Na derrota ou na vitória, o tom de voz de Fabiana Murer, de 35 anos, não se altera. Curtindo a nova vida de aposentada depois de mais uma decepção olímpica – sentindo as dores de uma hérnia de disco de última hora, não passou nem perto de medalha na Rio-2016 –, a rainha do salto com vara do Brasil foge de qualquer tipo de negatividade. A garota de Campinas (SP) que ganhou o mundo em uma modalidade até então ignorada pelos brasileiros não se abala com a crítica. A vara sumiu, o vento atrapalhou, a hérnia apareceu e a glória olímpica não veio... Mas Fabiana tem orgulho dos feitos que atingiu em mais de 15 anos de carreira, que incluem duas medalhas de ouro em Mundiais, um título Pan-Americano e diversos recordes. Seus planos eram encerrar a carreira no fim do ano, mas as dores anteciparam o adeus. Fabiana não salta desde agosto, quando viu o sarrafo cair pela última vez, no Engenhão. Mas não sente falta. “Decidi abraçar minha vida nova”, contou, durante uma pausa nos estudos. Ela agora se prepara para se tornar dirigente esportiva e manter o salto com vara em evidência – ela, inclusive, foi fundamental no início de carreira do campeão olímpico Thiago Braz. Também aproveita para curtir mais o marido, Élson Miranda – que, discreta, insiste em chamar de “meu treinador”. Abaixo, Fabiana recorda os traumas e glórias nas pistas e projeta sua nova vida.
O que tem feito depois de deixar as pistas? Como é sua nova rotina? Eu parei de treinar logo após a Olimpíada e meu clube, BM&FBovespa, me convidou para continuar na equipe em 2017 agora como manager institucional, uma espécie de dirigente. Comecei a fazer reuniões para entender melhor a parte interna, como o clube funciona, e me colocar nessa nova carreira. Além disso, tive eventos de patrocinadores e entidades e também estou fazendo um curso online de fundamentos da administração esportiva, oferecido pelo COB. Sou formada em fisioterapia e preciso aprender mais sobre administração para iniciar essa nova carreira.
E a hérnia está curada ou a dor ainda incomoda? Continuo fazendo exercícios na academia, porque quero me manter em forma. Todos os dias faço pelo menos meia hora de treino. A hérnia está quietinha, de canto, mas tem alguns exercícios que me dão um pouco de dor, então tenho de ir dosando para não ter uma nova crise como pouco antes da Olimpíada. A hérnia é algo com que tenho de aprender a conviver, porque sempre estará ali.
Nunca mais saltou? Não sente falta? Não, não. Eu tinha me programado para parar em 2016, estava totalmente decidida, independente do resultado, não tinha volta. Lógico que depois da Olimpíada fiquei triste por não ir para a Europa nas minhas últimas competições, mas não tinha mais o que fazer e decidi abraçar minha vida nova. Foi bem tranquilo e, por enquanto, não sinto falta nenhuma. Pode ser que eu volte a sentir saudade, não do treino, da rotina, mas da sensação de fazer um bom salto. Mas por enquanto não.
E deu pra descansar bem depois da Olimpíada? Deu, sim. Fiz uma viagem para a Islândia, onde me desliguei de tudo. Foi minha primeira viagem para fora do Brasil a passeio, todas as outras foram para competir. Antes, tínhamos um tempinho para passear entre as competições, mas sempre havia preocupações com o equipamento, nós tínhamos de carregar as varas.
Você somou três grandes frustrações olímpicas. Qual machucou mais? Em Pequim-2008 eu estava começando carreira internacional, tinha conseguido um bom resultado, e minha vara sumiu. Senti que minha chance de medalha foi tirada. Em Londres-2012, também foi uma situação inesperada, o clima não ajudou. E no Rio eu tinha conseguido o melhor resultado da minha vida dois meses antes, mas a hérnia é algo sobre o que não temos controle. Acho que a do Rio foi a mais difícil, porque era meu ano de despedida. Claro que queria disputar uma medalha, mas saí mais chateada por não ter conseguido fazer nada. Minha cabeça sabia o que fazer, mas o corpo não obedecia. Em todas eu saí bem chateada, mas essa foi mais difícil, porque em todas as outras vezes, indo bem ou mal, sabia que teria a oportunidade de me superar no ano seguinte. Agora acabou de vez. Tentei aproveitar o máximo possível dos treinos e competições, tinha consciência de que eram os últimos momentos e queria sentir esse gostinho.
Como você recebeu a notícia da hérnia? Eu estava em Mônaco, dois meses antes da Olimpíada. Fiquei em terceiro numa competição, treinei no dia seguinte e no meu dia de folga acordei com uma dor no pescoço. Meu fisioterapeuta fez massagem e achei que fosse só uma contratura, um torcicolo. Mas a dor foi piorando ao longo dos dias até que percebemos que tinha algo mais. Fiquei sempre em contato com meu médico, fiz consultas por Skype, o que dava. E tentei competir em Londres, mas não conseguia,,, meu cérebro mandava uma mensagem, mas meu braço não obedecia. Na volta ao Brasil, fui ao médico e ele me disse que era uma hérnia. Eu me assustei, mas ele disse que não havia um prazo e que, se tudo desse certo, eu poderia competir na Olimpíada. Eu fui me recuperando bem. Quando faltavam uns 10 dias, eu sentia pouca dor, mas meu braço não respondia. Ainda assim, eu sempre pensei positivo e acreditei que fosse me recuperar no dia da prova. Meu psicológico não atrapalhou, foi um problema físico. No aquecimento, senti que meu braço estava falhando, mas acreditei até o último salto que seria possível.
Alguma vez você se perguntou por que tantas coisas ruins aconteceram com você em Olimpíada? Acredita em algum tipo de carma? Não, eu encaro tudo com naturalidade, porque conquistei coisas que ninguém imaginava. Ganhei competições internacionais, viajei o mundo, conheci pessoas e culturas diferentes, bati recordes, estive entre as melhores do mundo durante 11 anos. Claro que é chato ir mal numa competição, principalmente na Olimpíada, que o mundo para ver, a repercussão é muito maior. Mas não me considero azarada, nada disso. Não reclamo, conquistei tantas coisas. Eu tento sempre ver o lado bom das coisas e aprender com meus erros.
Mas se arrepende de algo? Não, de nada. Muita gente me disse que eu não deveria ter disputado a Rio-2016 por estar lesionada, que acabei me expondo mais. Mas se não tivesse tentado nunca iria saber se poderia ter ganhado uma medalha. Ganharam com a minha melhor marca, por que eu não poderia ganhar? Então pelo menos fui lá e tentei. Quebrei a cara, mas não fiquei com essa incerteza.
Em Londres, muita gente considerou que você desistiu por causa do vento. O que acontece é que, se tiver um vento a favor, o atleta vai correr mais veloz e isso é melhor, ele pega uma vara com mais flexibilidade e salta mais. Tudo depende do peso, da velocidade, da técnica, da altura da barra. Quanto mais alta a barra, preciso de uma vara mais rígida, para que me jogue para cima e não para frente. Em Londres, era o contrário, eu estava com o vento contra, que deixa o atleta mais lento. E como minha corrida é mais técnica, subo mais o joelho, vou mais alto, e sou uma atleta leve, o vento interfere muito. As atletas mais pesadas foram as medalhistas e as mais leves, como eu, foram mal. Uma quebrou o pé, outra quebrou a mão, eu perdi a passada. Minha corrida tem de ser muito certinha e, em Londres, o vento estava girando muito e jogava a vara para o lado, então eu tinha de fazer muito mais força para acertar. O salto é diferente dos 100 metros rasos, por exemplo, em que todos encaram o mesmo vento. Eu acabei pegando um vento contra muito forte, esperei o máximo para ver se a força diminuía e, quando fui, não consegui atingir a velocidade ideal para decolar. Não deu nem para sair do chão. Só quem já passou por essa situação sabe como é.
E essa falta de conhecimento das pessoas que criticam não irrita? Lembro que no Pan de 2007, no Rio, ninguém entendia absolutamente nada do esporte, mas havia torcida. A partir daí, as pessoas foram conhecendo as regras, e sempre tentei ser o mais sincera possível e explicar como era o esporte, nunca fiquei inventando desculpa. Talvez justamente por isso tenha sido criticada. Mas o bom é que hoje as pessoas conhecem mais de salto com vara. Sempre lidei bem com as críticas, porque sei que o atleta está sempre exposto. Quanto melhores nossos resultados, mais estamos expostos. Claro que é chato ver as pessoas falarem sem entender do assunto.
Você acredita que teve o reconhecimento merecido do público? Sim, bastante gente reconheceu meu trabalho. Quem acompanhou toda a minha carreira sabe o que fiz, não só no Brasil, fora também. Fiquei bem contente com o reconhecimento. Meu sonho era esse, fazer as pessoas acompanharem uma prova em que o Brasil não tinha tradição. Estou contente com tudo o que fiz, me esforcei ao máximo, me dediquei. Saio satisfeita, porque fiz muito mais do que eu imaginava.
Sente que o reconhecimento aumentou depois da aposentadoria? Pode ser. Realmente, depois que parei vi mais gente falando da minha história. Não imaginei que tanta gente tivesse acompanhado minha carreira e senti que as pessoas deram mais valor.
A Yelena Isinbayeva falou com você? Não, não cruzei com ela depois disso.
E como é sua condição de vida hoje? Conseguiu construir uma situação financeira estável? O atletismo não tem nada a ver com o futebol, nem mesmo com o vôlei, o basquete, que pagam bem. Mas compete muito no exterior, ganhei algumas premiações em dólar, economizei, tenho meu apartamento. Eu me preparei para parar e ter um ano tranquilo para decidir o que fazer. Continuo com o salário do clube. Tenho uma vida legal, mas não posso sair rasgando dinheiro.
Acredita que, depois da Olimpíada no Brasil, o investimento no esporte diminuirá muito para o próximo ciclo olímpico? Realmente existia um medo pós-Olimpíada. Eu posso falar do meu clube, que quer continuar no esporte, tem seu centro de treinamento em São Caetano, e aumentou o número de atletas, pensando em Tóquio-2020. Então, para mim nada mudou.
Pensa em ser treinadora? Não. Sou formada em fisioterapia e nunca quis fazer Educação Física, porque não queria ficar dando treino, não é meu perfil. Gosto de dar meus palpites, falar com os atletas mais novos. Quero continuar envolvida com o esporte e ver os mais jovens se desenvolverem..
Você se sente de alguma forma responsável pelo ouro do Thiago Braz? Sim. O Thiago sabia dos meus resultados e do trabalho do Élson, meu treinador (e marido) e procurou nosso grupo ainda jovem para se desenvolver. Ele veio treinar, ganhou títulos, e é campeão olímpico graças ao crescimento que conseguimos. Quando comecei, não tínhamos material, não tínhamos vara, colchão de qualidade. Era difícil sair do Brasil para competir, precisávamos de contatos. Quando o Thiago entrou, as coisas já estavam no caminho certo, ele se beneficiou das dificuldades que eu passei.
Foto Paulo Vitale