Com a experiência de quem visitou mais de 300 prisões pelo país na última década estudando o comportamento dos grupos criminais dentro do sistema penal brasileiro, o pesquisador e ex-consultor da Organização das Nações Unidas (ONU) Felipe Athayde Lins de Melo classifica como demagógicas as medidas anunciadas pelo ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, para enfrentar a crise nos presídios.
Doutorando em sociologia na Universidade Federal de São Carlos, onde integra o Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos, Lins de Melo é autor do livro “As Prisões de São Paulo: Estado e Mundo do Crime na Gestão da Reintegração Social” e foi gestor de políticas penitenciárias em São Paulo. Em entrevista a VEJA, ele defende que só haverá uma mudança real no quadro quando o Estado retomar o controle das prisões: "E isso só será possível através de ações sociais dentro das unidades criminais", afirma.
O senhor visitou mais de 300 prisões. Tem alguma cena que exemplifique como funciona lá dentro? Um diretor de segurança e disciplina de uma penitenciária paulista me disse há uns quinze anos: “Aqui está tudo sob controle, mas sob controle dos caras. Para manter a ordem é assim: a gente finge que está no controle, e os caras fazem o controle deles lá dentro. Recentemente, um diretor me confidenciou que o controle está cada vez mais longe das mãos do estado.
Em seu livro, o senhor chega a dizer que “existem vínculos muito fortes entre o estado e o mundo do crime”. Pode explicar? Há um processo gradual e contínuo de entrega de gestão dos ambientes de convívio das unidades prisionais para os grupos criminais. Claro que, em termos gerais, é o estado que controla os fluxos de entrada e saída nas prisões, de transferências, de acesso aos serviços básicos. Mas no cotidiano o que se tem é uma gestão compartilhada, sem a qual não seria possível termos tanta gente em ambientes com tanta superlotação e escassez de servidores. A consequência foi o fortalecimento desses grupos, que passaram a disputar a legitimidade da gestão do ambiente. O próprio estado alimentou a crise nas prisões. A guerra é só uma das consequências.
Se o senhor pudesse tomar uma medida emergencial, num prazo de, digamos, seis meses, qual seria? Não existe uma saída fácil. Quem vende isso está mentindo. Há medidas emergenciais, e algumas já estão sendo tomadas, como separação de certos grupos, o que estanca novos pontos de conflito. Outra ação seria a revisão imediata dos processos judiciais, para tirar de dentro do sistema quem não precisa estar lá, já que hoje 40% da população carcerária do país são de presos provisórios. Muitos não deveriam estar encarcerados.
E no médio e longo prazo, o sistema carcerário brasileiro tem jeito? O salto, que não está na pauta, é a promoção de políticas públicas nas prisões. O estado perdeu as prisões quando não foi mais capaz de suprir as necessidades básicas. Esse vácuo foi ocupado pelo grupo criminal. Hoje, toda a assistência aos presos – jurídica, material e até familiar – está nas mãos dos grupos que dominam as cadeias. Enquanto eles mandarem em todo o dia a dia da cadeia, não haverá um caminho.
O que fazer? É necessário repensar a política de segurança pública. Enquanto ela for baseada na atuação ostensiva, voltada à prisão daqueles que estão na linha mais subalterna do crime, estaremos apenas superlotando o sistema. Essas pessoas são facilmente substituídas na organização. Em vez de um a menos na rua, teremos agora um a mais dentro do grupo criminal. Se não fechar a porta de entrada do sistema prisional, não haverá cadeia suficiente para todo mundo nunca. Em vez disso, temos de investir em inteligência para desarticular esses grandes grupos. Outra questão importante é a padronização do sistema. Hoje, cada presídio no país tem regras e metodologias próprias. Isso dificulta a atuação e o controle do Estado.
"Se não fechar a porta de entrada do sistema prisional, não haverá cadeia suficiente para todo mundo nunca."
Algum país já passou pelo mesmo desafio que o Brasil enfrenta agora? Pode citar alguma experiência que deu certo? Países que sofrem com o hiperencarceramento estão adotando políticas de desencarceramento porque já compreenderam o fracasso da prisão em cumprir com “sua promessa de ressocialização”. Mas também porque identificaram que o alto custo do encarceramento poderia ser enfrentado através de outras medidas de responsabilização de quem cometeu crimes. Na última década, a República Dominicana passou por um processo muito forte de violência dentro dos seus presídios. Eles reverteram isso implantando uma mudança na governança e investindo fortemente na formação de dirigentes e servidores penais. Isso baixou consideravelmente a violência dentro dos presídios e desarmou diversos grupos criminais, porque o estado passou a ser o provedor das necessidades internas, e aumentou a ressocialização. Nessa metodologia, o inimigo não é mais o carcereiro. Ele é o aliado.
E no Brasil, existe alguma experiência que possa ser replicada nacionalmente? Há mais de dez anos, o Espírito Santo começou esse processo de reformulação do sistema prisional, depois de uma grave crise. Primeiro, eles desativaram unidades sem condições mínimas. Paralelamente, fizeram um investimento maciço na construção de unidades prisionais com espaços para funcionamento de serviços assistenciais: escola, pavilhão de trabalho e atendimento médico. As novas unidades também facilitaram o controle e convívio entre os agentes e os presos. Em seguida, houve um investimento muito forte na formação dos servidores. Em terceiro, aconteceu uma melhora nos serviços de alimentação, vestuário, lavanderia. O Espírito Santo também implantou uma unidade de triagem capaz de identificar o perfil, até mesmo criminal, de cada detento e sua trajetória. Compreender por que eles estão ali ou como foram parar no crime foi fundamental para a distribuição dos presos.
E alguma que deu errado? O modelo mais danoso que temos em vigor no país é o de São Paulo. O estado é hoje o que mais encarcera, é o que tem a maior população prisional e um dos que mais investiram na construção de presídios - saiu de 40 nos anos 90 para 174. E o que mudou? Nada. Pelo contrário, o PCC está cada vez mais forte dentro e fora das prisões. São Paulo foi o estado que investiu nessa política de encarceramento como sinônimo de enfrentamento da violência e, ao fazer isso, sem ocupar os espaços adequadamente, permitiu que o hoje principal grupo organizado no sistema penitenciário brasileiro surgisse, se consolidasse e se fortalecesse.
Após o massacre, o governo anunciou novos presídios, já que os atuais estão superlotados – 650 000 presos para 370 000 vagas. O problema é que temos presos demais. Hoje são aproximadamente 1 430 estabelecimentos prisionais, com mais de 372 000 vagas. Temos 184 vagas para cada 100 000 habitantes. A taxa mundial é de 144 presos para cada 100 000. Ou seja, se estivéssemos dentro da média mundial, sobrariam vagas no sistema penitenciário. E aí poderíamos estar desabilitando prisões sem condições básicas, por exemplo.
"Hoje, toda a assistência aos presos – jurídica, material e até familiar – está nas mãos dos grupos que dominam as cadeias."
O ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, chegou a dizer, quando era secretário da Segurança Pública em SP, que o poder dessas facções era menor do que o imaginado. Foi um erro? Foi. Ao negar a existência desses grupos e deixá-los agindo livremente no interior dos estabelecimentos prisionais, os governos permitiram que se articulassem, criando códigos de conduta e procedimentos, formando redes de contatos e aglutinando força. O que era algo possível de ser estancado virou uma hidra com muitas cabeças.
Houve muitas reações de apoio ao massacre. Como explicar para o cidadão vítima dos criminosos que é preciso tratá-los de maneira digna? É necessário mostrar que garantir direitos às pessoas privadas de liberdade significa garantir que nenhuma pessoa pode ter seus direitos fundamentais violados. Falar que “bandido bom é bandido morto” significa não a eliminação de um bandido, mas o surgimento de um novo homicida. Numa sociedade regida pela lei, a punição deve seguir a legalidade e não o arbítrio.
O governo lançou um novo Plano Nacional de Segurança, com medidas inclusive relativas às prisões. Resolve alguma coisa? É uma solução demagógica. É importante lembrar que há 45 mil vagas em construção com recursos do governo federal, algumas delas prontas ou quase prontas, mas os estados não têm servidores e nem orçamento para implantação e manutenção de serviços. Ora, se essa medida não fosse uma resposta demagógica, o governo federal estaria se preocupando em acelerar a entrega dessas obras e encontrar meios de os estados manterem serviços de qualidade.
Como um dos massacres ocorreu num presídio privatizado, essa questão voltou ao debate. Pode ser uma solução? Os argumentos rotineiros que justificam a terceirização ou privatização de serviços públicos – a redução de custos e com ganhos de eficiência e produtividade – não se efetivam nos sistemas prisionais: há um aumento no custo de manutenção geral dos sistemas, uma vez que os limites contratuais impostos para as unidades prisionais acabam acarretando ônus para outras unidades. Por exemplo: imaginemos uma unidade X numa determinada região de qualquer estado. Privatizada, ela terá um limite de pessoas encarceradas, uma vez que contrato prevê esta limitação tanto para fins de ganhos da empresa administradora, como para supostamente garantir o sucesso na prestação de serviços (nutricionista, por exemplo) e assistência (saúde, educação, trabalho etc.). Pois bem: atingido o limite de pessoas, mesmo que haja um grande fluxo de prisões naquela região, o Estado terá de deslocar as pessoas presas para outras localidades. Também temos perdas com relação aos serviços penais, uma vez que se torna inviável investir na formação técnica de profissionais, que, sendo terceirizados, serão substituídos a cada renovação de contrato. Por fim, os estudos sobre as prisões privatizadas no Brasil têm mostrado que o custo per capita é ainda maior que nos estabelecimentos com gestão pública (algo em torno de 2 700 reais na privada, contra 1 300 na pública, segundo alguns levantamentos).
Foto Antonio Milena