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Manoj Joshi

Brigar com a China não é nada útil

Especialista indiano em Relações Internacionais afirma ser inevitável o deslocamento dos poderes econômico, político e tecnológico do Ocidente para o Oriente e garante que, ao dominar a tecnologia 5G, Pequim vai liderar a próxima Revolução Industrial

Por Florência Costa, de Nova Délhi

query_builder 14 jun 2019, 17h20

Sonho da China e da Índia desde o fim da era colonial, a chegada do século da Ásia era inevitável, diz o indiano Manoj Joshi, diretor do Programa de Segurança Nacional da Observer Research Foundation, think tank sediado em Nova Délhi. Para o pesquisador, o poder econômico mundial se deslocará na direção do Oriente, ao mesmo tempo que o poder político e o tecnológico. Trata-se das preocupações centrais dos EUA, que travam hoje uma intensa batalha comercial com Pequim, simbolizada pelo episódio da Huawei, a companhia chinesa que domina a tecnologia 5G.

“Esta quinta geração de internet móvel vai liderar a próxima Revolução Industrial. A Huawei tem tecnologia mais avançada do que qualquer coisa que os EUA tenham. E isso é apenas o começo nesse deslocamento na direção do Oriente, que vai liderar a próxima Revolução Industrial”, afirmou Joshi em entrevista a VEJA, em Nova Délhi.

O pesquisador indiano explica que o grande projeto chinês de investimento em infraestrutura na Ásia, a Iniciativa do Cinturão e Rota, também chamado de Nova Rota da Seda, está se aperfeiçoando desde seu lançamento, em 2013, pelo presidente da China, Xi Jinping. Ao aprenderem com as críticas recebidas, os chineses conseguiram atrair a parceria do Japão, que oficialmente não integra a Nova Rota da Seda, em projetos em terceiros países.

A Índia, segundo ele, vai pelo mesmo caminho do Japão. Joshi acredita que o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, reconduzido ao poder, estreitará ainda mais os laços com a China de Xi, com quem tem uma excelente relação apesar das disputas. “Modi percebeu que apenas ficar contrariado ou brigar com a China não é nada útil.”

Sobre a ideia de o Brasil participar da iniciativa chinesa, discutida pelo vice-presidente Hamilton Mourão em sua recente visita a Pequim, o especialista indiano é categórico: “O Brasil deveria aceitar”.

O século asiático deve começar em 2020, com as economias da Ásia superando o somatório do restante do mundo. Será o retorno ao cenário da Antiguidade, quando China e Índia eram as principais potências econômicas? Isso pode acontecer em 2020 ou 2021. O que importa é que o século da Ásia é inevitável. Desde o fim da era colonial já havia um sonho, na China e na Índia, por uma Época Asiática. Xi Jinping tem falado sobre uma Ásia para os asiáticos.

Como se dará esse deslocamento de poder na direção do Oriente? O deslocamento do poder econômico na direção do Oriente também será acompanhado por um deslocamento político e tecnológico. Não há como evitar isso. E é justamente o que preocupa os Estados Unidos. Veja o episódio da Huawei (a guerra comercial entre Estados Unidos e China em torno dos negócios da líder global na tecnologia 5G). Esta quinta geração de internet móvel vai liderar a próxima Revolução Industrial. A Huawei tem tecnologia mais avançada do que qualquer coisa que os EUA tenham. E isso é apenas o começo desse deslocamento na direção do Oriente. Outras tecnologias virão. Os chineses estão comprando redes de transmissão elétrica mundo afora. Compraram no Brasil (a CPFL Energia), em Portugal, na Grécia, e tentaram comprar na Alemanha. Os chineses são especializados na chamada transmissão de ultra-alta voltagem. Esse sistema permite a transmissão de energia por mais de 7.000 quilômetros de forma econômica.

Mas há também a preocupação dos Estados Unidos, e eu acho isso legítimo, com a natureza muito opaca do Estado chinês. O processo de decisão não é transparente na China. O Estado dá subsídios às corporações, não há economia de mercado. O que mais preocupa os ocidentais em relação à China é a aquisição de tecnologia e o seu uso para os objetivos de política externa. Por isso os Estados Unidos se decidiram pelo confronto direto.

Para deixar claro: o século será da Ásia ou da China? Em maio, participei de uma conferência na embaixada chinesa em Nova Délhi sobre a perspectiva civilizacional das relações Índia-China. Os dois países, como civilizações, nunca tiveram problemas um com o outro. Quando Rajiv Gandhi (ex-primeiro-ministro da Índia) foi a Pequim, em 1988, e encontrou-se com Deng Xiaoping, o líder chinês disse que o século da Ásia nunca poderia ocorrer a não ser que a China e a Índia se unissem.

"Os Estados Unidos veem Pequim como competidor estratégico. As cadeias de suprimentos estão interrompidas, há mais protecionismo, e o declínio nas exportaçõespode levar à desaceleração econômica global, que não é boa para ninguém

A China e a Índia estão se unindo? No ano passado, tivemos uma importante reunião de cúpula sino-indiana em Wuhan, na China, na qual Narendra Modi e Xi Jinping conversaram por muitas horas. Foi um encontro informal, sem agenda. Modi foi quem fez o movimento inicial para este encontro com Xi. Ele percebeu que apenas ficar contrariado ou brigar com a China não é nada útil. Em setembro, teremos uma segunda rodada na Índia. Temos pendente o problema da disputa de fronteira (os dois países chegaram a travar uma curta guerra, em 1962, vencida pela China). Mas conhecendo os chineses, talvez eles tentem selar um acordo com a Índia porque, agora, enfrentam uma nova ameaça por parte dos Estados Unidos.

O que a Ásia tem a ensinar para o Ocidente? Há duzentos anos, tudo o que o Ocidente aprendia vinha da Ásia, desde o processo de produzir papel até a matemática. Antes da Revolução Industrial no Ocidente, o fluxo de conhecimento e de comércio vinha pela Rota da Seda, do Oriente. Hoje, os chineses estão identificando as áreas nas quais querem liderar globalmente, como robótica, farmacêutica, veículos elétricos. Há uma tendência entre os ocidentais de pensar que só eles podem ensinar, de que não há nada a aprender com o Oriente. Eles esqueceram o passado. Enquanto isso, no Oriente, há uma percepção forte sobre os 200 anos de colonialismo, que não esqueceremos. Entre os chineses, essa percepção é ainda maior do que entre os indianos. Eles chamam os anos de colonialismo de os anos da humilhação.

Alguns argumentam que o século da Ásia acabou mesmo antes de ter começado. Concorda? Quem fala isso tenta construir uma narrativa negativa. Vejo este século não apenas como da Ásia, mas global. Hoje, mais do que nunca, nós precisamos que todos ascendam. Precisamos de um século asiático, um século africano, um século latino-americano simultaneamente. Temos uma interdependência global tão grande que não dá para ter uma área ascendendo e a outra em decadência.

Como terceira economia da Ásia, a Índia está no caminho econômico correto? Nós estamos crescendo a 7% ao ano, mas não é suficiente. A Índia precisa de duas a três décadas de crescimento a 10% ao ano para transformar a sociedade, como fez a China, que se transformou completamente porque planejou tudo com antecedência.

Como saltar para dois dígitos de crescimento anual? Precisamos de uma revolução na agricultura, transformar a economia rural. Cerca de 70% dos 1,3 bilhão de indianos vive no campo, e 60% da mão de obra do país está lá. Hoje, a Índia gasta mais em subsídios para os agricultores do que em investimentos na agricultura. Precisamos também de uma reforma na educação. Temos muitas universidades ruins e muitos jovens sem qualificação. Eles têm mestrado e doutorado, mas não têm empregos, estão frustrados.

"O Brasil deveria aderir à Nova Rota da Seda. Os chineses colocam muito dinheiro nesses projetos, que são importantes para os países que precisam de infraestrutura. Os japoneses hoje colaboram em 50 projetos

Os líderes do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) se dará no Brasil, no fim deste ano. O governo Jair Bolsonaro, por exemplo, tem sinalizado para uma relação mais intensa com os Estados Unidos e não com as economias emergentes. Qual o futuro desse grupo? A Índia também é bastante próxima dos Estados Unidos, inclusive com uma aliança militar, que envolve grandes compras de equipamentos americanos. O Brics vai continuar sendo uma plataforma útil para os grandes países do Sul na coordenação de suas políticas em questões importantes, como as da Organização Mundial do Comércio (OMC), e como fonte de financiamento de infraestrutura.

O vice-presidente Hamilton Mourão esteve recentemente na China e indicou haver espaço para discutir a possível entrada do Brasil na Nova Rota da Seda. É uma boa ideia? Sim, o Brasil deveria aceitar. Os chineses colocam muito dinheiro nesses investimentos que são importantes para os países que precisam de infraestrutura. Alguns países que se recusaram inicialmente a participar direta e oficialmente dessa iniciativa passaram a integrar parcerias com os chineses em projetos em várias partes do mundo. Os japoneses, por exemplo, hoje colaboram com os chineses em cinquenta projetos, embora não sejam oficialmente da Nova Rota da Seda. Os chineses eram inexperientes no início, mas estão aprendendo com as muitas críticas que receberam nestes cinco anos. No segundo fórum sobre a Nova Rota da Seda, os chineses ofereceram uma visão mais colaborativa. Há projetos com fundos chineses, do Banco Mundial e do Banco de Desenvolvimento da Ásia. A Iniciativa do Cinturão e Rota está mudando.

A Índia pode vir a integrá-la? Hoje, a Índia rejeita oficialmente o projeto chinês. Mas acho isso um erro. A Índia tomou essa atitude porque os projetos de infraestrutura passam pela Caxemira ocupada pelo Paquistão. A China está alocando muito dinheiro nesses investimentos, e a Índia precisa de infraestrutura. Podemos ganhar com isso. No início, foi dito que a Nova Rota da Seda seria uma armadilha, mas hoje ficou provado que essa teoria estava errada. O problema é que a China insiste em trazer a sua própria mão de obra. Mas podemos negociar isso. A Índia já sinalizou que participará de projetos de infraestrutura colaborativos com os chineses em terceiros países, como o Afeganistão. Acredito que haverá avanços na segunda reunião entre Xi Jinping e Narendra Modi, em setembro. No lugar de competir com os chineses, o que não conseguimos fazer, devemos colaborar com eles. Não podemos ignorar a China.

Qual é o alvo do projeto da Nova Rota da Seda? O alvo é a Europa. Os chineses querem ascender na cadeia de valor econômico. Por exemplo, eles fabricam o Iphone, mas recebem apenas 7 dólares por celular. A Apple recebe 200 dólares. Para subir na cadeia de valor econômica é preciso ter mercados. Os chineses veem a Europa como mercado e vão fazer carros elétricos de alto padrão para lá. Os chineses têm trens em toda a Ásia e, toda semana, três a quatro trens partem para a Europa. Eles compraram um porto na Grécia e querem usar os portos italianos. Mas agora que os chineses estão fazendo mais projetos na Europa, começa a haver mais demanda por transparência desses projetos.

Quais são as repercussões para a China e para a Ásia da guerra comercial deflagrada pelos Estados Unidos? A longo prazo, todo mundo será perdedor. Claro que essa guerra comercial vai colocar alguma pressão sobre a economia chinesa e suas exportações para os Estados Unidos. À primeira vista, o colapso da relação entre China e Estados Unidos pode ser vantajoso para a Índia e fortalecer o alinhamento que já há entre Washington e Nova Délhi. Mas não acredito que uma ruptura de longo prazo na economia global poderia beneficiar a Índia, que não tem escala para substituir a China na sua cadeia de fornecimento global. A Índia tem oportunidades no mercado chinês. Pequim tem, aos poucos, promovido a abertura de seu mercado para a Índia. Isso é resultado direto da intensificação dos problemas que os chineses enfrentam com os americanos. A Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean) é apontada como a melhor alternativa para alguns setores da cadeia de suprimentos chinesa. Mas também são vulneráveis à queda na demanda chinesa por peças e componentes para a fabricação de produtos destinados aos Estados Unidos.

Quais os sinais negativos desta guerra comercial para a economia mundial? Os Estados Unidos e a China estão à beira de uma grande transformação nas suas relações. Desde 2017, os Estados Unidos veem Pequim como um competidor estratégico. Mas a imposição de tarifas de lado a lado pode levar a um colapso total, com o resto do mundo lutando para lidar com possíveis consequências drásticas. Primeiro, as negociações comerciais foram interrompidas. Ambos os lados se posicionam e parece não haver um ponto em comum. As cadeias de suprimentos estão interrompidas, há mais protecionismo, e o declínio nas exportações pode levar à desaceleração econômica global - que, obviamente, não é boa para ninguém.

É possível alcançar um acordo bilateral para acabar com as medidas adotadas por Donald Trump contra a China? As esperanças estão depositadas no encontro entre Xi Jinping e Trump, em paralelo à reunião do G-20 no Japão, no fim deste mês. Mas, ao mesmo tempo, os Estados Unidos passaram a sancionar a chinesa Huawei, o que poderá ser o prelúdio de mais uma fratura ampla entre duas das maiores economias do mundo

Foto: Florencia Costa