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Julio Borges

'Travamos uma batalha existencial'

O presidente da Assembleia Nacional da Venezuela fala da determinação da oposição em resistir às investidas autoritárias de Nicolás Maduro e garante que os dias do sucessor de Chávez estão contados

Por Nathalia Watkins, de Caracas

query_builder 14 jul 2017, 21h10

Desde as eleições de dezembro de 2015, a Assembleia Nacional da Venezuela é de maioria opositora - e sofre boicotes por parte do presidente Nicolás Maduro. A partir de janeiro, a irritação do governo aumentou. O Poder Legislativo é comandado pelo deputado Julio Borges, um dos mais ferrenhos críticos do regime.  Já em 2013, antes que ataques contra deputados se tornassem corriqueiros, Borges teve a mandíbula quebrada ao ser atacado por aliados do chavismo. Advogado de 47 anos e pai de quadrigêmeos, Borges é pós-graduado em filosofia política nos Estados Unidos e em políticas públicas pela Universidade de Oxford.  Mas não há academia que prepare para seu trabalho atual, a presidência do Poder Legislativo venezuelano. Além de enfrentar o esvaziamento das funções da Assembleia e o avanço totalitário de Maduro, Borges precisa lidar com os abusos e a violência estatal contra opositores. Em uma entrevista concedida a VEJA na sede de seu partido, o Primeiro Justiça, em Caracas, Borges garante que os dias do governo estão contados.

Como o governo vai cair? O governo já caiu. Não há governabilidade, autoridade ou legitimidade. O único que não se deu conta de que já caiu é Maduro. O custo que a Venezuela está pagando por ele não ter entendido que cometeu um golpe de Estado que o mundo rechaça é tremendo. Dói porque existe uma espécie de violência que está se enraizando na Venezuela, e que não só tem a ver com a violência política e com a repressão, mas também com a violência que é não conseguir alimentos, ter a inflação mais alta do mundo, ser o país mais perigoso e com mais alta criminalidade do mundo. Há um dado que ainda me impacta: somos o país com mais mortes por granadas do mundo, segundo as Nações Unidas, e nós não estamos em guerra. Tudo isso configura o nível de degradação doa Venezuela. O único interessado em manter isso é Maduro.

O que acontecerá se o presidente não deixar o poder por iniciativa própria? Eu não tenho dúvidas de que Maduro vai sair do poder, hoje ou amanhã. Estamos lutando para que isso aconteça. Estamos falando de um povo que está há mais de 100 dias nas ruas com a mesma energia do primeiro dia. O país está determinado na batalha existencial que determinará se nosso futuro será a liberdade ou nos tornarmos uma réplica de Cuba. É importante ressaltar que é isso que está em jogo na Venezuela: uma reprodução de Cuba ou a possibilidade de ter uma democracia. As pessoas estão dispostas a dar tudo de si mesmas e eles deram muito, até própria vida. Cerca de noventa jovens morreram por isso. O importante é seguir lutando, hoje, amanhã e depois de amanhã. O objetivo está claro e as pessoas não vão retroceder.

Quais são os cenários possíveis para a saída de Maduro? Especular cenários é um exercício fútil porque pode acontecer de tudo. Enquanto conversamos, pode estar acontecendo um golpe de Estado, uma ruptura social pode estar em curso e talvez Maduro esteja fugindo do país. A Venezuela é o país que tem o maior grau de incerteza do mundo. O certo é que teremos uma Assembleia Constituinte que foi convocada por Maduro para o dia 30 de julho e essa constituinte está se convertendo em seu maior inimigo. A convocatória fracionou as Forças Armadas e fez com que o país inteiro se levantasse contra ela, até instituições como a Procuradoria Geral. A Constituinte fez com que o próprio chavismo a veja como um mecanismo para sair de Maduro. Por isso, o dia 30 de julho de vai decidir muito do futuro próximo do país. O único cenário que podemos traçar neste momento é a luta contra essa Constituinte fraudulenta.

O senhor tentou contatar diretamente o presidente Maduro para resolver a crise? A solução política passa por vários elementos muito simples, que foram tornados públicos. O primeiro é a eliminação da Constituinte, que até o papa Francisco está pedindo a gritos. Em segundo lugar, propusemos uma solução que é boa para todos, que é criar um grupo de países fiadores: dois países escolhidos pelo governo, dois da oposição, ou três do governo e  três da oposição, que possam construir uma agenda democrática. Isso se traduziria na criação de um cronograma eleitoral, com todas as garantias e respeito à Assembleia Nacional e outras instituições como a Promotoria. O último elemento que exigimos é a libertação dos presos políticos. Sempre que podemos, mandamos a mensagem ao governo de que ele precisa agir com mais responsabilidade e com sensatez neste momento para buscar a construção de uma solução como esta.

“O governo já caiu. Não há governabilidade, autoridade ou legitimidade. O único que não se deu conta de que já caiu é Maduro”

Existe uma negociação em curso com o Palácio de Miraflores? Nesse momento, não existe canal de comunicação com o governo. Quisemos construir esse canal com países fiadores, mas isso não aconteceu.

Alguns suspeitam que a nova Carta Magna já foi até escrita. O senhor acredita nisso? Tenho certeza. A Constituição nova protocolará o sistema autoritário cubano na Venezuela. Maduro é apenas uma peça, um representante dos interesses de Cuba no país.

O que mantém Maduro no poder? Sem dúvida alguma, as Forças Armadas. Ou, melhor dizendo, uma parte delas. Os militares são um espelho do país: se Maduro tem 15% de popularidade, dentro dos quartéis essa aprovação é igual ou pior. Esse pequeno grupo, com o uso da força e da arbitrariedade, é o que dá sustentação ao sistema totalmente antidemocrático. Mas a boa notícia é que a imensa maioria dos militares quer um país democrático, institucional, onde não haja filas ou violência. Isso é, para nós, uma garantia de que poderemos ter no futuro uma Força Armada democrática como parte do desenvolvimento e da construção de um país pacífico.

Assim como as Forças Armadas, o chavismo se fraturou. O que é o chavismo hoje? Após a morte de Hugo Chávez, Maduro chegou ao poder com uma eleição muito dolorosa. Ele perdeu por uma margem muito pequena, mas tinha o apoio de mais ou menos a metade do país. Hoje, não chega a 15%. Ele dilapidou a liderança de Chávez.  Além disso, há um grupo que se diz “chavista não madurista”, ou seja, os que de fato acreditam em Maduro são poucos. Maduro, no final das contas, representa Cuba na Venezuela, mas não representa os venezuelanos. A Venezuela se converteu em uma colônia cubana.

Por que os militares mantêm o respaldo a Maduro? Se eles pudessem votar na Venezuela e escolher entre uma mudança democrática ou seguir no caos, estou certo de que ganharia a mudança democrática por 90% dos votos.  Mas, assim como em outras instituições, as Forças Armadas são controladas por um pequeno grupo do alto escalão. O mesmo acontece com a Justiça, controlada por um pequeno grupo de magistrados na Sala Constitucional. Estou seguro de que a Força Armada, de forma geral, é contra o que acontece no país.

O que virá depois de Maduro? Não há maneira de alcançar uma transição no país sem um governo de unidade nacional. Precisamos de uma administração que consiga recriar um grande centro político de acordo nacional e de restituição econômica do país. A situação econômica é dramática, a Venezuela está quebrada. É preciso criar confiança dentro e fora do país e isso se faz com um programa para reerguer a economia, aumentar a produtividade e reconstruir a indústria petroleira. Vai ser um processo titânico.

Em uma transição, como ficaria o controle sobre os grupos paramilitares, os colectivos? Esses grupos são altamente repressores, mas não têm nenhuma força ideológica, nenhuma convicção. São mercenários que infelizmente se vendem a quem paga, têm impunidade total para fazer o que quiserem e, claro, são um problema. Mas não o problema principal. Se hoje ocorre uma transição democrática, o país inteiro aplaudirá. Quantas vezes conversei com milicianos idosos que estão desesperados porque não têm comida? Eles sofriam da mesma maneira que o restante do país. Todos vão aplaudir uma mudança porque vai significa paz, democracia, produção, oportunidade.

“Enquanto conversamos, pode estar acontecendo um golpe de Estado, uma ruptura social pode estar em curso e talvez Maduro esteja fugindo do país. A Venezuela é o país que tem o maior grau de incerteza do mundo”

O Brasil tem ajudado de alguma maneira? O Brasil ajuda muito. Contamos com o suporte do chanceler José Serra, e agora contamos com o apoio de Aloysio Nunes, com quem falei há 48 horas. Conversamos praticamente todas as semanas e sei que, antes de ser chanceler, ele estava sumamente interessado no tema venezuelano.

Poderíamos ajudar mais? A situação é tão dramática que tudo é possível. Estamos no momento mais crítico de um dos conflitos mais graves do planeta.

O senhor já foi espancado na Assembleia Nacional, em 2013. O que mudou desde então da rotina de quem se opõe ao governo? Vivemos com a violência política o tempo todo. Os grupos paramilitares cercam a Assembleia Nacional todos os dias e já tentaram incendiar meu carro. Recentemente, mantiveram deputados sitiados por horas. Incidentes assim acontecem diariamente. É a violência de um presidente que todos os dias está na televisão nos ameaçando com prisão, condecora os que nos golpeiam e diz que são heróis. Sentimos a perseguição no nosso cotidiano e no de nossas famílias na forma de grampos telefônicos e outras vinganças como a suspensão dos passaportes. Somos hostilizados o tempo todo. É uma tentativa constante de quebrar o espírito de cada um de nós. E nossa luta é resistir. Nosso campo de batalha não é somente a rua, ou a Assembleia Nacional, os meios de comunicação: o campo de batalha final é a consciência.

Como a relação de Maduro com o narcotráfico mudou nos últimos meses? Seria irresponsável da minha parte falar da relação de Maduro com o narcotráfico. O que posso dizer é que, lamentavelmente, a Venezuela foi tomada pelo caos e pela falta de institucionalidade de tal maneira que virou um paraíso para o crime organizado em todas as suas formas: contrabando de armas, contrabando de gasolina, contrabando de drogas, contrabando de comida. A Venezuela se converteu em um paraíso de corrupção onde os que têm mais poder se alimentam de todas essas fontes e talvez nem saibam qual o limite entre uma e outra. No final, é um enorme negócio de crime organizado que toca todos os níveis e todas as instituições.

Quantas leis a Assembleia Nacional conseguiu aprovar? Todas as leis aprovadas foram revogadas pelo Supremo Tribunal de Justiça, com exceção de uma lei sobre comunicações nos presídios. A última lei rejeitada exemplifica a contradição desse realismo mágico venezuelano: a legislação tratava da previdência social à polícia, a mesma polícia que nos reprime. No entanto, o Supremo Tribunal de Justiça a considerou é inconstitucional. Então a lei dá direitos à polícia, o TSJ retira os direitos da Polícia, e os policiais reprimem os mesmos deputados que estão nas ruas. É parte do surrealismo que vivemos. Toda ditadura dá protagonismo ao absurdo e aqui não é diferente.

A oposição está preparada para uma transição? Há planos concretos para o que vem depois? Claro. O primeiro é criar um governo de unidade nacional que possa projetar a confiança necessária dentro e fora da Venezuela para implementar medidas básicas como o ajuste do câmbio, da dívida pública e tantas outras. É preciso dar um tratamento saudável para uma economia doente. Isso cria as bases para a restauração das liberdades básicas, como a separação dos poderes. O problema na Venezuela é tão grave que, ao final, o que falta é o ABC da democracia.  É uma luta que é pré-ideológica. Ela não é de esquerda ou de direita. O que buscamos é um governo civil, separação de poderes, economia sadia, direitos humanos. Só com isso, que soa tão básico mas que é um enorme desafio na Venezuela, é que esse país vai disparar como um foguete.

Foto: Manaure Quintero/VEJA