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Tite

'Não via os jogos da seleção, isso me machucava'

Em entrevista exclusiva, técnico da seleção brasileira revela por que não ligou para Dunga e Felipão, elogia comportamento de Neymar, fala sobre altos salários e até de política

Por Luiz Felipe Castro

query_builder 21 set 2016, 20h25

Tite já se sente em casa. Há três meses no cargo, se mudou para o Rio de Janeiro e demonstra intimidade com os funcionários da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), a quem cumprimenta, um a um, com um sorriso no rosto. A receptividade e a simpatia sempre foram suas marcas, mas chamam ainda mais atenção no antes carregado ambiente na sede da entidade, na Barra da Tijuca. As carrancas de Luiz Felipe Scolari e Dunga fazem parte do passado, um tempo que nem mesmo Tite gosta de lembrar. Com um discurso muito respeitoso em relação aos antecessores – contou que só não ligou para Dunga, pois não queria constrangê-lo –, Tite disse não ter acompanhado os jogos da seleção brasileira de 2014 para cá. O motivo: doía-lhe não estar no lugar de Dunga.

O ex-treinador do Corinthians jamais escondeu sua decepção por não ter sido o escolhido depois do fracasso na Copa, mas hoje se sente realizado com a oportunidade. Começou bem, com boas vitórias sobre Equador e Colômbia. Sem constrangimento, Tite deu detalhes de sua relação com Marco Polo Del Nero e já projetou um time com sua cara. “Eu gostaria da organização de 1994 com o talento de 1982.” Em uma conversa de mais de uma hora, na qual mostrou vídeos e explicou o papel de cada um de seus auxiliares, Tite abriu o jogo: falou sobre Neymar, fair play, altos salários e até política. Revelou o nome de um atleta que poderia ser convocado caso não estivesse na China. E contou o que espera da seleção brasileira no caminho rumo à Copa de 2018.

Com sua chegada, o Brasil jogou bem, venceu duas partidas e se recuperou na tabela das eliminatórias. O clima na seleção ficou mais leve. A relação com torcida e imprensa é uma preocupação? Quem está nessa posição tem de entender que crítica e elogio fazem parte do jogo e ninguém é contra ninguém apenas por ter uma opinião diferente. O técnico tem de passar maturidade para seus atletas. O jogador pode ter independência financeira e também sentimentos. Ter mais dinheiro não quer dizer que tem mais ou menos amor pela profissão. Estar na seleção deve ser uma relação de prazer.

O senhor acredita que até sua chegada os jogadores tinham menos vontade de estar na seleção? Não sei. Palavra de honra. Eu não acompanhava muito os jogos da seleção. Porque eu ficava muito voltado ao clube... (pausa) E também porque me machucava um pouco, eu entendia que poderia estar ali em 2014. Eu não queria fomentar sentimentos ruins. Com minhas fraquezas e limitações, ficava focado no meu trabalho no clube e tentava isolar. Não sou evoluído a esse ponto e por isso evitava assistir.

Como é a relação da comissão técnica com os dirigentes da CBF? Deve haver uma relação de confiança entre os três setores de hierarquia. Comissão técnica, atletas e a diretoria devem ter sintonia, porque pode refletir no trabalho do campo. Quando aceitamos vir para cá, o assunto mais importante era esse. Na primeira reunião, estávamos eu, meu auxiliar Cléber Xavier, o presidente Del Nero e o diretor executivo Rogério Caboclo. Expusemos nossas ideias. Eles nos disseram: ‘Somos a parte diretiva e tu tens a autonomia para buscar o aperfeiçoamento, aprimorar o centro de pesquisa e nós vamos dar todo o suporte.’ Perguntei se teria autonomia e eles me disseram que sim, e por isso aceitei.

O senhor passa a lista de convocados ao Del Nero antes de anunciar à imprensa? Sim. A primeira pessoa que sabe da lista é o presidente, por uma questão de lealdade e hierarquia. Ele não solicitou isso, mas eu faço questão.

Ele não interfere nas escolhas? Não. Isso nunca aconteceu comigo nem em clube. São questões de princípios. Ou se confia e respeita a hierarquia de cada um, ou não tem como trabalhar.

Em clube, os presidentes estão sempre muito presentes, em treinamentos, até no vestiário. O Del Nero também faz isso na seleção? Tenho pouco tempo de experiência com ele. O que fazemos sempre que estou na CBF é um almoço, às 13h, com as pessoas que nos visitam. Esse é o contato que temos, umas quatro vezes por semana.

Aos 19 anos, o Gabriel Jesus já pode ser o camisa 9 da seleção? O Gabriel pode jogar na ponta, mas de 9 ele é letal. Se ele recebe um passe por cima, contra uma defesa alta, com a velocidade que ele tem, só para dentro do gol. Além disso, conversei com Muricy Ramalho e Dorival Júnior e eles me disseram que o Neymar se sente mais confortável da esquerda para o centro, flutuando por trás dos volantes. E minhas observações sobre o Barcelona comprovaram que é mesmo ali que ele rende mais. No futuro, poderia levá-lo para a direita, mas esse é um estágio de evolução. O Gabriel Jesus pode ser o 9, tem todos os predicados. É jovem, vai desenvolver o cabeceio, o chute de perna esquerda...

"Acho que nós técnicos ganhamos mais do que é justo. Mas pouca gente sabe que passei nove meses desempregado, minha esposa trabalhando. Não queria sair de casa para não ser tachado de vagabundo"

O senhor chegou a criticar algumas atitudes de Neymar em campo e até hoje ele perde a cabeça em alguns momentos. Já tratou deste assunto com ele? Eu o critiquei em 2012, sim, mas é preciso analisar a crítica em cima de um momento, se não fica injusto. E eu torcia muito para que ele fosse para o Barcelona, sabia que o ele sofreria processo de evolução e amadurecimento. É um jogador muito diferente de quatro anos atrás. Ele sabe que ir para o gol é mais importante do que receber a falta. E ainda tem margem de crescimento, porque tem apenas 24 anos. É injusto compará-lo a Cristiano Ronaldo, que tem 31, e Messi, que tem 29. Eles estão num mesmo patamar de qualidade, mas são de gerações diferentes. O Neymar está evoluindo inclusive seu jogo de equipe.

É comum atletas de primeiro nível simularem faltas, tentando ludibriar os árbitros. Como o senhor trata disso com os atletas? Naturalmente teremos essas conversas. Sou um cara competitivo e, assim como me cobram correção, eu cobro dos outros. Peço que meus atletas não simulem, porque se caírem na área, terei confiança de reclamar com o árbitro. E, se ele simular, perderemos a razão de cobrar. Acontece o mesmo com o tal do “fair play”. Se for para jogar a bola para a frente e já pressionar o adversário, é melhor não fazer - fica com a bola e ataca. É mais digno do que brincar de faz de conta. Vi isso nos Emirados Árabes. O time adversário fez isso, eu olhei para o treinador deles e disse: “Fair play é a p.. que pariu.” Não é só brasileiro que faz, o Eden Hazard, belga e um grande jogador, por exemplo, às vezes faz também.

Mas essas simulações são incentivadas pelos técnicos? Por mim não. Tem uma história engraçada com o Romarinho, no Corinthians. Ele poderia ter feito o gol, mas preferiu cavar a falta. Mostrei o vídeo e disse que ele deveria ter ficado de pé e chutado. Num jogo contra o Santos, o zagueiro tocou nele, ele ficou de pé e errou o gol. Depois eu disse: “Se você caísse, seria pênalti...” Ai ele respondeu: "Ué, mas não era para eu sustentar e chutar para o gol?” (risos) Não pretendo ser poliana ou ingênuo, só não incentivo, porque acho que assim temos mais chances de sucesso.

Na seleção, o senhor poderá mudar bastante a equipe em cada convocação. Como encontrar o equilíbrio entre formar uma base sem abrir mão de atletas em bom momento? Esse é um dilema com o qual ainda estou me adaptando. Não posso prescindir de qualidade, não posso deixar de assistir aos jogos e ver quem está bem. Fechamos um grupo, mas com abertura.

O senhor convocou três jogadores (Gil, Paulinho e Renato Augusto) que estão na China. O fato de jogarem na Ásia os prejudica? Sim, ir para a China foi um risco que assumiram. O número de jogos e o grau de competitividade é menor. Vou confessar: o Jadson, por exemplo, é um jogador que poderia ser convocado se não estivesse na Série B da China. Mas estamos analisando tudo. O Matheus (Bachi, seu filho e auxiliar) viajou à China para analisá-los. E eles terão de se preparar mais, começam os treinamentos antes dos colegas.

O senhor disse que ligaria para todos os ex-treinadores da seleção para trocar ideias. Já falou com Felipão e Dunga? Ainda não. Com Felipão, preciso de mais tempo para as coisas se acertarem. Com o Dunga é diferente. Eu não queria colocá-lo em saia-justa. Eu me coloquei no lugar dele, não gostaria de ter meu trabalho interrompido. Vou ser direto: não concordei com a escolha do Dunga. Ponto. Mas acho que se deram a chance, ele deveria ter terminado o trabalho. Fico chateado com a situação dele, não poderia ligar 15 dias depois de ele sair para falar sobre coisas que ainda devem machucá-lo. Eu tentei ter sensibilidade e respeito, por isso não o procurei ainda.

O Dunga não teve um ciclo de Copa completo e o senhor também não terá, até 2018. O senhor pensa apenas na Rússia ou gostaria de permanecer no cargo até a Copa do Catar, em 2022? Eu penso apenas em classificar para a Copa da Rússia e não estabeleço um ciclo maior que isso, me soa como utopia. Palavra de honra, não penso. No Corinthians, entre 2010 e 2013, eu dizia que queria ficar três anos, saí, me arrependi e aprendi. Por isso não vou prefixar tempo. Mas entendo que só dá para continuar se houver sintonia entre direção, comissão e atletas.

A Alemanha e a Espanha mantiveram os treinadores por, pelo menos, oito anos. O senhor não acha que esse tempo poderia ser importante para o Brasil? Antes que isso aconteça, devemos mudar nossa forma de enxergar o futebol. Os torcedores precisam entender que o treinador precisa de tempo para impor seu trabalho. Precisamos de uma qualificação maior dos treinadores, dos atletas, da crônica esportiva. Todos precisam entender que o resultado é importante, mas antes existe um processo até alcançar o objetivo. Quanto mais conhecemos um esporte, mais nos apaixonamos por ele. Precisamos de dirigentes com capacidade de análise, executivos de futebol para fazer essa ligação. São muitos aspectos em que precisamos evoluir até chegar ao nível de outros países.

O quanto o seu ano de estudos na Europa o desenvolveu como treinador? O principal foi a compreensão do 4-1-4-1 com as seleções de Alemanha e França, que tive tempo de analisar e pesquisar. Eu quis dissecar posição e função dessas equipes, com transição, velocidade, flutuação. E ouvindo bastante a imprensa, assisti a todos os jogos da Copa de 2014, queria descobrir os segredos das grandes seleções. E a resposta foi: todas tinham um meio-campo muito qualificado.

"Vou ser direto: não concordei com a escolha do Dunga. Ponto. Mas se deram a chance ele deveria ter terminado o trabalho. Não poderia ligar para falar sobre coisas que ainda devem machucá-lo"

O Brasil não produz mais meias como antigamente... Há uma safra menor de armadores. Tivemos jogadores extraordinários. O time de 1982 é um marco, pois tinha quatro jogadores que poderiam tranquilamente vestir a camisa 10: Zico, Falcão, Sócrates e Toninho Cerezo. Em 1970, então, era sacanagem, é o meio-campo hors concours.

Dá para imaginar o Brasil de Tite com vários camisas 10? Não quero cravar isso, mas ter jogadores com capacidade de articulação e criação e encontrar um ponto de equilíbrio com eles, sim, é um desejo. É meu grande sonho. Gostaria de unir a organização de 1994 com o talento de 1982. Eu me encontrei com Parreira e Zagallo, da escola que eu me identifico, da posse de bola e do meio-campo com qualidade. Esses são princípios importantes.

Seu time vai se inspirar no Barcelona, por exemplo? Depende de várias situações, do campo, do adversário. Quero um time que saiba fazer pressão alta, média e baixa. Por exemplo, contra o Equador não marcamos pressão alta porque estávamos na altitude, a pressão média era melhor para amenizar o desgaste dos atletas. A ideia geral é: jogo apoiado, triangulações, criatividade no último terço de campo. Fala-se muito do Barcelona, mas, em 1983, eu joguei pela Portuguesa contra o Flamengo, e não vi a cor da bola, foi o maior sacode da minha vida. Zico, Andrade e Adílio tocavam para lá e para cá e a gente não chegava nunca. No intervalo já estávamos todos mortos, eles estavam em um estágio muito evoluído, assim como o Corinthians do ano passado, e é isso que eu busco.

O Corinthians campeão do mundo em 2012 jogava mais defensivamente que o de 2015. Por quê? Características dos jogadores. Eu não posso ter a arrogância e a prepotência de querer fazer um time jogar de um jeito se não tenho condições para isso. O Guardiola tem a filosofia dele, e quantos milhões para investir? Ele compra quem quer, dispensa quem quer. Se pedir: “Me traz o Gabriel Jesus...” Ele terá. A situação econômica precisa ser analisada também.

Em que estágio está o futebol brasileiro? É difícil generalizar, porque a cada ano o nosso futebol perde seus quatro ou cinco melhores jogadores para clubes estrangeiros. Ano passado, o Corinthians estava num nível acima dos outros, esse ano está mais equilibrado entre Palmeiras, Flamengo, Atlético-MG e Santos.

O Corinthians de 2015 poderia disputar uma grande liga europeia? Tranquilamente. Não sei se bateria o campeão, mas teria condições de enfrentar os grandes. Eu ainda vejo o Barcelona num nível muito acima, não imagino uma equipe brasileira neste nível. O Real Madrid também. Mas poderíamos enfrentar outros grandes times, como fizemos em 2012 com o Chelsea.

Quais são os treinadores jovens com potencial para chegar à seleção? Entre os profissionais da Série A, Roger Machado e Eduardo Baptista.

O senhor acha que jogadores e treinadores ganham mais do que merecem? Prefiro falar dos técnicos. Na conjuntura social que vivemos no Brasil, nós ganhamos mais do que é justo, sim, é verdade. Não condiz com a realidade financeira do país. Mas também é verdade, e pouca gente sabe, que eu passei nove meses desempregado, minha esposa trabalhando e eu lendo livros e assistindo vídeos para me aprimorar. Eu ficava envergonhado, não queria sair de casa para não ser tachado de vagabundo por não estar trabalhando. Esse é o outro lado, é o preço que eu paguei para chegar onde eu cheguei e dou muito valor a isso.

O senhor se incomoda em dizer quanto ganha? Sim, me incomodo, não falo.

O Brasil vive um momento de mudanças e novidades. O senhor enxerga um futuro melhor para o país? Todos nós estamos sedentos por transparência, em fazer as coisas corretas, em ver as pessoas assumirem os erros. Queremos educação e punição. Para termos uma sociedade melhor, mais justa e mais equilibrada, precisamos de oportunidade, educação e punição aos culpados.