O ministro da Cultura, Roberto Freire, chegou ao governo Michel Temer às pressas, em meio a um incêndio com a demissão do antecessor, Marcelo Calero, que bateu a porta do gabinete acusando um ex-colega do primeiro escalão, Geddel Vieira Lima, de pressioná-lo em prol de interesses particulares. Era a segunda crise no Minc sob Temer. Freire não é conhecido por ter um dos temperamentos mais afáveis da Esplanada dos Ministérios e, aos 75 anos, ocupa um cargo no Executivo pela primeira vez. Mesmo assim, o advogado recifense busca apaziguar a relação com um setor que anda desconfiado com o presidente e foi precursor de mobilizações contrárias a ele com ocupações de prédios – a primeira crise do Minc. Sua prioridade é recuperar a Lei Rouanet, uma marca nacional que diz ter sido “enxovalhada”. Freire militou no PCB, combateu a ditadura militar, exilou-se no Chile, abrigou-se no MDB e faz carreira parlamentar. Desde 1975, foi deputado estadual, deputado federal e senador. Presidiu o PPS até assumir como titular da Cultura. Defensor do pensamento de esquerda, o ministro apoiou o lulopetismo e migrou à oposição, frequentemente aliando-se ao PSDB. Em entrevista a VEJA, Freire acusa a esquerda de agir como os ludistas que destruíam máquinas para barrar a Revolução Industrial, diz que o Estado não pode determinar a política cultural sob risco de transformá-la em propaganda e nega ter se beneficiado de caixa dois, apesar de ter sido citado na lista da Odebrecht.
Como o senhor gostaria de ser lembrado como ministro da Cultura? Como o governo é de transição, venho com espírito de reforma. Vamos retirar a Lei Rouanet desse enxovalhamento geral que foi legado ao Brasil, para que não se encerre na Cultura uma lei importante do mecenato, sobretudo, para aquilo que não tem um valor de mercado muito evidente. O resto será consequência, maior preocupação com coisas permanentes como museus e bibliotecas, incentivo à formação de criadores, aos festivais e às feiras do livro, não esquecendo as vanguardas.
Por que a imagem da Lei Rouanet foi tão maculada? No Brasil está tudo maculado por causa do governo lulopetista. O que é no Brasil que você toca e não aparece podridão? Não foi pouco o tempo de Lula e Dilma. Fica difícil imaginar que teve um escândalo e ficou naquilo, que houve um desvio e foi só um desvio. Você começa a imaginar que o próprio mecanismo viabilizava esse desvio. No caso da Lei Rouanet, as pessoas ficaram achando, inclusive de forma um pouco equivocada, que ela existia para beneficiar com dinheiro artistas ligados ao governo. Podia até ter, mas não era bem isso. Se por ventura houve algum desvio, isso é irrelevante se você levar em consideração os benefícios que foram trazidos.
O que era então? Havia uma desídia geral. O governo anterior não cuidava de analisar as prestações de conta. É grave. Temos quase 20 000 projetos acumulados, em sua maioria da Lei Rouanet, mas também de pontos de cultura e alguns audiovisuais. É grave. Alguém até comentou 'Nós não sabemos se existem outros Bellinis' (referência ao grupo Bellini Cultural, um dos principais alvos da Operação Boca Livre da Polícia Federal, que flagrou desvios de 30 milhões de reais na Lei Rouanet). Se não analisou, não se sabe o que foi feito em vários desses processos. Todo dia estou assinando para que as pessoas devolvam ao Tesouro recursos mal aplicados da Lei Rouanet.
O governo vive em dificuldade orçamentária. Como defender que o Estado destine dinheiro de forma prioritária para produção cultural? Não conheço nenhum país que não tenha feito isso. Ao governo cabe buscar mecenato na sociedade civil, incentivar e até fomentar, mas com a clareza de que tem que ser uma visão pluralista e democrática, sem ficar buscando que as definições sejam suas, não importa qual seja o governo. No fundo, você pode correr o risco de transformar em propaganda e não em Cultura. A intervenção direta do Estado é sempre perigosa no campo da Cultura.
“Ao governo cabe buscar mecenato na sociedade civil e até fomentar, com uma visão pluralista e democrática, sem ficar buscando que as definições sejam suas”
O senhor tem predileção por algum produto cultural? Tenho uma biblioteca. O livro é onde o ser humano pode afirmar mais sua visão de mundo. Sou de uma época em que não tinha televisão, não havia tanto acesso a outros bens, nem essa capacidade de se envolver com expressões culturais a todo momento.
E cinema? Qual o último bom filme nacional a que assistiu? Eu estou em falta com alguns desses mais novos que saíram. Nacional não tenho visto muito não. Assisto mais de casa, nessas plataformas sob demanda.
Que plataformas o senhor usa? Netflix? Sim. E também o Now na TV a cabo. Esse é o mundo do futuro. Em todas as expressões culturais, não só no cinema, a tendência é que o serviço sob demanda substitua.
Seu partido faz parte da gestão do prefeito João Doria (PSDB) em São Paulo, que decidiu apagar pichação e murais de grafite. A arte de rua ela não tem a permanência das artes plásticas visuais, dos quadros. Ela tem periodicidades. Ninguém pode imaginar que um grafite fica para toda a eternidade. Mas não me parece que ele tomou nenhuma atitude contra o grafite, mas contra a pichação. Ninguém quer a sua casa pichada. No quarto do meu neto, por exemplo, tem um grafite e eu até acho interessante. Mas não tem nada rabiscado.
No início do governo Temer, a classe artística reagiu ao fim do ministério da Cultura. Foi um erro? Aquilo foi um elemento importante na luta política contra o governo como um todo. Aproveitou-se uma discussão que não foi bem conduzida e teve uma dimensão maior pelas celebridades. Tudo no mundo artístico tem uma visibilidade muito maior. Tanto que o governo rapidamente entendeu que deveria atender ao pleito, mas não deixou de ter ocupação.
O senhor reagiu na entrega do Prêmio Camões porque o escritor Raduan Nassar, então premiado, criticou Temer. Não foi virulento? Oi? Eu fui desrespeitado! Virulento foi o que ele fez, num evento daquele. Lutei a minha vida toda para que a gente pudesse ter liberdade de expressão. Mas agressão não. Quem agrediu foi o homenageado que estava recebendo um prêmio. Não banco vítima, eu reajo! Eles perceberam o equívoco que era naquele momento dar um ar de panfleto político, como eles fizeram, inclusive utilizando um escritor que merece respeito como escritor, mas não como político.
O ator Wagner Moura diz que o governo trata artistas como vagabundos. Ele está profundamente equivocado. Acho estranho porque todos foram tratados, independentemente de posição política e ideológica, com todo o respeito.
O senhor substituiu um ministro demissionário que saiu denunciando pressão de outro colega por interesse privado. Recebeu algum pedido assim? Tenho 40 anos de vida pública, não sou nenhum noviço. Faltou ao ministro [Calero] reagir contra qualquer possibilidade de assédio. Na atividade pública, há pressões das mais variadas formas, mas não pode se deixar intimidar.
Ainda se considera comunista? Em termos de valores, de concepção de uma sociedade mais igualitária e mais justa, sim. A organização social e a militância que tivemos foram derrotadas pela História, embora tenham marcado a História. A forma de organizar a economia, capital e trabalho, como no mundo soviético do socialismo real, foi causa da derrota e não cabe mais.
O que é ser de esquerda? É tentar entender esse novo mundo que vem aí e não ficar prisioneiro e querendo manter o passado. Achávamos que da sociedade industrial sairíamos como a força hegemônica. Ao contrário, fomos o principal derrotado pela sociedade do conhecimento e da inovação tecnológica. Isso ainda está provocando, em toda a esquerda, uma profunda crise. Estamos meio perdidos. Basta ver o que está acontecendo com o grande avanço do pensamento mais conservador, mais à direita, no mundo todo. Talvez o exemplo mais dramático disso tudo seja a França, onde o governo de um presidente socialista [François Hollande] foi incapaz de disputar um pleito futuro.
A direita entendeu essa mudança? Há uma direita que entendeu do ponto de vista econômico e está se adaptando, não é necessariamente fascista e desumana. Talvez uma direita Trump não esteja entendendo, por isso a preocupação no mundo com o nacionalismo exacerbado, a falta de humanidade contra refugiados, contra imigrantes. O mundo de integração se dá não só com o capital, mas com as pessoas também.
O senhor tem algum exemplo exitoso de governo de esquerda hoje? Não. Alguns setores de esquerda perderam a característica de ser vanguarda. Grande parte da esquerda virou força reacionária. Que loucura é essa? Isso é dramático. Não adianta imaginar que as relações de trabalho de uma sociedade industrial serão as de amanhã. O que a esquerda precisa entender é que já fomos jacobinos e bolcheviques porque o momento assim exigia. Alguns setores da esquerda hoje lembram uns ludistas modernos, ludistas digitais. O nosso papel é tentar ajustar, não tentar impedir para manter o passado. Tem que participar da discussão e envolver o trabalhador. Temos sim que discutir a transição e lutar para que não seja feito de qualquer forma. Nenhum processo revolucionário deixa nada em pé. Marx diz ‘Tudo que é sólido se desmancha no ar’. Nós estamos vivendo uma grande revolução, esse é o termo apropriado. Revolução não é golpe, nem assalto ao palácio de inverno ou derrubada de governo. A revolução é outra forma de a sociedade se organizar, de as pessoas se relacionarem e de se produzir.
“A esquerda precisa entender que já fomos jacobinos e bolcheviques porque o momento assim exigia. Alguns setores hoje lembram uns ludistas digitais.”
A oposição a Temer tomou esse caminho? Claro. Ficam contra tudo e qualquer mudança. Até entram em contradição, porque quando estavam no governo propunham as mesmas reformas, não fizeram e não querem que ninguém faça agora. O PT foi deu lucro para os bancos, foi ótimo para o setor financeiro, e não resolveu nenhum dos problemas. Só cresce o movimento dos sem-teto e continua tendo o movimento dos sem-terra. Só falta fazer o movimento dos analfabetos, porque também não acabaram com o analfabetismo. Aqui no Brasil tivemos o pior dos mundos. Juntando a crise geral, há o enxovalhamento da esquerda com a corrupção.
O senhor apoiou o governo Lula no início. E rompi não tendo muita clareza de tudo que viria, mas tendo certa desconfiança. Havia uma total despreocupação com o respeito que o cargo de um presidente da República tinha que inspirar. Ele tratava a política sem nenhum respeito a nada. Isso se via quando ele buscava aliança de qualquer jeito. Lula não tinha espírito republicano, não respeitou partido e isso foi um primeiro passo para a compra, a cooptação, a corrupção desenfreada.
O PMDB, o partido que comanda o governo, tem espírito republicano? O PT era o ator principal de todo esse processo. O PMDB era parte do governo do PT, mas como coadjuvante. Esse não é um governo do PMDB. O governo tem, por imposição constitucional, aliados do vice-presidente e os que estavam do governo anterior. Mas tem sido republicano e profundamente reformista. Temer é um parlamentar, em sua história. Ele sabe que o senhor das reformas é o Congresso.
O senhor não se incomoda em ser chamado de golpista? Isso é uma estultice, um termozinho da moda, uma narrativa que não tem nenhuma sustentação.
Há semelhanças entre os governos Itamar e Temer? Tanto quanto o governo Itamar, o governo Temer está sendo muito reformista. Arrisco dizer que pela característica, um governo pós-impeachment caminha para as reformas quase que como uma necessidade. É de transição, mas ao mesmo tempo é de clara intervenção. Itamar foi um dos governos mais reformistas que nós tivemos. Não foi só o Plano Real.
Caixa dois é ou não corrupção? Vou aguardar que o Supremo decida. Eu não ajudo em nada nessa discussão. Mas caixa dois é uma ilegalidade, claro.
O nome do senhor apareceu em documentos apreendidos da Odebrecht, como destinatário de 500 000 reais, em 2012. Eu não era nem candidato. Eu recebi como presidente do PPS, e não fui eu quem captou.
Mas o senhor já recebeu dinheiro dessas construtoras para campanhas próprias e apareceu na lista do Fachin. Sim, tudo doação legal. Nunca recebi caixa-dois.
Como devem ser financiadas as campanhas eleitorais? Votei pelo fim da contribuição da empresa privada e por mim não volta. Mas um país sem política é a barbárie. Você pode ter políticos que não merecem nenhum respeito, pode viver momentos de crise grave como estamos vivendo, mas temos que nos mover para que a política volte na sua plenitude, com legitimidade e respeito. E para isso cabe a discussão de que legislação devemos ter. Se alguém disser que vamos gastar muito com o financiamento público de campanha, vão dizer que precisamos é de hospitais e escolas. A solução não é simples. É um debate democrático. Não acredito em deuses e nem demônios.
Foto: Cristiano Mariz/VEJA