Estar no governo após a deposição de um presidente da República é como estar sobre o fio da navalha: o espaço para erro é mínimo. Essa é a posição do atual ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, e já foi a do economista e diplomata Rubens Ricupero. Ministro do Meio Ambiente de Itamar Franco e, depois, da Fazenda, Ricupero foi o comandante da economia brasileira nos meses que assistiram ao nascimento do real, lançado em 1º de julho de 1994. Ricupero faz esse paralelo entre os dois governos, mas, no caso do atual, vê deslizes na comunicação com a população. Sobram dúvidas em pautas centrais do governo de Michel Temer, como as reformas trabalhista e da Previdência, afirma. Informar não é propaganda, raciocina o ex-ministro, e não é como “vender sabonete”. Ricupero falou ao site de VEJA.
O senhor foi ministro da Fazenda do governo Itamar Franco, que chegou ao poder após a deposição de Fernando Collor. É o mesmo caso de Michel Temer e seu ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, que assumiram após a saída de Dilma Rousseff. É possível fazer um paralelo entre os dois momentos? O fato de o governante chegar ao poder após um processo de impeachment traz uma certeza: a margem para erro é muito pequena. Itamar tinha como trunfo o amplo apoio a seu governo, já que ninguém mais queria Collor na presidência. Temer não tem isso, como mostram os protestos contra ele nas ruas. Mas Temer conseguiu o que Itamar não conseguiu: montar uma boa equipe econômica desde o início. O governo Itamar teve três ministros da Fazenda em seus primeiros sete meses. O problema é que o governo Temer não está sabendo comunicar suas ideias.
Em que pontos o senhor acha que a comunicação do governo é falha? A reforma da Previdência é essencial, mas mesmo assim o governo não consegue explicar para a população o risco que ela corre de ficar sem aposentadoria se as mudanças no regime previdenciário não ocorrerem. Não se fala de coisas complexas como essa espalhando balões de ensaio. As pessoas não vão apoiar a reforma da Previdência se não souberem o que de fato vai mudar. Veja a questão das doze horas de jornada de trabalho, por exemplo. O governo não defende essa mudança, mas foi a impressão que as pessoas tiveram. A repercussão negativa deve-se, em parte, a uma má vontade com o governo – e eu acho que há uma má vontade difusa –, mas não se pode ignorar que a mensagem não foi bem transmitida.
Em que aspectos a comunicação de agora foi diferente da do seu período no Ministério da Fazenda? Quando íamos lançar o real, uma das primeiras coisas que fizemos foi conversar com institutos de pesquisa para que eles identificassem onde estavam as maiores dúvidas e preocupações da população. No geral, as pesquisas disseram que as pessoas consideravam o plano consistente, bem-feito, mas ninguém tinha muita convicção de que iria prosperar. Depois, consideramos contratar uma agência para produzir material para tirar as dúvidas. Desistimos do material por não haver verba nem tempo para esperar a licitação. Na sequência, ainda foi preciso conversar com as TVs sobre o horário de exibição dos pronunciamentos. As emissoras ficaram em pânico quando souberam que haveria redes de rádio e TV em horário nobre toda semana. As emissoras deram a ideia de que os pronunciamentos fossem realizados às 13h. Assim, o material teria cobertura ao longo do dia e também no noticiário noturno. E assim foi feito. Em vez de brigar com a imprensa, unimos forças em nome do sucesso do plano. Falava-se de Plano Real até na transmissão do futebol.
Isso funcionaria hoje? Fizemos o que dava com o tempo e o dinheiro que tínhamos. A URV (Unidade Real de Valor, a “moeda” escritural que fez a transição entre o cruzeiro real e o real) foi anunciada em fevereiro de 1994, passou a valer em março e o real viria em julho. Não tínhamos verba, mas conseguimos recursos do Funcheque (fundo formado por multas cobradas sobre cheques sem fundo). Como não haveria tempo para licitar a campanha, usamos os pronunciamentos. A cada semana estávamos em cadeia de rádio e TV. Mas não era para falar qualquer coisa, e não era propaganda. Não estávamos vendendo sabonete. Sempre fazíamos um estudo aprofundado antes de definir o tema a ser tratado. Era um trabalho científico. Se não houver uma boa preparação do que será dito, a pauta vai ser abatida a tiros. Talvez falte isso hoje – saber o que as pessoas desconhecem. Os ministros às vezes agem de maneira até ingênua. Como uma equipe formada por políticos tão experientes está tendo tantos tropeços? É uma sucessão de trapalhadas.
O governo tem nomes com bastante experiência na política. Dá para falar em ingenuidade com uma equipe com essas características? Quando o governo atual começou, havia uma grande expectativa, e justamente por ser formado por políticos experientes e técnicos respeitados. Mas, se você pensar bem, todos os políticos experientes – Eliseu Padilha, Moreira Franco, Geddel Vieira Lima e outros – sempre foram homens de bastidores, operadores de Congresso. Nenhum deles é um líder popular, com apelo nacional. O talento que eles têm como homens de Congresso não os prepara imediatamente para os desafios enormes que a gestão impõe. Esse ainda é um governo mais de intenções que de ações. O governo quer fazer a reforma trabalhista, quer fazer a reforma da Previdência... É preciso considerar que o tempo ainda foi muito curto, mas seus grandes feitos ainda são coisas que estão por vir. Até o momento, estamos no terreno das veleidades.
"Estávamos em cadeia de rádio e TV toda semana para explicar o real. Não era para falar qualquer coisa, e não era propaganda. Não estávamos vendendo sabonete"
Não é possível identificar feitos mais concretos? Há alguns sinais de melhora das expectativas, por exemplo. Não há muita base concreta para arriscar uma análise sobre o desempenho da economia até o momento. Sim, o pior já passou, e essa já era a sensação mesmo antes do impeachment. Mas nem todos os índices vão na mesma direção. Os de confiança melhoraram, mas os de atividade ainda são contraditórios. De qualquer forma, ainda que o tempo seja curto, em alguns segmentos já é possível ver resultados. O Pedro Parente na presidência da Petrobras é um deles. Em poucos meses, ele mudou a imagem da empresa de maneira drástica. Isso tem muito a ver com a qualidade do corpo técnico da empresa, mas também de ações da atual administração. É claro que não se pode comparar uma empresa com o governo. Uma empresa, que pode vender ativos, tem muito mais flexibilidade de fazer receita que o governo. Ainda assim, a percepção que se tem da empresa mudou completamente.
O senhor participou da redação do discurso de posse do ministro José Serra no Ministério das Relações Exteriores. Já houve alguma mudança prática na direção do Itamaraty? O Brasil voltou a adotar uma agenda mais pragmática na diplomacia, deixando de lado a aproximação movida por afinidade política – e a relação com a Venezuela é o exemplo mais notório. Acredito que o Itamaraty está retificando excessos de políticas de governos anteriores. De qualquer forma, ainda é um trabalho em fase de implementação. Minha colaboração para o discurso foi a de apresentar algumas sugestões na área de meio ambiente. Mas o texto principal já estava pronto.
O início de Serra no Itamaraty foi marcado por algumas rusgas com os governos de países como Venezuela, Equador, Bolívia e Uruguai – que chegou a acusar o ministro de tentar comprar o voto uruguaio para a escolha da presidência do Mercosul. Críticos dessa postura dizem que ela gera atritos e instabilidade e contraria o histórico da diplomacia brasileira. O ministro não tem sido muito duro? As manifestações do ministro Serra foram sempre em respostas a ataques. Em nenhuma delas a primeira palavra partiu dele. E é preciso considerar que as relações exteriores sempre exigem reciprocidade. É como o tango: para dançar, é preciso ter duas partes. O Brasil não teria se manifestado se não tivesse sido provocado pela outra parte antes. Ao mesmo tempo, é preciso se manifestar. Do contrário, não se conquista respeito externo.
Mas essa postura não cria uma animosidade com os vizinhos em um momento de início de relação do atual governo com eles? Esses episódios já foram superados. Além disso, a tendência é que o calor desses embates diminua, e por motivos práticos. Veja o caso da Bolívia. Metade da receita do país é da venda de gás natural feita ao Brasil. Em algum momento o governo boliviano vai ter que negociar contratos com o brasileiro – e o brasileiro é o que está agora. A Bolívia não pode sustentar a animosidade indefinidamente.