O gaúcho Eros Roberto Grau, 76 anos, foi ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) entre 2004 e 2010. Indicado ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, ele foi o quarto ministro do STF nomeado nos 13 anos de governos do PT. Recentemente, declarou ter sido “sempre ligado” ao PSDB. Depois de aposentar a toga, quando foi substituído na Corte por Luiz Fux, Grau se dedica a dar pareceres jurídicos em seu escritório de advocacia, em São Paulo. Mantém a frequência de viagens a Paris que o levou a ser chamado de “Euro Grau” nos tempos de STF e passa a maior parte do tempo em sua casa em Tiradentes (MG), a 190 quilômetros de Belo Horizonte, onde ostenta uma biblioteca com 37.000 títulos. Foi de lá que, por telefone, Grau falou a VEJA. Nesta entrevista, o jurista defende mandatos com tempo determinado para ministros do STF, critica as transmissões televisivas das sessões do Supremo e afirma: “juiz não é produtor de Justiça, é aplicador da lei”.
O modelo de escolha dos ministros do STF, com nomeação pelo presidente da República e decisão pelo Senado, é o ideal? Esse processo de escolha me parece correto, porque, rigorosamente, o que vai do Executivo para o Legislativo é uma proposta. O Legislativo pode ou não aceitar. Já houve dois casos de recusa. O que eventualmente pode receber alguma crítica é o procedimento de um ou outro caso.
Mas esse modelo não dá aos presidentes muito poder sobre o Judiciário, além da possibilidade de senadores investigados definirem um juiz que pode vir a julgá-los? A Constituição prevê a coexistência em harmonia entre os três poderes. Essa harmonia se observa nas nomeações ao STF, pois há uma proposta do Executivo a ser analisada pelo Legislativo e que resulta na aprovação de um membro do Judiciário. A circunstância de nós estarmos vivendo um momento crítico da história brasileira, em que existe uma quase tragédia, é realmente terrível, mas não é isso que deve determinar uma mudança na Constituição. É apenas trágico, se é que ser trágico é “apenas”.
O senhor é favorável à ideia de estipular mandatos aos ministros do STF? Acho que no futuro, se houver uma alteração da Constituição, seria bastante razoável. Porque permite que o tribunal possa ser renovado de tempos em tempos, para evitar determinados mandatos muito longos e outros muito curtos. Há ministros que ficaram lá anos e anos e há outros que passaram pouco tempo, poderiam ter prestado uma colaboração maior à Justiça do Brasil.
De quanto tempo seria o mandato ideal de um ministro do STF? Se eu fosse membro do Legislativo e fosse votar em uma emenda constitucional, votaria por um mandato de dez anos, seria mais do que razoável.
Como avalia a indicação de Alexandre de Moraes ao Supremo? Ele foi meu aluno na Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, onde eu, aliás, também tive como aluno um colega meu no STF, o ministro Dias Toffoli. Para ser objetivo e direto: os dois foram bons alunos e eu aprovei. Respondi a questão? (risos)
As recentes filiações de Moraes a PSDB, DEM e PMDB não o colocam em suspeição para julgar casos envolvendo políticos? Se formos seguir esse raciocínio, voltando ao passado, seriam inviabilizadas as nomeações de inúmeros ministros do Supremo que fizeram política antes de ir para lá. Foram ministros, deputados, senadores e, embora tenham sido políticos e filiados a partidos, revelaram-se grandes ministros do STF. Isso não quer dizer nada.
“Hoje as sessões do STF se transformaram em um espetáculo jornalístico e televisivo. Isso não existe no mundo, apenas no Brasil”
O senhor foi indicado pelo ex-presidente Lula ao STF e disse recentemente que sempre foi ligado ao PSDB. Lula não sabia dessa sua identificação com os tucanos? Quem indicou meu nome ao Senado foi o presidente da República. Não foi o Lula. Foi o presidente, que indicou inúmeros ministros aprovados pelo Senado e que nunca tiveram ligação com o PT, como Cezar Peluso, Joaquim Barbosa e Cármen Lúcia. Nesse ponto, o procedimento do presidente foi correto, não fez escolhas políticas, fez escolhas prudentes.
O senhor vê movimentos do governo do presidente Michel Temer tentando barrar a Operação Lava Jato? Não vejo e acho que qualquer movimento nesse sentido seria inútil, felizmente, porque história é um processo que não se detém voluntariamente. Hoje a Operação Lava Jato é algo que não se pode mais deter. A sociedade não aceitaria um procedimento desse tipo.
Como o senhor avalia a atuação do juiz Sergio Moro na Lava Jato? O procedimento dele é correto. Se eu tivesse que fazer alguma crítica, não faria nem a ele, nem ao Supremo, mas à maneira como são divulgadas algumas questões.
Quais questões? Hoje as sessões do STF se transformaram em um espetáculo jornalístico e televisivo. Isso não existe no mundo, apenas no Brasil. A chamada prudência, que deve determinar a atuação de um membro do Poder Judiciário, exige certo recato, que foi destruído na medida em que o tribunal passou a ser um espetáculo televisivo. Tenho um grande amigo que é juiz da Corte Constitucional da França e ele morreu de rir comigo, em uma ocasião, porque eu andava com ele por Paris e alguém me cumprimentou, “bom dia ministro”. Era um brasileiro. Ele morreu de rir e perguntou “como as pessoas sabem que você é ministro? Aqui ninguém sabe, ninguém me incomoda, posso andar pela rua e sou anônimo, isso é maravilhoso”. Só no Brasil existe o espetáculo judicial.
As transmissões não dão mais transparência às decisões? Então em todo o mundo não haveria transparência. Porque não há nenhum lugar, salvo engano, em que exista publicidade das sessões do tribunal. Não existe. O que caracteriza a atuação do Judiciário é a prudência. O juiz, o membro do tribunal, não pode fazer parte de um espetáculo televisivo, e é isso que acontece hoje no Brasil.
Que avaliação o senhor faz das cada vez mais frequentes manifestações de ministros do STF fora dos autos dos processos, na imprensa? Acho que não é adequado. Em nenhum lugar do mundo existe esse tipo de procedimento.
“Acho terrível quando começamos a avaliar o comportamento, as preferências, a personalidade de fulano e beltrano, e desconsideramos que ele é um juiz. O juiz não é um produtor de justiça, ele é um aplicador da lei”
Voltando à Lava Jato, qual sua opinião a respeito das prisões preventivas determinadas pelo juiz Sergio Moro? Elas são definidas nos termos da lei e, ao que me consta, os tribunais têm confirmado as prisões definidas em primeira instância na Operação Lava Jato.
Em três anos, o STF ainda não julgou nenhum réu na Operação Lava Jato. Por que a lentidão? Porque existe um número imenso de processos no STF. Isso é algo que um dia deverá ser reformado, com uma alteração na Constituição, reduzindo a competência do Supremo e ampliando a do STJ e de outros tribunais. Esse meu amigo que é juiz da Corte Constitucional da França ficou estupefato quando eu disse a ele o número de processos que eu tinha no meu gabinete. Mais de 2.000 processos. Ele me perguntou quantos casos o tribunal julga por ano. Eu disse que era coisa de 10.000 e ele respondeu: “na França, nós não julgamos mais de 100 a cada ano”. A diferença é brutal, reclama uma mudança constitucional.
Entre os ministros da Segunda Turma do STF (Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Edson Fachin e Celso de Mello), Fachin, o novo relator, é o que tem o perfil mais adequado à Lava Jato? É complicado falar sobre perfis dos ministros. O que o membro de um tribunal tem de fazer é aplicar a lei e a Constituição do modo mais prudente possível. Acho terrível quando começamos a avaliar o comportamento, as preferências, a personalidade de fulano e beltrano, e desconsideramos que ele é um juiz. O juiz não é um produtor de justiça, ele é um aplicador da lei. Quando ele sair dali, pode até dizer a si mesmo “que coisa, eu absolvi aquele sujeito. Eu, como cidadão comum, queria ver aquele sujeito preso. Mas ele tinha direitos e eu absolvi”.
Fachin classificou recentemente o foro privilegiado como “incompatível com o princípio republicano” e o ministro Luís Roberto Barroso afirmou que “o sistema é feito para não funcionar”. O senhor concorda com eles? Concordo sim. Não há razão nenhuma, nenhuma distinção entre deputado, senador, membro do Poder Executivo e o mais humilde delinquente que pratica um delito para se alimentar. Não tem sentido isso. Todos têm que ser julgados de modo igual.
O foro privilegiado deveria se restringir a quais funções? Eu, pessoalmente, deixaria só o presidente da República. Acho que deveria ser como é na França, por exemplo: durante o tempo em que o presidente da República exerce o mandato, ele não deve ser processado, porque isso pode desequilibrar a marcha do Estado. Mas quando deixar de ser presidente, ele vai responder. Isso está acontecendo com [o ex-presidente] Nicolas Sarkozy.
O senhor é favorável à prisão depois da segunda instância? Não. Suponhamos que existam 1.000 processos e que em 999 deles a segunda instância decidiu corretamente. Mas há um caso em que o sujeito era inocente e ainda tinha uma possibilidade de recurso aos tribunais superiores. Ele foi preso inadequadamente, por isso o direito de defesa tem que ser observado. Só depois do trânsito em julgado da condenação é que deve haver prisão. Essa decisão [de permitir prisões após a segunda instância] do Supremo se deve ao fato de haver inúmeros processos em que os ricos contratam advogados que inventam recursos, recursos e recursos para que os processos não terminem jamais, ao passo que os pobres sem direito a defesa acabam presos por nada.
Foto Douglas Magno/VEJA.com