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Rico Malvar

Ler pensamentos é algo que não está longe

Brasileiro que chefia uma das áreas de pesquisa da Microsoft diz que inteligência artificial vai superar a capacidade humana de traduzir linguagens e mudará a forma como as pessoas trabalham hoje

Por Anaïs Fernandes

query_builder 6 nov 2017, 20h30

Aos 60 anos, o brasileiro Rico Malvar é cientista-chefe Microsoft e gerencia o grupo de projetos de acessibilidade. Coordena projetos estratégicos envolvendo os vários grupos de pesquisa da divisão de pesquisa de inteligência artificial, que hoje tem 8.000 cientistas espalhados por sete laboratórios no mundo e quatro Advanced Technology Lab (ATL) — um deles, inclusive, no Brasil. “O ambiente de inovação precisa ser tolerante ao erro”, afirma. “Diria que 90% das pesquisas que fazemos não vão dar em nada. Mas os outros 10% são sucessos estrondosos.” O carioca, que decidiu ser engenheiro aos 8 anos de idade, também aponta os próximos passos da empresa e prevê que máquinas terão a capacidade de ler o pensamento dos humanos em um futuro não muito distante.

Como o senhor entrou na Microsoft? Numa tarde de domingo, em 1997, eu estava pensando: “Poxa, o departamento de pesquisa da Microsoft está crescendo, mas não tem uma área de processamento de sinais multimídia, como áudio e vídeo". Peguei o contato do CTO [diretor-chefe de tecnologia] e enviei a ele um e-mail com a sugestão de que a Microsoft deveria investir em pesquisas na área. Na segunda-feira de manhã, recebi um e-mail do departamento de recrutamento da Microsoft dizendo que queriam coordenar minha viagem para ir lá conversar com eles. Eu pensei: “Oba, não levou nem 24 horas".

Qual era a situação da empresa na época? Ela tinha acabado de lançar o Windows 95. Não havia Xbox, nada disso, mas já se começava a pensar em colocar música e vídeo no computador. A Microsoft estava criando uma divisão de Windows Media, que foi de onde saiu o Windows Media Player, mas não havia um time de pesquisa na área. Foi isso que eu propus, e montamos. Estou no departamento de pesquisa desde então. Comecei gerenciando um pequeno grupo, de dez a doze pessoas. Aos poucos, fui crescendo. Em dez anos, virei diretor-geral do laboratório de Redmond, com cerca de 300 pessoas. Depois, passei a cientista-chefe, cargo em que estou há uns sete anos. O que eu faço muito é ajudar grupos diferentes de laboratórios do mundo todo a formar times, começar um novo projeto.

Como é ser brasileiro em um gigante estrangeiro? Houve preconceito em algum momento? Felizmente, nunca fui exposto a nenhum preconceito. Sempre fui muito bem tratado, o que importava era minha capacidade de gerenciar e conduzir pesquisa e desenvolvimento tecnológico. Quando eu digo que sou brasileiro, as pessoas naturalmente perguntam se jogo futebol, se tomo caipirinha, me pedem dicas sobre o Rio de Janeiro, já que sou carioca. Ser brasileiro ajuda a “quebrar o gelo” e a criar um ambiente mais agradável de colaboração. Os cientistas e engenheiros falam as mesmas línguas (matemática, linguagens de programação), não importa onde nasceram.

Como surgem as novas ideias? É uma coisa meio maluca, para ser bem sincero. Não é um processo muito organizado, porque não é para ser. Pesquisa é meio assim, os "geniozinhos" todos trabalhando — e nós temos milhares deles. Todo dia surge uma ideia louca. A grande maioria não dá certo. Mas algumas dão. E quando dão, surgem serviços como Skype Translator (traduz chamadas de voz e texto no Skype), Kinect (sensor de movimento desenvolvido para o Xbox 360), HoloLens (óculos de realidade aumentada) e todos os cognitives services.

O que são esses “serviços cognitivos”? São uma série de serviços inteligentes que colocamos na nuvem, que visam a reproduzir capacidades humanas como visão, audição e voz. Por exemplo: você tira uma foto. Como ser humano, pode ver o que há nessa foto. Mas e se você tirar 1 milhão de fotos? Vai ser difícil olhar todas. Aí você pode jogar essas fotos na nuvem, e ela lhe dá uma descrição do que há em cada foto. Assim, é possível, por exemplo, tirar inúmeras fotos de uma floresta e monitorar, perceber se há alguma modificação de padrão na floresta.

Isso é inteligência artificial (IA)? É aqui que ela entra. Antigamente, a gente programava o computador para fazer isso e aquilo, e ele fazia. Na IA, o computador analisa os padrões dos dados, reorganiza-os e diz o que esses dados podem significar. A inteligência artificial é tão importante que todos os aplicativos e serviços na área de informação vão virar inteligentes, não haverá espaço para um só deles que não tenha essa característica. Daqui a alguns anos, a IA vai superar a capacidade humana de entender e traduzir linguagens, o que aumentará nossas capacidades. Por exemplo, uma pequena empresa de qualquer lugar do mundo poderá pensar em um mercado mundial, sabendo que a linguagem não será uma barreira.

"Hoje, você pode escrever ou falar aquilo de que precisa para a Cortana (assistente pessoal virtual da Microsoft). Quem sabe daqui a algum tempo você não vá apenas pensar, e a gente consiga ler seu pensamento? Isso não está muito longe, não"

Os tradutores automáticos ainda deixam a desejar. As promessas tecnológicas costumam ser frustrantes ou são as nossas expectativas que estão cada vez mais altas? Com a inteligência artificial, em especial os serviços cognitivos, estamos estabelecendo um padrão bem alto de comparação para a máquina: o próprio homem. Como cientista, posso dizer que é fascinante quando podemos celebrar uma conquista como a criação de um sistema de reconhecimento de voz que comete erros iguais aos de um tradutor profissional, ou até menores. Esse avanço já está sendo incorporado ao Microsoft Translator, um aplicativo disponível em todas as plataformas que você pode baixar no seu smartphone e que permite conversar com pessoas em vários idiomas. A tradução é perfeita? Ainda não. Mas ficará, com o tempo, conforme a IA for entendendo os usos das palavras.

A Microsoft perdeu parte de sua imagem de empresa inovadora nos últimos anos. Ela ficou muito presa aos sistemas operacionais? A Microsoft se transformou muito nos últimos anos, num movimento que coincide com a chegada de Satya Nadella, nosso novo CEO. Ele estabeleceu uma nova missão, que é a de empoderar pessoas e organizações para que tenham condições de fazer mais com tecnologia. Criamos três metas: construir a nuvem inteligente, reinventar a produtividade e fazer a computação mais pessoal. Windows e Office, as marcas mais conhecidas da companhia, se transformaram. Nosso investimento na nuvem, para que ela seja ao mesmo tempo muito inteligente e segura, e resultado de muitos anos de pesquisa em todas as áreas de ciência da computação, nos coloca como a empresa mais inovadora nesse novo mundo de aplicativos inteligentes, que só são possíveis graças à enorme capacidade de IA na nuvem. A inovação faz parte de nosso DNA e está enraizada em nossa cultura.

O que falta para as empresas brasileiras criarem um ambiente mais favorável à pesquisa e à inovação? Produzir inovação nacional é um desafio histórico. Entendo que precisamos buscar formas de fazer com que empresas e governos trabalhem de maneira mais unida. Trata-se de um caminho fundamental para a criação de empregos de alto valor, principalmente nesta nova era em que estamos entrando. Uma questão fundamental é que o ambiente de inovação precisa ser tolerante ao erro. Na Microsoft, conduzimos diversas pesquisas e experimentos que não vão se tornar um produto final, mas geram conhecimento científico. Diria que 90% das pesquisas que fazemos não vão dar em nada. Mas os outros 10% são sucessos estrondosos, que trazem resultados importantes para a empresa e contribuem para transformar vidas e organizações com tecnologia. Quando existe um ambiente favorável à inovação, o talento local aparece.

Como vocês lidam com erros nesse ambiente de inovação? Para quem trabalha com inovação, o que o senso comum chama de fracasso, na verdade, é um momento rico de aprendizado. Vamos tomar como exemplo a Tay, o robô de conversas que a Microsoft lançou no ano passado e que, em 24 horas, aprendeu ofensas racistas e sexuais, até que o tiramos do ar. Além de científico, foi um experimento social e cultural. Infelizmente, a Tay refletiu muito bem os elementos mais sombrios da internet e foi preciso interromper sua atividade. Apesar disso, aprendemos muito com o episódio. Hoje, já limitamos nossos sistemas de IA para barrar insultos, palavrões e manifestações de ódio. Um dos robôs que lançamos posteriormente, a Xiaoice, tem 40 milhões de usuários na China e dá 23 respostas em média em uma conversa. E o que é mais importante, esses projetos nos permitem aprimorar a pesquisa em inteligência conversacional. Isso vai influenciar as ferramentas e serviços que vamos oferecer no futuro.

Em que projeto o Microsoft Research está trabalhando agora? Nessa área de inteligência, uma parte complementar é a interface com a pessoa. Hoje, você pode escrever ou falar aquilo de que precisa para a Cortana (assistente pessoal virtual da Microsoft). Quem sabe daqui a algum tempo você não vá apenas pensar, e a gente consiga ler seu pensamento? Isso não está muito longe, não. Agora, o que estamos fazendo: imagine que você não consegue falar nem mexer as mãos. Como vai colocar um texto no computador? Nós criamos um teclado que é controlado pelos olhos. Com o movimento ocular, a pessoa “bate” as teclas. Depois, dá o play no que escreveu e consegue interagir com outra pessoa. Esse é um projeto que já está bem avançado e a gente espera trazer logo para o mercado.

Como o senhor imagina o futuro? Há várias dimensões. O que eu falei sobre ler pensamento é sério. Já existem certos"chapeuzinhos'"que você coloca na cabeça com sensores que medem as ondas cerebrais. Hoje, ainda está um pouco difícil decodificar essa informação, mas, à medida que essa capacidade for aumentando, chegará um momento em que pessoas que não mexem nem os olhos conseguirão se comunicar com as outras. Imagino também um futuro em que nenhum carro terá motorista. E, se esse futuro chegar, acredito que a quantidade de acidentes vai diminuir, porque a nuvem não vai saber apenas onde um carro está, ela vai saber onde todos os carros estão. E mesmo na computação do dia a dia, as assistentes pessoais vão nos tornar cada mais eficientes. Em um hospital, por exemplo, a inteligência artificial nunca vai fazer um diagnóstico como um médico faz, mas ela pode analisar todas aquelas informações sobre o paciente e dizer: “Olha, não vi nada de anormal em 48 desses raios-X, mas estes dois têm alguma coisa estranha, você não quer dar uma olhada?”.

"As pessoas vão continuar trabalhando, os empregos vão continuar existindo, só que vão se transformar. A tecnologia tem feito isso com a gente há muito tempo. Toda tecnologia ajuda, mas principalmente a inteligência artificial vai nos levar a novos níveis"

As pessoas vão trabalhar menos, então? As pessoas vão trabalhar de forma diferente. Você está sempre brigando com prazos, está tudo sempre em cima da hora. Mas parte do seu tempo está sendo dedicada a fazer coisas simples. A inteligência artificial vai fazer isso, e você terá um tempinho a mais para produzir melhor e ficar mais satisfeito com o seu trabalho. As pessoas vão continuar trabalhando, os empregos vão continuar existindo, só que vão se transformar. A tecnologia tem feito isso com a gente há muito tempo. Toda tecnologia ajuda, mas a IA principalmente vai nos levar a novos níveis.

Quais deficiências de formação e cultura um jovem brasileiro pode encontrar ao estudar fora ou trabalhar em um país como os EUA? O que vejo é um mercado de trabalho cada vez mais globalizado. Aqui temos gente de todas as partes do mundo, inclusive outros brasileiros. Quando têm acesso à educação em áreas tecnológicas, os brasileiros são tão bons quanto os melhores profissionais de qualquer país do mundo. A qualidade de educação no Brasil é boa, mas pode ser melhorada, principalmente através de investimentos do governo e da indústria que melhorem o acesso de estudantes a tecnologias modernas.

O ambiente de tecnologia é machista? Há preocupação com equilíbrio e inclusão de gênero na equipe que coordena? Se você comparar a situação atual com a que eu vivia no início da minha carreira, nos anos 80, verá que tivemos avanços. Aprendemos que precisamos ter uma equipe diversificada para que possamos ser um espelho fiel da sociedade e desenvolver produtos para estes consumidores. Quando pensamos em diversidade, vamos bem além da questão de gênero. Queremos ter diversidade de raça, de orientação sexual, de origem social, de formação acadêmica, de experiência de vida, e também de métodos de trabalho e de como conduzir projetos de inovação. Recentemente, lançamos um aplicativo de celular chamado Seeing AI, que descreve para pessoas com deficiência visual o que está acontecendo ao redor. Foi desenvolvido por um pesquisador que tem deficiência visual. É uma prova de que seremos mais inovadores se soubermos exatamente de que a sociedade precisa.

Foto: Roberto Setton/Valor/FOLHAPRESS