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Marianna Dias

À espera de um recuo

Presidente da União Nacional dos Estudantes, a baiana Marianna Dias lidera a entidade nos principais protestos de oposição ao presidente Jair Bolsonaro após o bloqueio de verbas das universidades e institutos federais

Por Giovanna Romano

query_builder 7 jun 2019, 18h50

Terceira mulher a presidir a maior organização estudantil do Brasil, a União Nacional dos Estudantes, a baiana Marianna Dias transferiu seu curso de pedagogia da Universidade do Estado da Bahia para São Paulo, onde é bolsista de uma instituição privada, para se dedicar à liderança do movimento estudantil. Filiada ao PCdoB, ela repete a escrita de manter o partido à frente da UNE desde 1985, e agora, em seu último mês de um mandato de dois anos, lidera a entidade nos principais protestos de oposição ao presidente Jair Bolsonaro (PSL). O estopim foi o contingenciamento de 30% das despesas discricionárias das universidades federais. Embora o aperto orçamentário e a escassez de recursos para a educação não seja algo inédito nem uma exclusividade do novo governo, Marianna Dias se queixa da falta de diálogo e vê uma diferença em relação aos antecessores do capitão reformado do Exército: “Houve desrespeito”.

Leia a entrevista:

As manifestações do dia 30 de maio foram menores do que as do dia 15 de maio. Qual é a sua avaliação? Conseguimos manter a mobilização. Os atos foram essencialmente feitos e convocados por estudantes, diferentemente da convocação mais ampla que aconteceu no dia 15. Foi uma demonstração do comprometimento dos jovens com a pauta da educação. A prova da nossa força foi a reação desmedida do Ministério da Educação. O ministro Abraham Weintraub ficou completamente descontrolado, tentando impedir que os estudantes, os pais e os professores pudessem falar sobre os protestos no horário de aula.

Como manter o foco na defesa da educação com manifestações que também abrigam outras pautas contra o governo Bolsonaro e a reforma da Previdência? A pauta da educação mobiliza tantas pessoas porque ela pode ser uma solução para os outros problemas, porque ela permite construir uma sociedade melhor, reduzir a desigualdade social e dar perspectiva de um futuro melhor. A educação se torna um grande guarda-chuva que abriga as outras pautas que estão hoje em curso no nosso país, relacionadas principalmente aos direitos das pessoas. As universidades não têm só os estudantes, mas também os profissionais: professores e trabalhadores. Essas pessoas estão muito preocupadas com a sua aposentadoria.

Esta não é a primeira vez que um governo bloqueia recursos para o setor. Por que a mobilização é maior? O problema desta vez foi o desrespeito. O primeiro argumento que eles trouxeram foi o da balbúrdia. Eles anunciaram os cortes em três universidade e disseram: “Olha, nós vamos cortar porque há balbúrdia”. Isso ofendeu muito e, depois que ele [ministro da Educação Abraham Weintraub] disse que ia ser em todas as instituições, piorou mais ainda. O governo ofendeu cientistas, estudantes, pessoas que desenvolvem tecnologia no país, reitores, todo mundo que já passou pela universidade.

"A pauta da educação mobiliza tantas pessoas porque ela pode ser uma solução para os outros problemas, porque ela permite construir uma sociedade melhor"

Houve alguma tentativa de diálogo com governo? O governo não tem esse desejo de dialogar com a sociedade civil. Os próprios deputados federais falam que não são recebidos. Já fui a uma audiência pública no Congresso para poder falar com o ministro. Fomos extremamente hostilizados pelos deputados que são apoiadores do governo Bolsonaro e o ministro se recusou a nos ouvir. Ele falou que não queria ouvir a UNE e que não era filiado à entidade. Depois, se levantou e foi embora. Antes, esse diálogo era possível. Mesmo fazendo protestos, conversei até com os ministros do governo de Michel Temer (MDB).

Sem esse diálogo, como a UNE atua pela renovação do Fundeb, por exemplo? O Congresso Nacional é um espaço muito importante para isso, e a gente tem uma relação estabelecida com os deputados e com os senadores. O Fundeb vai ser aprovado. Conversamos com todos os deputados, de todos os partidos, que pensam de todas as formas, porque a educação é um polo aglutinador. Qualquer pessoa que tenha juízo acha que é importante defendê-la.

Mas a entidade virou alvo de deputados que queriam investigá-la em uma CPI -- que acabou barrada -- após receber dinheiro durante os governos de Lula e Dilma. Isso não transmite uma sensação de falta de transparência? A UNE já respondeu a uma CPI quando o senador José Serra (PSDB-SP) era seu presidente. Em condições normais, ninguém fala em CPI da UNE. Só que basta estabelecermos qualquer processo de questionamento mais expressivo que alguém fala em investigar a UNE. O problema da CPI é esse caráter de perseguição. Nossa prestação de contas é pública, basta entrar no site de transparência do governo federal e dos governos estaduais para ter acesso. Não existe falta de transparência. A gente não aceita que o processo de luta em defesa dos nossos direitos seja represado por um instrumento de retaliação e de perseguição política.

O governo já recuou de outras decisões. Acha possível que isso aconteça agora em relação ao Orçamento? Eu acredito que sim porque, apesar de eles se negarem a dialogar, a pressão popular é muito importante. Há uma série de agentes que é influenciada por este processo, por mais que o governo, na figura de Bolsonaro, se recuse a ouvir. O Congresso Nacional é um lugar muito sensível que, ao ser pressionado pelas ruas, pode pressionar o governo. E não se governa no Brasil sem o Congresso — Bolsonaro pode até achar que sim, mas não se governa.

A senhora vê alguma semelhança entre os protestos de agora e os de junho de 2013, que começaram contra o aumento das passagens em São Paulo e fermentou um ambiente que levou ao impeachment de Dilma Rousseff? São motivações diferentes. Em 2013, os protestos não tinham organização e isso abriu margem para todo mundo que queria levantar seu cartaz e reivindicar de forma individual, incluindo o “fora Dilma” e o “não vai ter Copa”. Era um monte de coisa que não era possível entender onde iria parar e a gente viu onde parou. A diferença agora é a coletividade. Neste processo de 2019, as pessoas acham que é importante proteger a universidade para o Brasil. Quem está em um curso hoje não vai ser colocado para fora nem será impedido de ter o seu diploma, mas as pessoas entendem que esses cortes comprometem a universidade a médio e longo prazo.

A UNE notabilizou-se pelo movimento dos “caras pintadas”, que derrubou o ex-presidente Fernando Collor de Mello. A senhora é a favor que Bolsonaro cumpra seu mandato até o fim? Bolsonaro foi eleito pelas pessoas. É muito cedo para entrarmos nesse debate de impeachment. É óbvio que se o povo não gosta do governo tem o poder e o direito de pedir que troquem, que haja uma nova eleição. Mas ainda é cedo. A nossa luta é para pressionar o governo.

A presença de partidos políticos e sindicatos nos protestos não pode afastar pessoas que se solidarizam apenas com a pauta da educação? No dia 15 de maio, não existiu um incômodo das pessoas que estavam ali com as organizações, com os partidos e com os sindicatos. Apesar de ter uma coisa ou outra, não era o sentimento da passeata. Não há um questionamento sobre as entidades tradicionais. Ser tradicional não é ruim, o que é ruim é ser conservador. A UNE de hoje é a UNE de 83 anos atrás? Óbvio que não. Mas é uma entidade que tem tradição.

" As pessoas entendem que esses cortes comprometem a universidade a médio e longo prazo"

Os contingenciamentos esvaziam a defesa da UNE pelo ensino superior gratuito e contra o projeto de Escola sem Partido? Não, porque a gente sempre questiona qual universidade queremos, não só o investimento. Queremos uma universidade com autonomia, em que caibam todos os tipos de pensamento. Temos diversas brigas como o modelo da escola, a gratuidade do ensino, o investimento público. Tudo no Brasil que é público é sucateado, para dizer que o Estado não consegue mais gerir. Depois ele é desmoralizado, como agora, em que eles estão tentando dizer que a universidade é uma balbúrdia. E, depois, apresentam a privatização como solução — foi assim com a telefonia e o setor elétrico. Pode ser que tudo o que esteja acontecendo seja apenas um caminho para privatizar uma instituição democrática importante como é a universidade pública.

O governo federal já anunciou que quer criar a carteira de identificação de estudantes, que hoje é emitida pela UNE. É possível sobreviver sem esta fonte de receita? A UNE não é diferente das outras associações representativas que existem no Brasil, como a OAB, e por isso defendemos a posição de que temos que ser a emissora do documento estudantil. É curioso que logo após o dia 15 o governo venha a agitar isso de uma forma mais prioritária. A gente pode até afirmar que isso é uma forma de nos atingir porque o documento é a principal fonte de financiamento de estruturação da nossa rede estudantil. A gente vê com preocupação e uma falta de foco: é mais importante para o governo Bolsonaro emitir carteira de estudante nesse momento que o Brasil tá vivendo? É sério isso? Que o foco do governo é dedicar os seus esforços intelectuais e financeiros para emitir carteira de estudante? Não dá, né? A UNE sobreviveu à ditadura militar — era crime você se organizar naquela época. Se a gente sobreviveu a isso, a gente sobrevive às demais adversidades que possam aparecer.

Estima-se no governo que a UNE arrecada cerca de 240 milhões de reais com a emissão das carteirinhas. De quanto é a arrecadação e como esse dinheiro é gasto? A UNE não divulga seu orçamento porque não temos essa obrigação. O governo tem que provar essa informação. O dinheiro é gasto com eventos, atividades e deslocamento dos nossos diretores.

Há uma ascensão da direita e do conservadorismo entre os estudantes. Por que eles não têm espaço no movimento estudantil? É ascensão média, viu? Até agora nada mudou no cenário das disputas do movimento estudantil nas universidades. Tem pessoas que apoiam o governo Bolsonaro no ambiente universitário porque não há unanimidade [a favor da UNE], mas não existe organização estudantil contra a UNE dentro das universidades. Surgiram algumas iniciativas, mas tudo isso foi criado nas redes sociais, só que a vida não se resume às redes sociais. Eles são contraditórios com a realidade da universidade e falam coisas absurdas. Se você for disputar o Centro Acadêmico e disser que é a favor de mensalidade, a favor do fim do Fies, contra o Prouni, você acha que os estudantes vão votar? A universidade é um lugar para desconstruir essas coisas ruins que a gente tem da herança cultural, seja dos costumes, seja da construção social.

E por que existe a predominância do PCdoB na presidência da UNE desde 1985? Porque o PCdoB se organiza nas universidades com a União da Juventude Socialista, organização da qual eu faço parte. Nós acreditamos que disputar esse setor ajuda a avançar sobre os problemas que existem na nossa sociedade. Desde Renildo Calheiros, a gente conseguiu vencer o Congresso da UNE e eleger os presidentes, mas é importante ressaltar que a UNE não é uma entidade dirigida só pelo PCdoB. Qualquer estudante de qualquer pensamento político, educacional, filosófico, pode montar uma chapa e disputar a eleição da diretoria e essa diretoria é composta de forma proporcional. Existem vários diretores que são ligados a vários partidos, ao PSDB, a várias correntes. Por exemplo, o DCE da UnB hoje é dirigido por um grupo chamado Aliança, que é formado por jovens liberais. Eles não são ligados a nenhum partido, mas participam do movimento estudantil. Eu não sou da UNE para representar o PCdoB.

Foto: Heitor Feitosa/Veja