A fala mansa de Marcelo Caetano, economista que assumiu em maio a Secretaria da Previdência, não deixa entrever o tom usualmente catastrófico das análises feitas sobre o regime previdenciário brasileiro. Isso não significa que suas manifestações sobre o tema sejam menos enfáticas. Funcionário de carreira do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Caetano é considerado um dos maiores especialistas em aposentadoria do país. Com esse cartão de visitas, afirma que o país não pode mais se dar ao luxo de adiar a reforma da Previdência, que uma reforma tímida agora pode exigir outra em apenas três anos e que as mudanças que ele pretende sugerir vão respeitar direitos adquiridos, o que não significa que as novas regras valerão apenas para as gerações futuras. “O país não tem condições de esperar”, diz. Caetano recebeu VEJA em seu gabinete, em Brasília.
Assim que assumiu, em maio, o governo Temer apresentou a reforma da Previdência como uma de suas prioridades máximas. Chegou-se a crer que seria possível ter uma proposta ainda no primeiro semestre. Já se passaram cinco meses. Com o que o governo tem elaborado no momento, já seria possível levar o projeto ao Congresso? Nós apresentamos um esboço (do projeto) ao presidente no dia 6 de outubro. Já há uma ideia do que levar adiante, mas ainda há etapas a serem obedecidas. Temos conversas acertadas com sindicatos, entidades patronais, parlamentares e também com governadores para se ter um desenho mais preciso da reforma. Nós trabalhamos nos aspectos técnicos, mas isso não é tudo. É preciso avaliar a viabilidade política dessa parte técnica.
O fim da aposentadoria por tempo de contribuição e a substituição pelo modelo que prevê idade mínima é um dos pontos que mais têm recebido atenção nos debates sobre a reforma. Essa é mesmo uma das propostas? Para desenhar a reforma, estamos fazendo cálculos sobre o impacto de cada tópico sobre as contas públicas e também comparando o regime previdenciário brasileiro com os de outros países. Fazemos isso para saber em que pontos estamos mais distantes ou mais próximos das experiências internacionais. No caso da aposentadoria por tempo de contribuição, somos exceção. Nas Américas, apenas Brasil e Equador adotam esse modelo – e, ainda assim, o Equador exige ao menos 40 anos de contribuição; aqui, temos 35 anos para os homens e 30 para as mulheres. Sim, é muito provável que essa proposta seja incluída, mas qual será a idade vai depender das discussões que ainda estão por vir.
Nesse tempo de discussões, o senhor recebeu também representantes de grupos financeiros. Há quem tema que a reforma signifique uma migração para um modelo como o do Chile, que fez uma reforma muito elogiada na década de 80, com privatização total da Previdência, mas que precisou ser corrigida na década passada porque milhares de pessoas acabaram ficando sem aposentadoria. Algum modelo internacional de reforma tem inspirado o trabalho de vocês? Nós estamos mantendo diálogo com todas as partes interessadas no tema. Falamos com grupos financeiros, mas também com sindicatos, militares, trabalhadores rurais e com o setor empresarial não-financeiro. Todos eles estão mais ouvindo que fazendo sugestões. Uma ou outra vez esse discurso (sobre privatização) aparece, mas eu rechaço na hora. Queremos, sim, estimular a previdência complementar, aquela mantida por grupos privados, mas para que ela seja de fato complementar, e não substituta da Previdência Social. Estamos discutindo a reforma da Previdência não para acabar com ela, mas para que ela possa continuar pagando seus beneficiários.
Por que rechaçar? A previdência tem basicamente dois modelos: o de distribuição (o mesmo adotado pelo Brasil, em que o dinheiro de quem trabalha é reunido para pagar o benefício de quem já se aposentou) e o de capitalização (no qual o trabalhador contribui apenas para a sua própria aposentadoria). Uma migração brusca de um modelo para outro teria um custo fiscal elevadíssimo, já que todas as contribuições que iriam para o pagamento dos benefícios passariam a integrar as contas individuais. Como o total de arrecadações previdenciárias do regime geral (o dos trabalhadores do setor privado) corresponde hoje a 6% do PIB, isso significa que, de uma hora para outra, abriria-se mão de 6% do PIB em arrecadação. O Brasil está em uma situação fiscal que não nos permite abrir mão de receita. Mesmo que alguém ache que a mudança de regime é o caminho – e não é a nossa visão –, a transição torna o custo muito elevado. Isso sem contar o altíssimo custo social de pessoas que ficariam imediatamente sem aposentadoria por não terem conseguido fazer aportes ao longo da vida.
Em 1999, houve outra reforma da Previdência no Brasil. Assim como hoje, ela era tratada como solução para os problemas do regime de aposentadorias brasileiro, mas acabou ficando pelo caminho. Como podemos acreditar que dessa vez teremos, de fato, uma reforma que não exija a votação de outra daqui a alguns anos? Existe uma diferença importante entre o estágio demográfico em que estávamos no fim dos anos 90 e o que vivemos hoje em dia. A necessidade da reforma é mais urgente agora. Além de as pessoas estarem vivendo mais, a taxa de fecundidade caiu no Brasil. As mulheres estão tendo menos filhos. Isso agrava o quadro da chamada relação de dependência, que é o número de idosos para cada 100 pessoas em idade ativa. Hoje, esse número é de onze, ou o equivalente a um idoso para cada dez pessoas trabalhando. Se nada for feito, em 2060 , haverá 44 aposentados para cada 100 pessoas no mercado de trabalho, ou dois para cada cinco. A não-reforma não é uma opção.
"Não estamos propondo acabar com o déficit da Previdência, mas estabilizá-lo. É muito difícil que ele sequer diminua com o tempo"
E por que não? As aposentadorias continuam sendo pagas. Se não fizermos nada, o total das despesas passará de 8% do PIB para 17% ou 18% do PIB em alguns anos – e isso considerando apenas o INSS, e não o regime dos servidores públicos. Isso significa que o país vai ter que fazer ajustes em outro lugar ou aumentar a carga tributária em dez pontos porcentuais em relação ao PIB. Se não aprovarmos uma reforma mais ampla agora, corre-se o risco de termos que retomar as discussões sobre uma nova reforma já em 2019.
Se a reforma sair como o governo espera, é possível crer que o déficit da Previdência será resolvido? Na verdade, não estamos propondo acabar com o déficit, mas estabilizá-lo. É muito difícil que ele sequer diminua com o tempo. Não se pode também acreditar que basta a economia crescer para que o problema da Previdência deixe de existir. Com a economia acelerada, o governo arrecada mais, e assim há mais recursos para bancar as aposentadorias. Mas o envelhecimento da população também vai continuar – e a economia não vai crescer 5% todo ano.
Alguns economistas dizem que, na verdade, o rombo da Previdência não existe, já que a Constituição de 1988 exige que a União contribua para a composição da seguridade social. Em outras palavras, o déficit seria a parte que cabe ao Estado para preencher o bolo das aposentadorias. Esse argumento faz algum sentido? Primeiro, os números da Previdência e da seguridade social não são a mesma coisa. A Previdência fechou 2015 com déficit de 85,8 bilhões de reais. A seguridade social – que inclui não apenas aposentadorias, mas também assistência social e saúde –, por sua vez, teve um déficit no ano passado de 167 bilhões. Feita essa distinção, vê-se que os resultados são diferentes – mas ambos atestam que há um rombo. As pessoas que falam que a seguridade social não é deficitária argumentam que tudo estaria no azul se o Estado abrisse mão, por exemplo, de renúncias fiscais. Você pode até discutir se o país de fato precisa abrir mão de receita para ajudar esse ou aquele setor, mas, no fim das contas, o que importa é que o dinheiro não entrou – e que é preciso tirá-lo de outras fontes para pagar as aposentadorias. Se a arrecadação da Previdência é menor que as despesas que ela tem, o dinheiro tem que vir de algum lugar. Se sair da própria seguridade social, significa que assistência social e saúde vão ter menos recursos para que as aposentadorias possam ser pagar. E mais: se de fato não temos um problema porque, afinal, “o dinheiro vai vir de algum lugar”, como dizem essas pessoas, não precisaríamos discutir reforma alguma.
A reforma da Previdência é impopular. Os mais pobres acham que não foram eles que colocaram a Previdência nessa situação, e atribuem os rombos às continuadas e históricas roubalheiras no INSS. Para convencer a sociedade, a reforma não deveria vir acompanhada de um grande cerco às fraudes no INSS? Esse trabalho já existe, e não é de hoje. Ele começou há quinze anos. A média atual é de uma operação de combate a fraudes por semana. Só em 2016, foram feitas, em parceria com a Polícia Federal, 42 operações para identificar as quadrilhas. Fraudes foram detectadas, pessoas foram presas. Essas operações fizeram com que a Previdência economizasse 372 milhões de reais em benefícios indevidos que seriam pagos no futuro. Parece pouco dinheiro em relação ao total das despesas da Previdência porque, de fato, o resultado é marginal. Afinal, a maioria das pessoas conseguiu sua pensão de maneira lícita. Não dá para pensar que a maioria dos beneficiários é formada por fraudadores. Mas o combate tem sido feito, sim.
Como obter apoio popular quando tantas autoridades, a começar pelo presidente da República, aposentaram-se na faixa dos 50 anos ou acumulam mais de uma aposentadoria? Um dos nortes da reforma é a criação de regras mais iguais para todos, a chamada convergência. O apoio popular virá, também, ao reconhecermos que existem muitas disparidades – e que a reforma é uma maneira de consertar isso. Quando se fala em regras mais uniformes, não se trata apenas de aposentadorias precoces, como a do presidente da República: é a que diminui, por exemplo, as disparidades das aposentadorias de servidores públicos e trabalhadores do setor privado. Não se faz essa convergência do dia para a noite.
Mas isso não esbarra em outra queixa frequente, a de que a reforma da Previdência vai mexer em direitos adquiridos? É possível fazer uma reforma da Previdência que valha apenas para as gerações futuras, que ainda não entraram no mercado de trabalho? Sim, é possível. Faríamos isso deixando de lado as regras de transição e criaríamos dois grupos: o das pessoas que já estão no mercado de trabalho e o das que ainda não estão. Ocorre que, se fizermos isso, só vamos começar a sentir os impactos da reforma daqui a 30 ou 35 anos. Ao longo de três, quatro décadas, a curva de despesas não pararia de subir. Sim, conceitualmente, podemos fazer uma reforma que valha apenas para quem vai trabalhar a partir da promulgação das novas regras, mas, na prática, isso é inviável. As despesas só crescem. O país não tem condições de esperar.
Foto por Ruy Baron/Agência O Globo