A incerteza política está longe de ser uma exclusividade brasileira. Os Estados Unidos elegeram Donald Trump, os ingleses decidiram pelo Brexit e o que antes parecia óbvio, não é mais. A incapacidade de prever os acontecimentos a nível mundial ajuda colocar em perspectiva a crise brasileira. A opinião é do historiador britânico Richard Fenning, que desde 2005 comanda as atividades da Control Risks, consultoria especializada em investigação corporativa e avaliações de risco político. Muitos dos clientes que recorrem à empresa, que tem sede em Londres e 36 escritórios pelo mundo, são presença constante nos tradicionais rankings da revista Fortune. Na avaliação de Fenning, a turbulência política fortalecerá o Brasil e os vizinhos da América Latina que souberem aproveitar o momento para combater a corrupção. Durante uma visita de negócios em São Paulo, Fenning concedeu a seguinte entrevista a VEJA.
Como a crise política afeta o apetite dos investidores para o Brasil? Os investidores são divididos em dois grupos. Para o primeiro, tudo o que acontece politicamente no Brasil é um obstáculo. Esse grupo teme a reputação associada ao país e o que pode vir a descobrir sobre os negócios que fizer aqui, especialmente no que tem alcance direto da Operação Lava Jato. Já para o segundo grupo, a crise significa que as coisas estão mais baratas, e existem várias companhias que estão vendendo ações para levantar dinheiro e pagar as contas. Quanto à oportunidade de adquirir ações brasileiras com um desconto significativo em relação ao período pré-crise, é tudo uma questão de agir no momento certo. É o caso de empresas ligadas ao setor de gás ou construção, que costumam atrair os investimentos mais robustos.
A crise parece menor vista de fora? O problema do Brasil é que duas crises atingiram o país ao mesmo tempo: o ciclo de preços baixos das commodities e a regulação da corrupção política. Mas o que ajuda a apaziguar o sentimento do investidor é saber que o Brasil não é o único a ter uma configuração política estranha agora. Olhe o que está acontecendo nos Estados Unidos, que passa por todas as adversidades do governo Donald Trump. O Reino Unido está deixando a União Europeia, a França elegeu um presidente que não tinha nem mesmo um partido. E com tudo isso vemos Wall Street batendo recordes absolutos, e o mesmo acontece na Europa. Temos algumas políticas estranhas ocorrendo no mundo. Então, neste contexto, o Brasil é parte de uma ampla narrativa que indica que a política se transformou em uma novela internacional. Os investidores estão se distanciando das tempestades políticas e focando os fundamentos da economia. Eles não veem se há drama político, e sim se os dramas políticos impedem que sejam feitas reformas.
Parece que o Brasil do presidente Michel Temer terá problemas para fazer as reformas prometidas. Para investidores, pouco importa se Temer fica ou deixa a Presidência. Eles monitoram todos os tipos de incerteza e a instabilidade política faz parte. Agora, se as reformas forem embora junto com Temer, será um problema, e isso afugentará até os investidores que estão dispostos a correr certo nível de risco. Ainda não chegamos a esse ponto. A perspectiva de reformas significativas é menor hoje do que era antes, mas o que é avaliado por estrangeiros neste momento é se o apetite dos brasileiros por mudanças persiste e se elas serão levadas a cabo uma vez que existam as circunstâncias certas. Quem vê de fora está maravilhado com o fato de o país ter ido tão longe em um espaço de tempo curto – sem estar aos pedaços. Isso é muito positivo e indica dois elementos importantes da reputação do Brasil. O primeiro é que o país é mais capaz de mudar do que as pessoas imaginavam. Ninguém sonhava que a presidente Dilma Rousseff poderia ser derrubada ou que altos executivos fariam acordos de delação premiada para evitar a prisão. O mundo sempre supôs que a elite estava protegida, e esse pressuposto está muito perto de ser mudado no Brasil. Isso é uma boa notícia, no longo prazo. O país demonstrou ter a capacidade de mudar que a maioria dos países não têm, mesmo se isso trouxer problemas. Em segundo lugar, demonstra a resiliência do Brasil. O país está mergulhado em uma crise e a economia ainda funciona, apesar de tudo.
“O Brasil é parte de uma ampla narrativa que indica que a política se transformou em uma novela internacional”
Por quanto tempo a imagem do Brasil pode ser afetada pela crise? Quase tudo depende do que acontecer na economia. Se chegarmos a 2018 com a economia em ascensão, isso será mais importante do que a configuração da coalizão de governo ou de quem é o presidente. Tudo depende de quão rápido a economia pode voltar aos trilhos.
A fragilidade brasileira se reflete também na política externa? Desde a primeira vez que estive aqui, há quinze ou vinte anos, notei que o Brasil é muito centrado em si mesmo e não demonstra muito interesse por seus vizinhos. O país tem uma espécie de microclima, sempre dá a sensação de que uma porta se fechou atrás de você quando você chega. Parte disso é um charme, mas é preciso cuidado. O Brasil opera em certo tempo e ritmo próprios, alheio às pressões do mundo lá fora. Isso não mudou, mas não acredito que seja um empecilho para os investidores.
Como o senhor vê o impacto da Operação Lava Jato na América Latina? É um acontecimento muito positivo para esses países, muitos dos quais fizeram acordos com o Brasil no âmbito das investigações. O DNA do descontentamento popular que tomou forma nas manifestações de 2013 e 2014 no Brasil está presente nos vizinhos também. Há uma classe enorme de pessoas cansadas de corrupção e do governo ineficiente. Por um lado, os países da América Latina envolvidos na Lava Jato não têm escolha: precisam fazer algo porque as denúncias estão vindo à tona. Vai depender do cálculo interno de cada um deles fazer deste um evento isolado ou parte de um movimento maior contra a corrupção. Nesse quesito, o Brasil também mostrou a independência do Poder Judiciário, o que é muito positivo. É difícil precisar o tamanho da instabilidade que as investigações brasileiras podem provocar na região, mas não acredito que governos serão derrubados um após o outro pelas denúncias.
Como os riscos mudaram no decorrer dos anos? Quando eu comecei na área, há cerca de 24 anos, os riscos eram determinados pela geografia. Assumíamos que os Estados Unidos, a Europa e o Japão eram locais mais seguros enquanto o resto do mundo se tornava progressivamente mais perigoso, conforme nos afastávamos das áreas seguras. É uma visão simplista, mas é a mentalidade que dominava a administração de riscos. Isso foi completamente virado do avesso. Hoje, o risco está em todo lugar e tem presença digital em todas as partes do globo. A geografia é absolutamente irrelevante. O que importa é onde as pessoas armazenam seus dados, suas ações digitais e informações. Um bom exemplo disso foi o ataque cibernético WannaCry, no mês passado. Vemos uma espécie de globalização dos riscos. Quando imaginaríamos que a Inglaterra causaria histeria política? O país era politicamente entediante, mas a decisão de deixar a União Europeia é um exemplo significante de risco político para investidores que no passado era inimaginável.
“Os países envolvidos na Lava Jato não precisarão fazer cálculos internos e decidir se fazer deste um evento isolado ou parte de um movimento maior contra a corrupção”
Qual a principal ameaça da atualidade? A novidade é que o local de surgimento do risco é muito imprevisível na era digital. Os ciberataques mostram que existe uma grande capacidade de uso da tecnologia para propósitos ruins, maior do que nossa habilidade de contê-los. Esse desequilíbrio deve continuar por algum tempo, já que a guerra cibernética é muito mais barata que as formas convencionais de atacar inimigos, mas eventualmente os governos, empresas e instituições serão capazes de regular e deter esses ataques.
No mapa de riscos feito pela Control Risks no ano passado, o senhor previu que 2017 seria um dos anos mais difíceis em termos de decisões estratégicas de negócios desde o fim da Guerra Fria. O ano está sendo pior do que o previsto? No topo das preocupações citadas no relatório anual estava o receio de que Donald Trump rasgasse todos os tipos de contrato e mantivesse sua agenda radical. De alguma maneira, ele se tornou mais convencional. Está claro que Trump acha a política convencional muito difícil. Por isso, ele negocia da maneira que sabe, como está fazendo com a Otan. Trump quer um acordo financeiro com a Alemanha para que ela pague mais pela aliança militar. Berlim paga 1,2% do seu PIB, e a regra é pagar 2%. A diferença mudaria completamente as finanças da Otan. Mas isso não significa que os Estados Unidos abandonarão a aliança ou que deixarão de ajudar um aliado que invoque a cláusula de defesa mútua da organização – a única vez que ela foi invocada foi pelos próprios americanos. É a estratégia de negociar de Trump: ele estabelece parâmetros extremos, volta atrás e depois surge com uma nova oferta. Não acredito que isso funcionará com a Alemanha. Trump e a chanceler Angela Merkel têm relações pessoais muito ruins. Já com o presidente francês, Emmanuel Macron, existe mais vontade de dialogar.
Angela Merkel disse recentemente que a Europa não pode mais contar com os americanos como no passado. Qual será a relação entre Europa e Estados Unidos daqui em diante? Existe uma espécie de efeito Trump no que está acontecendo, mas eu não acredito que os fundamentos da relação transatlântica serão rompidos. As declarações do presidente americano devem ser observadas sob o ponto de vista da situação doméstica dele. Trump precisa continuar alimentando a base eleitoral que o elegeu. A tendência é que o discurso do republicano se torne ainda mais extremo conforme seus problemas pessoais aumentem. Além disso, não há dúvidas de que, em termos de temperamento, ele fica mais confortável com presidentes como Recep Erdogan, da Turquia, Vladimir Putin, da Rússia e o rei Salman, da Arábia Saudita do que com Merkel. O multilateralismo não o atrai. Mas nós devemos separar a personalidade de Trump do efeito Trump. O momento é difícil, mas é transitório. Ele pode ficar lá na Casa Branca por quatro anos, ou talvez por menos tempo. Existem poucos riscos de um dano permanente nas relações entre os Estados Unidos e a Europa.
O senhor acredita que Donald Trump pode sofrer um impeachment? Não, ele não se permitirá chegar a essa situação. Caso se torne iminente um processo de julgamento pelo Congresso, ele se colocará no papel de vítima e renunciará. Contudo, é importante ter em mente o perigo no plano mundial de uma destituição do presidente americano. O sistema comercial internacional ficaria muito desestabilizado. Portanto, devemos ser cuidadosos com o que desejamos.
Foto: Ricardo Matsukawa/VEJA.com