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Jean-Yves Camus

O rancor nacionalista à espreita de Macron

Com a derrota da Marine Le Pen, extrema-direta recua na França, mas qualquer tropeço do presidente eleito pode reacender antigos ressentimentos e turbinar radicalismos, alerta cientista político

Por Julia Braun

query_builder 25 mai 2017, 18h20

A derrota da candidata à presidência da França Marine Le Pen não é o fim da onda nacionalista que se espraiou pela Europa. O alerta é do cientista político francês Jean-Yves Camus. Os governos de Polônia, Hungria e Eslováquia estão nas mãos da direita antiliberal, lembra. E o do Áustria pode ser o próximo. Autor do livro Política de Extrema Direita na Europa, Camus explica que o nacionalismo de viés populista, de longa tradição na França, continua exercendo grande influência sobre parte significativa da opinião pública. E que qualquer tropeço do presidente eleito, o centrista Emmanuel Macron, pode alimentar radicalismos tanto à direita como à esquerda do espectro ideológico.

A Frente Nacional e seu nacionalismo permanecem fortes para as eleições legislativas? O que o senhor espera do resultado dessas eleições? Será muito difícil para a Frente Nacional ganhar mais do que os quinze assentos necessários para ter uma facção parlamentar. O partido provavelmente alcançará mais do que os 4 a 6 milhões de votos que costumava obter nas eleições anteriores, mas mesmo assim não deve conquistar grande representação. Quanto a Macron, ele está tentando conquistar maioria associando seu próprio partido com alguns socialistas e conservadores liberais. Ele quer forçar a direita a escolher entre trabalhar em consenso com a esquerda reformista e transformar a nacionalista Frente Nacional em uma parceira de coalizão.

O amor à pátria é um sentimento importante para os franceses. O governo de Emmanuel Macron pode, eventualmente, sofrer influências do nacionalismo despertado pela Frente Nacional? Há diferenças entre patriotismo e nacionalismo. O patriotismo é um valor compartilhado entre a direita conservadora e a maioria na esquerda, mas o nacionalismo é uma ideologia diferente, cujo principal partidário na França é Marine Le Pen. O presidente e o primeiro-ministro são favoráveis não só à permanência da França na União Europeia, mas também ao fortalecimento do país na UE. A primeira visita de Macron ao exterior foi um encontro com a chanceler da Alemanha, Angela Merkel. É um gesto que demonstra o seu compromisso com a amizade franco-alemã. Isso pode ser interpretado como um gesto patriótico, mas não nacionalista.

Como os nacionalistas veem Macron? Le Pen diz que o novo presidente é "antifrancês", uma marionete nas mãos dos interesses estrangeiros. Grande parte dos membros da Frente Nacional também acusa Macron e os integrantes de seu governo, inclusive os mais conservadores, de não pertencerem à nação francesa, de serem "globalistas" que querem erradicar a identidade nacional. Se Macron falhar, essa pecha pode se espalhar para além da extrema-direita, contagiando até setores da esquerda. E a ascensão do radicalismo nacionalista é um perigo para a democracia.

A onda nacionalista/populista na Europa já foi contida? Ainda não. Os nacionalistas perderam as eleições para primeiro-ministro na Holanda, Le Pen foi derrotada na França e Norbert Hofer, candidato à Presidência na Áustria em 2016, também saiu perdedor. O partido xenofóbico Alternativa para a Alemanha (AfD) também está mal, é esperado que conquiste apenas entre 8 e 10% dos votos nas eleições parlamentares na Alemanha em setembro. Por outro lado, pelo menos três países na Europa Central têm seus governos nas mãos da direita antiliberal: Polônia, Hungria e Eslováquia. Ao que tudo indica, as próximas eleições austríacas também devem levar à formação de um governo de coalização com o nacionalista Partido da Liberdade da Áustria (FPO). Também é verdade que, a longo prazo, a onda nacionalista populista tem tido uma influência duradoura no pensamento político e em uma parte significativa da opinião pública, propagando um conjunto de crenças menos progressistas e mais restritas culturalmente, como a rejeição do multiculturalismo e da imigração. 

Quais são as origens do nacionalismo francês? O nacionalismo francês nasceu com a Revolução de 1789, quando a monarquia foi abolida e outros reinos na Europa formaram uma coalizão contra os republicanos para restabelecer o rei. No começo, ser nacionalista significava lutar pela soberania do povo e contra a ocupação da França por potências estrangeiras autocráticas. Foi só após 1870 que a extrema direita adotou o nacionalismo como sua linha de frente. Até então, contrarrevolucionários como os filósofos monarquistas Joseph de Maistre e o Visconde de Bonald estavam mais preocupados com religião e com a Igreja Católica Francesa, que foi dividida entre aqueles que apoiavam algum grau de autonomia do Vaticano e os que pensavam que a doutrina da Igreja e também as opiniões dos católicos sobre questões políticas deveriam ser decididas em Roma, pelo papa.

Quando surgiu o nacionalismo que conhecemos hoje, presente nos discursos de Marine Le Pen e defendido pela Frente Nacional? A primeira era de ouro do nacionalismo de extrema direita foi nos anos 1880, com a quase tomada do poder pelo general Georges Boulanger, um oficial autoritário. Esse tipo de nacionalismo também foi muito forte no século XX com a Action Française, uma escola que influenciou a associação brasileira de católicos leigos Centro Dom Vital, no Rio de Janeiro, e o resto do renascimento católico. O regime de Vichy, estabelecido após o país se ter rendido à Alemanha nazista, em 1940, só foi possível graças a essa longa tradição do nacionalismo contrarrevolucionário.

“A perda do império é algo que a extrema direita nunca aceitou e se recusa, cada vez mais, a aceitar, porque os antigos colonizados são as pessoas que agora vêm para a França como imigrantes”

Mais tarde, e até hoje, o nacionalismo francês se diferencia do de outros países europeus, por causa das guerras perdidas em nossas antigas colônias, especialmente na Argélia. A perda do império é algo que a extrema direita nunca aceitou e se recusa, cada vez mais, a aceitar, porque os antigos colonizados são as pessoas que agora vêm para a França como imigrantes, isto é, muçulmanos do Magrebe e da África Ocidental. Essa é uma das principais razões por que as discussões sobre imigração e sobre o Islã são sempre destacadas pela Frente Nacional. Eles usam esses tópicos há décadas, desde que os ataques terroristas começaram.

Este tipo de nacionalismo autoritário que o senhor mencionou se parece com o da América Latina de hoje? A Le Pen se parece, de alguma forma, com Hugo Chávez? Há poucos parâmetros para fazermos uma comparação entre Boulanger e o nacionalismo latino-americano contemporâneo. Algumas pessoas acreditam que Chávez e Le Pen são bastante semelhantes, por causa de seu populismo e oposição aos Estados Unidos e por tomarem o lado dos pobres contra as elites. Isso é verdade até certo ponto, mas temos de entender a situação específica da América Latina e sua história de luta para não se tornar o quintal dos EUA.

Observaram, por exemplo, Víctor Raúl Haya de la Torre, político peruano que liderou o partido adepto da social- democracia Apra, o partido nacionalista boliviano MNR e o peronismo da Argentina, insistindo que eram tentativas de encontrar uma “terceira via” entre o capitalismo e o comunismo. Cunharam até mesmo o termo "alternacionalismo" para promover uma espécie de "frente unida" de países que recusam a ordem mundial liderada pelos EUA. Para mim, essa ideia não passou de um slogan, na verdade.

A sociedade francesa, diferentemente da inglesa, por exemplo, tem problemas com o multiculturalismo. De onde vem isso? Antes da Revolução Francesa, as regiões tinham certo nível de independência. E o reino não tinha cidadãos: o rei tinha súditos. Com a Revolução, a esquerda construiu um novo conceito de cidadania. De acordo com essa ideia, que deriva do Iluminismo, existem valores universais e ser cidadão significa aderir aos valores fundamentais da Declaração dos Direitos Humanos e à ideia de que a humanidade está unida por valores comuns. É por isso que o multiculturalismo é bastante estranho à tradição francesa, porque uma sociedade multicultural precisa conceder às minorias o direito a suas próprias tradições, linguagem, religião etc. A França costuma se apoiar na ideia contrária, de que, por serem iguais, as pessoas não devem ser “diferentes”, mas semelhantes entre si.

O perfil do francês patriota, nacionalista, é diferente do perfil de cidadãos que se considerem nacionalistas em outros países? Com certeza, porque a tradição patriota ainda está viva na esquerda. Por outro lado, na França, assim como em outros países europeus, patriotismo e nacionalismo não são sinônimos. Um patriota de esquerda ama seu país e é orgulhoso dele, mas consegue enxergar os erros, os crimes na história do nosso país, seja na colonização ou no genocídio dos judeus. Um nacionalista de direita não quer admitir “o lado negro” da história nacional e se apega aos mitos da “era de ouro do passado” e da “França eterna”, difundidos pelo presidente Charles de Gaulle, que evocava grandes personagens da história francesa para reconstruir o país após a ocupação nazista.

Quais os principais desafios do novo presidente? Ele terá de entregar resultados rápidos para questões como desemprego e crescimento econômico, além de aprovar legislações que permitam o reequipamento do sistema político para que os franceses retomem a confiança nos candidatos eleitos. Caso contrário, a Frente Nacional ainda estará presente e forte em 2022.

Foto: Fondation Jean Jaurès