Como convencer os eleitores a acreditar em uma imprensa que prevê equivocadamente a vitória de um candidato, como ocorreu com Hillary Clinton na eleição de 2016? Um caminho é construir confiança no nível local, seja no estado de São Paulo ou no Alabama. Em qualquer canto do mundo, é mais fácil se conectar com o público em um nível menor, mais regional. Tentar criar confiança em um país do tamanho do Brasil ou dos Estados Unidos é uma tarefa enorme e muito mais árdua. Na rádio pública, procuramos fortalecer as estações locais. Temos 264 membros, organizações comunitárias responsáveis por estações de rádio e sites de notícias. Eles estão muito próximos das comunidades e constroem credibilidade, de baixo para cima. Estão sempre interessados nos problemas das pessoas. Em geral, são temas bem pouco politizados. Falar sobre como o lixo pode ser coletado em uma rua é uma questão bem menos partidária que especular sobre quem vai pagar pelo sistema público de saúde americano.
"O jornalismo americano se tornou muito concentrado em Nova York e em Los Angeles. O número de repórteres no centro do país caiu, e ficou mais difícil entendê-lo"
Os jornalistas americanos falharam em captar o fenômeno Trump porque são elitistas demais? Não há nada melhor que sair às ruas e conversar com as pessoas, onde quer que elas estejam. Muitos dos nossos repórteres foram para o oeste da Virgínia, para o sul de Ohio e para o leste do Kentucky para falar com os que dependiam da mineração do cobre. Era gente pobre que vivia em pequenas cidades. Alguns jornalistas até se especializaram nisso. O problema é que o jornalismo americano se tornou muito concentrado na costa do Atlântico, onde está Nova York, e do Pacífico, onde está Los Angeles. A tecnologia digital estimulou ainda este fenômeno, pois muitas das companhias digitais estão baseadas em um extremo ou outro do mapa. A consequência disso é que o número de repórteres no centro do país caiu, e com isso ficou mais difícil entendê-lo. Superar esse obstáculo geográfico é hoje um grande desafio.
Os ataques de Trump à mídia diminuíram o acesso dos jornalistass à Casa Branca? A postura do presidente tem pouca relação com o cultivo de fontes em Washington. Várias das organizações que ele mais ataca, como o New York Times, o Washington Post e a rede de notícias CNN, parecem ter excelente acesso a todo tipo de vazamento de informações de funcionários do governo. Muito da reação de Trump às notícias parece ser teatro para as bases. Nossa preocupação é mais com questões de longo prazo. Alguns jornalistas já foram intimados pelo Departamento de Justiça em investigações de vazamentos, especialmente quando o assunto é segurança nacional. Gostaria que o governo nos assegurasse que nunca processará jornalistas. Essa garantia é muito mais importante que pedir ao presidente para não gritar com um repórter em uma coletiva de imprensa.
Qual é a estratégia por trás das agressões contra os veículos? Steve Bannon, que já foi o estrategista-chefe da Casa Branca, já chegou a descrever os jornalistas como um partido da oposição. O objetivo deles é nos fazer parecer partidários. Querem que pareça que estamos fazendo uma perseguição, que estejamos em guerra com eles. Porque, no momento em que eles tiverem sucesso em nos retratar como parte da oposição, nossa credibilidade como jornalistas independentes estará afetada. O mesmo método é usado contra outras fontes independentes de poder e de informação. Basta ver os ataques contra os tribunais federais e contra os juízes. No plano pessoal, Trump gosta de aparecer nos jornais e na televisão. Trata-se, no mínimo, de uma relação de amor e ódio. Mas no plano político dá para ver claramente que existe uma estratégia clara. Como jornalistas, temos que ser incrivelmente disciplinados para não sermos puxados para dentro dessa batalha. Se entrarmos nela, perderemos nossa credibilidade. É esse o objetivo deles.
O Google anunciou esta semana o fim da exigência de que os sites de imprensa disponibilizem pelo menos três acessos de graça às suas reportagens via o buscador. Qual será o impacto disso? É vital que Google, Facebook e as outras plataformas digitais reconheçam o dano extraordinário que seu crescimento infligiu no jornalismo e na vida cívica. Essa mudança do Google será útil para as organizações que cobram pelo acesso ao seu conteúdo para substituir a receita com a publicidade que perderam para o buscador. Isso não ajuda todas as empresas de notícias. Como mídia pública, nós disponibilizamos todo nosso trabalho gratuitamente. Apenas pedimos a nossos leitores e ouvintes para apoiar nossa missão por meio de doações de dinheiro ou inscrição como membros. Google e Facebook podiam nos ajudar a difundir essa mensagem. Eles não são os únicos que têm uma missão.
Foto: Alcir Silva/VEJA