O cineasta gaúcho André Sturm, de 50 anos, ligou seu nome à luta pela preservação do cinema de rua e à inserção do antes obscuro Museu da Imagem e do Som (MIS) no circuito das grandes exposições. No final de 2016, ao aceitar o convite do prefeito eleito de São Paulo, João Doria, para assumir a Secretaria de Cultura, desligou-se do MIS e da Pandora Filmes, a distribuidora que criou, e afastou-se até do dia a dia do Belas Artes, o antigo reduto de cinéfilos na Rua da Consolação, que batalhou para reabrir. Já antevia uma rotina estafante. Mas não tumultuada, como tem se revelado. Em apenas seis meses, colecionou uma série de episódios rumorosos, com ataques verbais em público, ameaças de agressão, corre-corre na Câmara dos Vereadores e invasão de gabinete. Em entrevista a VEJA, Sturm fala dos momentos dramáticos que vive, admite que pensou em desistir e explica por que não o fez.
A que o senhor atribui tanta resistência à sua gestão? Acho que aqui há três elementos. Existe um grupo radical que acredita que, se derrubar o secretário, vai estar em vantagem diante do próximo, que terá medo. Há também pessoas que não gostam do prefeito João Doria e, por tabela, não gostam de mim. E há um grupo que quer se impor para manter interesses que eram atendidos na gestão passada. É claro que o fato de eu ter o perfil que tenho, uma personalidade forte, contribui. Mas venho mantendo programas e dialogando quando acho que é o caso de mudar.
O senhor se arrepende de ter dito que iria “quebrar a cara” de um integrante do coletivo que ocupa o Centro Cultural Ermelino Matarazzo? Ou acha que foi vítima de uma cilada? É claro que foi uma cilada, mas usei de linguagem errada. De qualquer forma, não tencionava de fato partir para a agressão. Disse que ia quebrar a cara muito mais no sentido de “Você está louco?”. Tanto que não me levantei da cadeira. Quem levantou e veio na minha direção, para falar “Quebra a minha cara”, foi o garoto, que estava me gravando. Eu quis regularizar a situação do coletivo e ofereci um novo contrato, com a possibilidade de que explorassem comercialmente o lugar – desde que com ingressos populares e mantendo 60% das atividades gratuitas. A partir desse momento, a conversa degringolou. E ele me pegou em um dia em que eu estava com os nervos abalados.
Por que o senhor estava com os nervos abalados? Três dias antes, fui a uma audiência pública na Câmara Municipal sobre programas da Cultura. Eu não era obrigado a comparecer, mas fui porque quero dialogar. Passei uma hora e quarenta sendo ofendido pela plateia, formada por militantes. Ninguém ali tinha propostas. Queriam me atacar. Quando pude, falei por três ou quatro minutos, acharam um absurdo, pediram direito de resposta, falaram de novo. Quando peguei o microfone outra vez, não deixaram que eu dissesse nada. Pedi então que encerrassem a sessão e tentei sair, mas fui perseguido por pessoas que gritavam “Pega, não deixa ele fugir”. Uma moça diz, em um vídeo feito no momento, “Quero dar um tiro nele”. Tive que me trancar no cafezinho da Câmara, eu e quatro pessoas da minha equipe, e ficar lá por meia hora, protegido por uns dez policiais.
Pensou em desistir? Confesso que me senti deprimido e frustrado e pensei bastante nisso. Poderíamos ter sido linchados. Eu me questionei se devia parar ali. Decidi continuar. Primeiro, porque tem muita coisa legal acontecendo e para acontecer. Depois, porque não queria parecer que tinha feito bobagem e saído com medo. Mas os episódios do “Vou quebrar a sua cara”, dias antes, e a invasão da secretaria, dias depois, acabaram tendo um efeito positivo. Recebi apoio de muita gente. Vi que havia uma maioria silenciosa a meu favor.
Na conversa gravada pelo grupo de Ermelino Matarazzo, o senhor diz que conseguir dinheiro para a cultura é um “pesadelo”. Ainda pensa assim? O que eu quis dizer é que os agentes culturais precisam se mexer para encontrar formas de levantar recursos. Não dá para achar que todos vão ser 100% bancados pelo Estado sempre. A ideia de fomento é esta: o Estado ajuda um grupo ou um artista para que ele saia do zero, mas eles precisam aos poucos se viabilizar. Isso não quer dizer se vender ao mercado. Você anda pela Avenida Paulista e tem artista fazendo show e vendendo CD, com o chapéu dele e sem apoio do Estado. Isso é se viabilizar.
“Confesso que me senti deprimido e pensei em desistir. Decidi continuar. Tem muita coisa legal acontecendo e para acontecer. E não queria parecer que tinha feito bobagem e saído com medo”
No plano federal, o governo Temer também enfrentou resistência na área da Cultura. É uma questão ideológica? Não quero entrar nessa comparação porque o governo Temer só passou a existir depois de um impeachment que muita gente considera irregular. Acho que o processo seguiu as regras, mas é legítimo questioná-lo. Em São Paulo, não. O prefeito João Doria foi eleito no primeiro turno.
Como o prefeito reage às críticas ao senhor? A maior parte do que eu tenho enfrentado não é crítica, é ataque. O prefeito é um cara atento. Já me ligou depois de ler alguma coisa na imprensa para dizer: “André, estou com você, força aí”. Sempre que o procuro, me responde no mesmo dia. Quando invadiram a Galeria Olido e o gabinete da Secretaria de Cultura, tive que pôr uma poltrona atrás da porta para me proteger. Liguei para ele de dentro da sala: “Prefeito, a situação aqui está difícil”. Ele disse: “Aguenta aí, estou contigo”. Tive de esperar até as 7 da noite para pegar o elevador. Quando cheguei lá embaixo, havia uma viatura da polícia à minha espera. Entrei no carro, mas militantes me viram e vieram correndo. Foi bizarro. Algo assim como nos filmes do Jason Bourne. O motorista saiu cantando pneu, enquanto eu ainda me sentava no banco, e as pessoas correndo e gritando atrás. Cheguei em casa e chorei.
O senhor se sente em situação delicada na prefeitura? Eu me sinto em uma situação psicológica delicada. Já tive que tomar remédio para dormir várias vezes. Ando com segurança desde março, pela primeira vez na vida. Mas não me sinto fragilizado no governo. O prefeito tem sido claro no apoio. Agora, se ele quiser que eu saia, entrego o cargo. Sem apego. As pessoas têm a impressão de que ser secretário é tirar a sorte grande. O salário é ridículo, você fica sujeito a uma série de dificuldades, processos, e tem de abrir mão da vida profissional e pessoal. O único motivo que pode levar uma pessoa a querer trabalhar em um governo é por acreditar em projetos.
“A ação do Estado tem de ser de estímulo. Se não, eu convidava a Ivete Sangalo para cantar no Teatro Municipal. Vai lotar, não vai? Nosso papel é oferecer algo diferente”
Não ficou com medo depois do vídeo que Doria gravou demitindo Soninha Francine? Ele tem todo o direito de demitir um secretário. E ela poderia ter dito não para o vídeo, se estivesse chateada. Eu não gravaria.
Que balanço faz de sua gestão até aqui? Quando me chamou, o prefeito disse apenas que queria pensar mais na periferia e me deu liberdade para formar equipe e implementar as ideias que eu tinha, como a descentralização da cultura e, o que para mim é primordial, do incentivo ao livro e à literatura. Tenho muito carinho pelo Projeto Biblioteca Viva, um projeto de amadurecimento lento. As bibliotecas hoje sofrem de um problema de imagem. Para muitos, biblioteca é algo anacrônico. A gente quer mostrar que não é. Agora, as bibliotecas abrem aos domingos, com wi-fi, têm uma programação variada nos fins de semana. Boa parte das 54 bibliotecas de São Paulo representa o único equipamento cultural de sua região. Estamos negociando a compra de novos livros com as editoras, sem a intermediação das distribuidoras, o que encarece muito.
Houve críticas ao corte do samba da programação da Biblioteca Mário de Andrade. Existem dois lugares a 20 metros com apresentações de samba, por que vamos fazer roda na Mário de Andrade? A ação do Estado tem de ser de estímulo, de complemento. Se não, eu poderia convidar a Ivete Sangalo para cantar no Municipal. Vai lotar, não vai? Nosso papel é oferecer para as pessoas a possibilidade do diferente. A biblioteca passou o ano de 2016 inteiro sem comprar nenhum livro.
Alguém protestou? As mudanças na Mário de Andrade são uma parte pequena das queixas que a sua gestão tem enfrentado. Confesso que isso me causa estranheza. Porque não é de agora. Uma das primeiras iniciativas que eu tive foi o Gabinete nos Bairros. Vou com uma parte da equipe para uma região da cidade conhecer os equipamentos e as pessoas. Em 19 de janeiro, não tinha nem vinte dias como secretário, fui à Zona Norte visitar o Centro Cultural da Juventude Ruth Cardoso, cuja equipe formada na gestão passada decidi manter, porque soube que trabalhava bem – e fui criticado por pessoas da gestão atual por manter gente do “outro partido”. Quando cheguei lá, tinha umas 100 pessoas, entre artistas e frequentadores, que me acusavam o tempo todo. Diziam que era preciso haver diálogo. E era eu quem tinha marcado o encontro, que tinha me disposto a ir até lá conversar. Saí assustado com a atitude belicosa de certos grupos.
Projetos e editais da gestão anterior foram mantidos porque já estavam programados ou porque são bons? As duas coisas. Eu não iria suspender um projeto só porque vinha da gestão anterior. É preciso separar gestão de Estado. E é claro que alguns programas podem ter ajustes. Cortamos a madrugada da Mário de Andrade, por exemplo, porque vimos que o investimento era muito alto para um retorno baixo – mais de 1,4 milhão de reais por ano para um horário que recebia apenas 7% das visitas totais e respondia por 3% das retiradas de livros. Mas não tiramos verba. Deslocamos recursos da madrugada para a programação, que é diária, com chorinho, teatro, eventos literários. E ela fecha às 10 da noite. Nenhuma biblioteca pública do mundo funciona 24 horas, só as universitárias.
Depois das críticas à distribuição dos shows pela cidade e ao esvaziamento do centro, o senhor estuda mudanças na Virada Cultural em 2018? Não. Esse modelo ainda precisa de ajustes, algumas falhas técnicas poderiam ser evitadas, mas deu certo. As críticas à Virada Cultural são ideologizadas. Tivemos 75% dos artistas escolhidos de maneira transparente, com edital. Ao todo, houve 900 atrações, contra seiscentas nos anos anteriores, com todas as linguagens presentes, de fanfarra a jongo, do hip-hop à música clássica. Portanto, muito mais artista trabalhando. Descentralizamos a Virada ao levar shows para Interlagos. Esse argumento de que os shows ficaram distantes é o que mais me incomoda. Interlagos é longe para quem mora em Higienópolis, mas não para quem é de Cidade Ademar.
Foto: Antonio Milena/VEJA