A primeira reação do historiador americano Benjamin Cowan quando viu as postagens de Jair Bolsonaro no Twitter durante o Carnaval, sobretudo, a infame reprodução do vídeo de dois foliões praticando golden shower (quando um parceiro urina no outro), foi rir. Mas o autor de Securing Sex (algo como “Tornando o Sexo Seguro”), um estudo sobre como a retórica de moralidade sexual da ditadura militar brasileira serviu ao anticomunismo da Guerra Fria, logo considerou a possibilidade de que os tuítes presidenciais sobre um episódio isolado de urofilia nas ruas de São Paulo encontrariam eco nas bases políticas mais conservadoras. Empregar o moralismo como uma arma política, diz, funciona porque une pessoas em torno de valores familiares muito palpáveis e cotidianos, sem que seja preciso apelar para a lógica ou para a racionalidade. De San Diego, onde dá aulas no departamento de história da Universidade da Califórnia, ele concedeu a seguinte entrevista a VEJA, por telefone.
Bolsonaro se elegeu com um forte discurso de moralização dos costumes. Chega a ser novidade na história do Brasil? Isso sempre esteve presente na política brasileira. Uma maneira de entender o fenômeno é olhar para a ascensão da política evangélica de direita no Brasil, que já começa nos anos 1970. Houve um momento na ditadura em que a Igreja Católica adotou uma política de direitos humanos e de resistência à tortura. A ditadura se abriu aos evangélicos, e os evangélicos de direita não só tomaram o poder dentro das igrejas, mas também ingressaram de forma inédita na política. Antes dessa época, a aversão à política nessas igrejas era a regra. Mas isso então começa a mudar, e os evangélicos entraram de forma massiva na política, com uma agenda muito parecida com a que vemos hoje, que liga o moralismo cultural ao neoliberalismo econômico. Houve até alguns escândalos nos anos 1970 e 1980 envolvendo políticos evangélicos que fizeram carreira pregando o moralismo, mas que se notabilizaram como fisiologistas. Há o caso famoso de Matheus Iensen, que foi dono de rádios e se beneficiou da aliança que fez com o regime militar.
Seu tema de estudo é a relação entre o discurso moralista e o anticomunismo da Guerra Fria. Quando exatamente esses dois elementos se associaram? Já no século XIX o comunismo era associado à destruição da família e das instituições morais. Durante a revolução bolchevique houve vários rumores sobre a vida sexual de suas lideranças, e também uma certa ideia de que a revolução em si era uma barbaridade sexual.
Quando essas ideias começaram a circular no Brasil? Essa narrativa tomou forma mais específica durante os governos Vargas e se tornou mais doutrinária com a ditadura militar. Mas Getúlio Vargas era muito esperto: pessoalmente, não deveria acreditar em uma conspiração sexual dos comunistas. Os pioneiros dessa noção estão na nova direita católica da época, que preparavam terreno para uma estratégia cultural muito bem desenvolvida. Sebastião Leme e Plínio Salgado, entre outros intelectuais leigos, tiveram um papel fundamental nessa estratégia.
A ditadura militar coincide com um período de renovação comportamental, nos anos 1960 e 1970. O Brasil chegou a ter uma revolução sexual? Não. Houve uma mudança cultural, mas foi um processo lento. Há uma diferença muito clara entre o que se passava no Brasil em termos de moralidade e sexualidade e o que os setores mais conservadores pensavam que estava acontecendo. Era como se todo mundo falasse sobre sexo, mas ninguém estivesse fazendo sexo. A percepção de que havia uma revolução foi muito mais forte do que a mudança de costumes e hábitos propriamente dita. Ainda há um debate acadêmico em andamento sobre o que se passava nesse período no Brasil, exatamente por causa dessa diferença entre a percepção dos conservadores e a realidade do que estava mudando na sexualidade. A complicação vem de uma transição muito rápida: nos anos 1970, há muito sexo na mídia, e isso choca muitas pessoas.
O senhor pode dar um exemplo? A pornochanchada, um gênero cinematográfico muito brasileiro, é um exemplo. Chegou a ser apoiada por um setor do governo. O que está acontecendo ali é complexo, tem a ver com a hipocrisia política e moral do regime. A moral serve muito bem para desqualificar o inimigo, para criar um clima de pânico moral que justifica muitos tipos de violência, mas, ao mesmo tempo, esse governo apoiava produções culturais pornográficas em nome do nacionalismo econômico. O desvio sexual dentro da pornochanchada é também complicado, porque é um gênero muito patriarcal. Certos tipos de transgressão são permitidos até pelos moralistas. Há um filme que se chama As Secretárias... que Fazem de Tudo. As mulheres são submetidas a todo tipo de desvio moral, mas, no final, todo mundo se casa num formato bem patriarcal. As pornochanchadas sublinham a moral tradicional. A ditadura conseguiu usar o moralismo de várias formas, não só para denunciar o suposto comunismo.
Como a ditadura buscou pautar a moral do país? A educação sexual foi alvo de muita atenção da ditadura, especialmente por parte de ativistas de fora do governo, que se opunham a qualquer ensino sexual. Eles usaram a ideia da corrupção sexual que ameaçava os estudantes mais jovens para justificar todo um currículo anticomunista e moralista, de apoio à política do governo. A disciplina escolar de Educação Moral e Cívica influenciou a vida de toda uma geração de brasileiros. Eu ouvi histórias de pessoas que viveram essa época e que queriam me contar sobre o aborrecimento e a brutalidade que aquela disciplina trazia. Era uma plataforma não para o ensino, mas para a propaganda do governo dentro de todas as salas de aula.
"Os militares não são burros nem brutos, mas conservam ideias que ensinavam na ditadura. Alguns falam de uma tese que relaciona comunismo com ‘mulheres avançadas’"
Ricardo Vélez Rodríguez, ministro da Educação, fala na volta da Educação Moral e Cívica nas escolas. Não me surpreende, porque é totalmente consistente com a política que eles tentam implementar. Também as falas da ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) em favor do fim de uma certa visão de educação sexual repetem temas do passado. Ela usa o abuso sexual que sofreu como justificativa para uma ideia nova de proteção ao menor. Isso é muito esperto, porque vivemos mundialmente um período em que o abuso sexual pode ser usado para justificar muitos tipos de política.
Como o senhor avalia a atuação dos militares no governo Bolsonaro? A presença dos militares representa estabilidade em termos políticos, mas também a continuidade das ideias moralistas do passado. Os militares não são burros nem brutos, mas seguem uma moralidade institucional. Todos os militares com quem conversei na pesquisa para meu livro, em 2007, ainda conservavam as ideias que aprenderam ou ensinaram na ditadura. Alguns deles até falaram de uma tese que relacionava o comunismo e a guerrilha urbana ao surgimento do que eles chamavam de “mulheres avançadas” nas décadas de 1960 e 1970.
Muitas ditaduras, inclusive de esquerda, são conservadoras nos costumes. Isso não foi uma característica só da ditadura brasileira, certo? Sim, mas as especificidades são menos interessantes do que as generalidades. É interessante como as Forças Armadas e a classe política do Brasil compartilharam ideias com atores transnacionais. A gestação daquelas ideias que relacionavam marxismo e liberdade sexual não saiu do vácuo, mas de conversas que não respeitavam fronteiras nacionais. Na Escola Superior de Guerra, existe toda uma teoria doutrinária de como a sexualidade e a família se relacionam com o debate público. Isso vem de teóricos brasileiros, mas cresce a partir da conversação com intelectuais de fora. Essa onda de moralismo autoritário tem especificidades brasileiras, mas dentro de um mar de ideias que não respeitaram barreiras religiosas nem ideológicas. Até em Cuba tivemos e temos a mesma visão sobre como tratar o desvio sexual.
A manipulação da moralidade é uma arma política poderosa? Não se trata só de manipulação. As pessoas que empunham esses cartazes e slogans não estão ali só para manipular a narrativa política. Aquilo tudo é muito visceral. É uma forma de política em que você não precisa apelar para a lógica ou para a racionalidade. Ela pode promover respostas e reações que as pessoas pensam como naturais, mas que são construídas socialmente. A família está fora da política, a sexualidade se constrói fora da política, mas, no final das contas, apelar para esses valores serve para falar de coisas que as pessoas comuns sentem diretamente em seu cotidiano. É aí que reside o poder desses temas.
"Bolsonaro conseguiu, a seu modo, enquadrar o Carnaval em um moralismo bem simples. Há a possibilidade de que ele tenha vencido: o debate continua sendo sobre sexo"
Que avaliação o senhor faz da publicação do vídeo de golden shower pelo presidente? A minha reação inicial foi rir. Parecia outra bobagem do presidente. Mas, para a maioria das pessoas que se identificam com Bolsonaro, aquele tuíte não tem nada de errado. Sim, eu sei que também houve apoiadores que o criticaram. Mas ele conseguiu, a seu modo, enquadrar o Carnaval em um moralismo bem simples. Há a possibilidade de que Bolsonaro tenha vencido: foi atacado e ridicularizado, mas o debate sobre o Carnaval continua sendo sobre sexo, como se não fosse uma festa que oferece possibilidades a muitos brasileiros que não se identificam com os homens daquele vídeo.
Os foliões que fizeram o golden shower no Carnaval de São Paulo disseram, em um manifesto, que se tratava de uma performance política contra o governo. Atitudes como essa não acabam por afastar as pessoas comuns das causas que pretendem defender? Sempre houve essa tensão em comunidades e grupos de pessoas que querem a mudança. Como vamos lidar com a nossa marginalização? Vamos fazer a revolução ou reformas? Vamos tentar nos comportar ou lutar? Existem pessoas que tentam desafiar o moralismo do governo atual em termos radicais, mas isso não será muito efetivo. É só pensar na história da luta armada no Brasil. Eu não sei como essas duas pessoas pensam, se têm a visão de algum futuro utópico para o Brasil. Creio que é mais justo interpretar o ato como um desabafo, e não como uma tática.
O Brasil é um país conservador? Minha resposta intuitiva seria sim. Visto de fora, é o país do Carnaval, do samba e do sexo. Mas tem também um conservadorismo cultural bem pronunciado. Depois de um período de abertura a reformas que pretendiam ampliar a igualdade e a diversidade, o Brasil enfrenta um ciclo de repressão. O país tem taxas altas de violência sexual, o que reflete claramente um conservadorismo visceral dentro da cultura. O conservadorismo existe em todas as partes, mas existem outras formas de ser conservador, em outros países, que não são tão violentas como no Brasil.
Foto: Bill Wechter/Polaris