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Arnaldo Cezar Coelho

"Só estarei na Copa do Qatar como turista"

Com aposentadoria recém-anunciada após quase trinta anos de TV, o ex-árbitro Arnaldo Cezar Coelho faz ressalvas sobre o VAR e fala sobre a relação com Galvão Bueno e Casagrande

Por Silvio Nascimento, de Moscou. Colaborou Guilherme Venaglia

query_builder 20 jul 2018, 12h00

Durante a final da última Copa do Mundo, entre França e Croácia, um anúncio durante a transmissão da TV Globo surpreendeu os espectadores: aos 75 anos, Arnaldo Cezar Coelho decidiu não renovar o contrato que vence em dezembro e vai se aposentar da televisão. Único árbitro brasileiro a apitar uma final de mundial – em 1982, na Espanha –, Arnaldo diz que sentiu que era a hora de aproveitar a vida sem a preocupação de acompanhar de perto os jogos de futebol e as novidades da arbitragem. Em entrevista a VEJA, ele defende limites para a atuação do árbitro de vídeo (VAR), elogia o trabalho ao lado de Galvão Bueno e Casagrande e rejeita o papel de corporativista. Sem um sucessor no horizonte, o criador dos comentários de arbitragem na televisão avisa que vai estar no Catar em 2022, mas fora das telas.

Por que a decisão de parar?

A minha primeira Copa do Mundo foi em 1990, na Itália. De lá para cá, venho fazendo todos os mundiais, mas chegou um momento - e eu estou com 75 anos - em que eu tenho que pensar no que eu quero daqui para frente, que é a última fase da vida. Nesses últimos quatro anos, fiz uma coordenação dos demais comentaristas e, com isso, pude promover um rodízio para preparar um possível afastamento meu. Quero aproveitar mais meus finais de semana para viajar, porque, mesmo quando não estava escalado, tinha que assistir aos jogos para me preparar para os programas. Também precisava estar atualizado, porque toda semana tem uma novidade. Haja vista o VAR.

Qual a sua visão sobre o VAR?

É uma prática que veio para ficar, mas sem criar ainda mais polêmica. Da forma como está sendo, eles estão interferindo em lances puramente interpretativos, como uma dividida, em que cada um tem uma maneira de interpretar. Na parte subjetiva da regra, você não pode interferir na decisão do árbitro, a não ser que seja um erro muito claro, como se a falta foi dentro ou fora da área. A final da Copa foi uma prova disso. Deu para ver o drama do árbitro olhando na telinha, porque o lance era interpretativo, se era mão na bola ou bola na mão. Nesses casos, a palavra final tem que ser do árbitro.

No início da carreira televisiva, foi difícil sair de campo para falar sobre quem estava apitando o jogo?

Não foi tão difícil, porque eu sou professor de educação física e estava acostumado a dar cursos e palestras. Além do que, sempre que alguém me questionava, eu comecei a falar que a regra era clara, porque as regras são claras e existem situações em que não tem como fugir disso, o que também acabou virando meu bordão. Em 1989, durante um jogo das eliminatórias entre Brasil e Chile, o Taffarel fez uma defesa em dois tempos e o juiz marcou tiro livre indireto. A Globo me chamou para explicar esse lance para os jornalistas e, ao final, eu acabei ficando como uma espécie de consultor. No início, o plano não era que eu aparecesse no vídeo, mas eu propus fazer uma série com lances polêmicos, em que eu exibia o lance e depois entrava explicando. Acabaram aproveitando no Esporte Espetacular e viram que aquilo era legal por ser bem didático. Alguns dias antes da estreia na Copa de 1990, me falaram que o Galvão ia narrar, o Pelé comentar e eu participaria para falar da arbitragem. Eu fui e a partir daí não parei mais.

Galvão Bueno, Casagrande e o senhor formaram um trio. Como era o trabalho entre vocês?

Eu conheci Galvão em um jogo no Peru, quando eu apitava e ele ainda estava em outra emissora. No intervalo do jogo, ele deixou a transmissão com as pessoas no Brasil e veio me cobrar, dizendo que eu tinha que segurar o jogo. Ou seja, ele sempre deu pitaco. Mas quando eu cheguei, eu não só me adaptei a ele, fazendo escada para a narração dele, como ele também faz escada para mim. Temos uma cumplicidade que é muito importante. Sobre o trio, na verdade é que nós fomos sendo escalados juntos. O Casagrande é um cara disciplinadíssimo, porque, se não fosse, já teria se entregue novamente, por ser um dependente químico. Ele fala as coisas de um jeito ansioso, mas é o normal dele. E o Galvão não é aquele cara que a gente conhece, ele é a figura máxima da companhia. A gente também tem que entender isso e colaborar com ele.

O que o senhor achou do desabafo do Casagrande, que celebrou ter ficado sóbrio durante toda a Copa?

Só para ter um exemplo, eu o acompanhei em Liverpool e um dia ele saiu com o Júnior. Quando eles chegaram em uma rua onde estavam todos aqueles bares em que os Rolling Stones tocavam, como o Cavern Club, o Casagrande virou para o Júnior e disse ‘eu não vou ficar aqui, isso é um inferno para mim’. Pegaram um táxi e voltaram para o hotel. Depois ele me disse: ‘Arnaldo, eu não podia entrar naquela rua, aqueles caras eram meus ídolos’. Ele é um cara que briga o dia todo, diariamente, para não se envolver com nada. Ele não pode ter um pingo de álcool. A única coisa que ele faz é fumar um cigarrinho depois do café.

Há um sucessor para o seu lugar?

Eu tenho contrato até dezembro e, até lá, eu vou fazer participação nos programas e, eventualmente em alguns jogos. Sempre soube da minha responsabilidade como um educador, e que a televisão, principalmente a Globo, é um canhão, ou seja, é preciso sempre falar em cima da lei e preservar a autoridade da arbitragem. Eu não imaginava a repercussão, mas é uma nova fase da minha vida. Procurei orientar todos os rapazes, inclusive outros ex-árbitros que estão em outras televisões. A minha conversa com todos é no sentido de que essa não é uma carreira de velocidade, mas de resistência. Uma atividade que, se trabalhar direito, tem uma longa carreira pela frente. Junto com esse trabalho, eu construí uma bem sucedida carreira no mercado financeiro, chegando a ser o dono de uma das maiores corretoras de valores da BM&F Bovespa. E por quê? Porque eu tinha uma imagem de credibilidade.

Quais mudanças o senhor identifica na arbitragem e na relação entre os juízes e os jogadores de quando você começou para agora?

Primeiro, é o seguinte: nós estamos em um país onde o respeito pela autoridade é muito difícil, onde as autoridades não conseguem se impor para serem respeitadas. Eu sou de uma época que, quando o professor entrava em sala, todos se levantavam. E essa relação entre jogador e juiz começou a ter uma informalidade que não me agrada, com árbitro chegando a dar batida em barriga de atleta e vice-versa, porque no futebol os interesses são muitos. Enquanto você está atendendo aos interesses do jogador, ele é seu amigo, mas, na hora que você tomar uma decisão contrária, vai se achar no direito de te contestar. Eu sou conservador sobre esse tipo de relação. É uma inversão de valores.

O senhor fala muito sobre autoridade e sobre o seu bordão, “a regra é clara”, se encaixar em outras situações para além do futebol.

Quando eu comecei a falar que a regra é clara, eu me referia especificamente às regras futebol. Com o tempo, quando começou a pegar, extrapolou e foi para a vida cotidiana. O que as pessoas querem? Querem regras claras, porque assim elas sabem o que podem e o que não podem fazer. As crianças querem ser orientadas por regras, os patrões querem regra clara para os seu empregados. O ‘pode isso, Arnaldo?” é uma derivação desse bordão. Pode um cara dirigir bêbado? Não pode. O povo, de um modo geral, gosta de limites.

Como viu essa controvérsia em torno do Neymar, que se tornou um assunto mundial por supostamente simular faltas?

Cabe ao árbitro entender se está exagerando ou não e tem que coibir isso. Essas artimanhas são mais visadas hoje porque a televisão transformou o jogo em um grande entretenimento e os jogadores são personagens do espetáculo. O jogador precisa saber até que ponto ele pode assumir o risco, se ele simula um pênalti e ninguém toca nele, fica ridículo.

Que atividades fará após a aposentadoria?

Eu tenho uma afiliada da Globo, que cobre a região sul do Rio de Janeiro e emprega sessenta jornalistas. Aprendi a fazer televisão e dirigir uma emissora, hoje sou um profissional de comunicação. Eu sou fruto de oportunidades. Vamos esperar por elas, achar outras coisas interessantes também, que não atrapalhem, porque eu quero andar na praia, fazer a minha ginástica.

A próxima Copa do Mundo vai ser no Qatar? Você vai estar lá?

Se Deus quiser, só estarei no Copa do Qatar como turista.

A autoridade moral da CBF ficou corroída?

A minha opinião é o que é voz corrente até entre eles. A CBF está passando por um momento de transformação, que vem com a eleição de um novo presidente, que vai ter que adotar uma mudança de postura. Vai haver uma grande mudança e tem que ser para melhor, com pessoas gabaritadas para serem dirigentes de futebol. Futebol é uma coisa séria, uma paixão popular e isso hoje em dia envolve muitos interesses, inclusive financeiros, de patrocinadores. Acho que a própria CBF está passando por essa reformulação. É evidente que está passando por esse problema.

Passou por saias-justas na carreira?

No primeiro jogo que eu fiz na Globo, havia um bandeirinha que esteve comigo em Seul, na Olimpíada de 1988. Era um negro de 1,80 metro chamado Diramba, do Gabão, que era muito meu amigo. Naquele jogo, ele marcou um impedimento e eu comentei que tinha sido corretamente, mas destaquei também que ele era o único árbitro negro entre os 41 que apitariam a Copa. Na mesma hora, o Galvão interveio e disse que era só uma raça, que era normal. Depois me disseram para não falar sobre diferença entre brancos e negros e nem sobre religião. Eu fiquei apavorado quando eu vi a repercussão da coisa, mas graças a Deus não deu em nada.

Foto: Globo/ João Miguel Júnior