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Manuel Cuesta Morúa

A próxima revolução

O historiador cubano integra uma organização que reuniu todos os partidos clandestinos de Cuba e que espera lançar 52 candidatos independentes nas próximas eleições na ilha

Por Duda Teixeira

query_builder 14 out 2016, 17h50

Em Cuba, onde só é permitido um partido, o Comunista, e onde a repressão tem um escritório em cada esquina, é preciso coragem para defender um ponto de vista político dissonante. Inspirada na Mesa de Unidad da Venezuela (MUD), que desde 2008 reúne os partidos de oposição nesse país, foi criada em Havana, este ano, a Mesa de Unidade para a Ação Democrática (MUAD). Entre os objetivos está o de reformar a lei eleitoral da ilha para poder inscrever 52 candidatos para as eleições municipais no final de 2017 e competir no pleito geral de 2018 — ano em que o ditador Raúl Castro prometeu se aposentar. Um dos coordenadores desse movimento é o historiador Manuel Cuesta Morúa. Em março, ele foi um dos dissidentes cubanos escolhidos pelo governo americano para se reunir com o presidente Barack Obama durante sua visita a Cuba. Em entrevista a VEJA, por telefone, Cuesta reconheceu avanços recentes na sociedade cubana, mas lamentou que o governo, ao perceber que corria o risco de perder o controle político, paralisou as reformas econômicas em curso.

Desde que o senhor se encontrou com Obama em março, em Havana, o que mudou em Cuba? As coisas mudaram um pouco, mas para pior. A visita gerou um pânico dentro do Estado. O governo agora tem um temor imenso em relação às reformas econômicas que tiveram início em 2011. Essa reação pode ser constatada principalmente na repressão aos cuentapropistas (trabalhadores autônomos, que não são funcionários do governo). Depois de permitir que comerciantes e ambulantes montassem lojas ou andassem com carrinhos vendendo hortaliças e bananas, o governo tem mandado a polícia multar e deter essas pessoas. Muitas estão tendo suas mercadorias confiscadas. Essas punições violentas estão acontecendo em todo o país e geram uma tensão tremenda. Em protesto contra os ataques aos cuentapropistas, alguns dissidentes, como Guillermo Fariñas, de Santa Clara, fizeram greves de fome recentemente.

Por que as reformas econômicas, iniciadas por Raúl Castro em 2011, agora provocam tanto temor em seu governo? Muitos desses negócios são bastante prósperos. Outros, nem tanto. Ainda assim, todos têm uma tendência natural a se expandir. A multiplicação deles poderia fortalecer os setores medianos da nossa sociedade. Seria um fenômeno parecido com o que aconteceu nos dois primeiros anos da gestão Lula, no Brasil, quando o governo estava focado em tirar muita gente da pobreza e em aumentar o contingente classificado como sendo de classe média. Para os dirigentes cubanos, contudo, isso não interessa. Eles sabem que é muito mais difícil ter um controle político da classe média, que poderia começar a pedir mais liberdades e um espaço maior para a sociedade civil.

O senhor pode ser mais específico sobre o que seriam essas demandas da classe média? Uma pesquisa feita pelo instituto Bendixen and Amandi em abril do ano passado mostrou que cerca de 65% dos cubanos querem mais partidos em Cuba. Desse total, metade disse ter uma opinião negativa sobre Raúl Castro. É claro que, para a ditadura, é imperativo conter esse desejo. O receio que o governo tem em relação à classe média é até maior que o pavor que a Espanha tinha dos comerciantes em Cuba na época colonial, que almejavam a independência. Apesar das mudanças nas últimas décadas, há uma clara continuidade histórica neste aspecto.

Se esse perigo não é novo, qual foi o cálculo do governo cubano ao iniciar essas reformas há alguns anos? A ditadura cubana imaginou que o reconhecimento por parte dos americanos atrairia empresas interessadas em investir no país, em parceria com o Estado. Até agora, porém, nossos governantes não encontraram sócios que aceitem negociar apenas com a ditadura. Todos os que apareceram querem estar abertos também a parcerias privadas. Os dirigentes cubanos ainda têm esperanças de que encontrarão parceiros querendo assinar contratos apenas com eles, mas ainda não conseguiram transformar esse sonho em realidade.

"Uma avaliação do impacto das reformas no porto de Mariel na economia revela que o investimento brasileiro não foi produtivo para ninguém, exceto para quem já cobrou o cheque"

Companhias aéreas comerciais americanas já começaram a voar direto para Cuba. O que aconteceu com o discurso de que o embargo americano é o responsável pelos males do país? Esse subterfúgio há tempos não é compartilhado pela população. Os cubanos sabem muito bem que a carência e a miséria em que vivemos não são causadas pela política americana, mas pelo embargo interno do próprio governo, que bloqueia todo o esforço feito por negociantes privados e pelas pequenas empresas. O ponto mais positivo da visita de Obama é que ela deixou claro que a Guerra Fria acabou. O conflito entre os Estados Unidos e a União Soviética foi transferido para uma disputa entre o governo cubano e a nossa sociedade. Essa dicotomia hoje é percebida com uma claridade impressionante, está mais cristalina do que as águas das nossas melhores praias.

Os cubanos querem ser de classe média? Sem dúvida. Querem se vestir melhor, comprar coisas, ter um carro. A maioria quer abrir um negócio. Impedidos de fazer isso em Cuba, muitos ainda migram para os Estados Unidos. Os estudos sobre os migrantes cubanos mostram claramente que eles querem ser de classe média, querem empreender. É uma migração relativamente ordenada e estável.

A MUAD, organização à qual o senhor pertence, reuniu vários grupos clandestinos da sociedade civil em torno de propostas democráticas. Teria sido possível fazer isso antes da aproximação diplomática entre Estados Unidos e Cuba? Há alguns anos, até se esboçou a intenção de fazer algo parecido, mas era mais complicado. Hoje, foram preenchidas várias condições para tornar isso possível. Há uma ampla sensação de esgotamento. As pessoas estão cansadas do governo e de tudo que ele representa. Então, muitos passaram a achar que chegou o momento de fazer algo. Há um sentimento de urgência no ar e os cubanos tornaram-se mais abertos para ouvir as opções que existem. Ficou mais fácil falar com as pessoas, que geralmente hesitam em se comunicar e desconfiam dos outros. Essa mudança no clima desencadeou quase que automaticamente entre nós, dissidentes, um sentimento de que deveríamos unir forças para articular uma alternativa física, social e política. Com a internet tornou-se mais fácil divulgar nosso trabalho para os cidadãos insatisfeitos. Além disso, a autorização para viajar ao exterior contribuiu para que nos fortalecêssemos. Ao sair da ilha, nós pudemos estabelecer relações mais próximas, cara a cara, com interlocutores em várias democracias. Essa interação potencializou nossos valores e o nosso trabalho.

O senhor teme que, quando Raúl Castro deixar o poder, a pressão externa por democracia em Cuba diminua e isso enfraqueça a oposição? Esse problema não existe porque muitos dos principais acordos feitos nesses últimos anos provocaram mudanças estruturais, que não podem ser desfeitas. Não são apenas tratados feitos para causar espetáculo e sair na imprensa mundial. As tratativas com a União Europeia incluíram a garantia da existência de um diálogo político interno, que incluiu o tema do respeito aos direitos humanos. A mesma preocupação apareceu nos acertos com os Estados Unidos. Antes, a pressão externa era mais política e midiática, mas não teve qualquer efeito real e positivo para alcançar o que é fundamental, que é o respeito aos direitos humanos em Cuba. A meu ver, esse novo jeito de fazer pressão sobre o regime cubano, por meio de negociações, é muito mais efetivo.

"O ponto mais positivo da visita de Obama é que ela deixou claro que a Guerra Fria acabou. O conflito entre o EUA e URSS foi transferido para uma disputa entre o governo cubano e a sociedade"

Nos últimos anos, a construtora brasileira Odebrecht, com um empréstimo do BNDES, realizou reformas no porto de Mariel, em Cuba. Falava-se que, com esse investimento, o Brasil conquistaria um lugar importante em um futuro processo de abertura de Cuba. Isso teve algum efeito? Creio que não. Uma avaliação do impacto das reformas no porto de Mariel na economia revela que o investimento brasileiro não foi produtivo para ninguém, exceto para quem já cobrou o cheque. O porto não está gerando rentabilidade, não atraiu recursos e nem fortaleceu a produção interna.

O senhor trabalhava no Escritório do Historiador de Havana, um órgão oficial que conta a história da cidade. Por que saiu de lá? Fui expulso em 1991 por razões políticas. Comecei a organizar debates com colegas sobre o neomarxismo e a Escola de Frankfurt, principalmente sobre o filósofo alemão Jürgen Habermas. Fizemos discussões sobre a pós-modernidade e a esquerda moderada mundial. Eu cultivava uma outra visão do marxismo e, sobretudo, criticava o stalinismo e o leninismo. Essas conversas desagradaram as autoridades. Quando descobriram o que estava acontecendo, fui demitido sumariamente.

Não se pode falar em neomarxismo em Cuba? Fui acusado de ação contrarrevolucionária e diversionismo ideológico. Segundo eles, eu não poderia falar sobre esses temas pois era funcionário do Estado.

O que aconteceu depois? Tentei trabalhar como contínuo em uma pequena empresa, mas também fui expulso. Não tive mais qualquer chance. Atualmente, não posso mais ter qualquer emprego no governo. Como historiador, todas as portas me foram fechadas. Então, nas últimas duas décadas, o que tenho feito é escrever. Nos meus textos, tenho dito de mil formas possíveis, sempre com a decência necessária, que o governo cubano não tem trabalhado para o bem-estar do cidadão. Ao mesmo tempo, tenho feito todo o possível para ajudar nosso povo a construir seu próprio destino, o que significa eleger nossos representantes livremente. Nasci depois da Revolução de 1959 e acho que as coisas que herdamos não precisam continuar sempre como são.

Como o senhor se mantém, já que não pode trabalhar? Tenho recebido ajuda de amigos no exterior.

Foto por Antonio Milena