Se o PSDB hesitou para tomar uma posição, o jurista e agora ex-tucano Miguel Reale Júnior agiu rápido. Assim que soube da decisão do partido de se manter fiel ao presidente Michel Temer (PMDB), na segunda-feira, enviou uma carta ao diretório paulista pedindo a desfiliação da sigla da qual foi um dos pioneiros. “Eu não podia ficar por um sentimento de coerência. Preferiram ficar com Temer a ficar com o seu próprio eleitor”, disse em entrevista a VEJA.
Para ele, o partido cometeu um grande erro ao permanecer do lado de um presidente “frágil”, mais preocupado em se livrar da Justiça do que em emplacar medidas importantes para salvar o país da crise econômica. E quando perceber isso, avalia, será tarde demais. “Falta visão de história e de futuro ao partido”. Assim como boa parte da cúpula da legenda, Reale defende com unhas e dentes a implementação das reformas trabalhista e previdenciária. Mas discorda do argumento do tucanato de que elas dependem de Temer para passarem no Congresso. “Pelo contrário, seria melhor sem ele”.
Desde que a delação da JBS caiu como uma bomba em Brasília, a cúpula do PSDB se reuniu diversas vezes para decidir se desembarcava ou não do governo. A palavra de ordem sempre foi esperar. Esperar a perícia da Polícia Federal no áudio da conversa entre o empresário Joesley Batista e Temer, esperar o julgamento da chapa Dilma-Temer no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), esperar “fatos novos”, que continuaram a aparecer (vide a prisão de Rodrigo Rocha Loures, ex-assessor de Temer, a reforma na casa de Maristela Temer paga por um assessor presidencial, a carona do presidente e sua família em um jatinho da JBS), mas que parecem não ser suficientes. “Não podemos esperar os fatos decidirem por nós”.
Reale foi o primeiro — e, por enquanto, o único — dentre os grandes quadros da sigla a optar por sair do partido. Não acredita que haverá uma debandada, mas diz que o descontentamento entre filiados continua forte. Tem 73 anos — 27 dos quais filiado ao PSDB —, mas se identifica com os chamados “cabeças-pretas”, a ala mais jovem do partido contrária a Temer e desgostosa com a cúpula tucana, representada hoje por José Serra, Aloysio Nunes e Geraldo Alckmin.
Apesar de hoje ser mais lembrado por ter escrito o pedido que levou ao impeachment de Dilma Rousseff (PT), em 2016, o jurista já chegou a exercer cargos de relevância no partido. Foi ex-ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso, secretário de Segurança Pública na gestão de Franco Montoro no governo paulista e vice-presidente da sigla em São Paulo. Confira a entrevista.
Por que o senhor decidiu abandonar o partido que ajudou a criar?
O PSDB foi constituído em 1988 como uma reação ao desvio ético do PMDB. O movimento foi liderado por Franco Montoro, Mário Covas, Fernando Henrique Cardoso e Tasso Jereissati contra a linha dominada por Orestes Quércia e José Sarney. Todos nós erámos do PMDB. Só entrei no PSDB em 1990 porque eu ainda era muito ligado a Ulysses Guimarães [líder do PMDB]. O PSDB é como uma costela que saiu do PMDB, ganhou corpo, autonomia, independência, assumiu a Presidência da República e agora se minimiza voltando para o corpo doente.
O PSDB trai a sua história ao ficar ao lado de um governo com tantas denúncias graves de corrupção. Denúncias estas que pioram cada vez que se tenta explicá-las. O PSDB se peemedebilizou, virou o PMDB do PMDB.
O que acha do discurso do PSDB de que é preciso ficar com Temer para apoiar as reformas?
Dá para fazer isso sem estar no governo. O PSDB não tem nenhuma pasta ligada à economia, que, mesmo com a crise, se mantem hígida. O apoio às reformas pode se dar no Congresso. Não há a mínima necessidade de ter ministérios no governo. A economia não mudou uma palha com a crise. Pelo contrário, se o Temer sair, e entrar outro no lugar em eleições indiretas, alguém que seja comprometido com a manutenção da equipe econômica, a situação só tende a melhorar. Porque não teremos um presidente frágil, que se preocupa em comprar os deputados para rejeitarem a denúncia da Procuradoria-Geral da República, que não precisa liberar emenda a parlamentar ou financiamento do BNDES a governadores, que não fica tentando descobrir o que o Coronel Lima [João Baptista Lima Filho, assessor de Temer] ou o [ex-deputado federal] Rodrigo Loures vai dizer. Temer divide preocupações criminais com as preocupações do país.
Por que, com exceção dos “cabeças-pretas”, nenhuma grande liderança do PSDB apareceu para defender a saída do governo?
O partido não tem coragem porque tem tido essa característica, de ficar em cima do muro, há muito tempo. Aconteceu isso no mensalão. Os dirigentes não decidiram ir para cima do PT. Acharam melhor deixá-lo sangrando e, no fim, acabaram perdendo as eleições de 2006. O pior discurso é aquele do meio ético: ‘Vamos acabar com a corrupção, pero no mucho’. É aquele do ‘nem sim nem não’, ‘vamos ficar, porque é a nossa responsabilidade’. Mas e a responsabilidade perante a si mesmo? Falta visão de história e de futuro ao PSDB. Eu não podia ficar por um sentimento pessoal de coerência.
Quais seriam essas incoerências?
Como o partido explica essa esquizofrenia de decidir ficar com o governo e liberar a bancada para votar como quiser na denúncia que será submetida à Câmara dos Deputados. De recorrer ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) para cassar o presidente e continuar a apoiá-lo. Como podem continuar no governo com essas acusações, fazer de conta que não aconteceu nada. ‘Precisamos esperar para ver?’ Os diálogos do Loures com o [executivo da JBS Ricardo] Saud já são bastante esclarecedores. Não precisa do áudio. O problema da mala é gravíssimo. E ainda todo o conjunto da obra. A recepção do Joesley no Palácio do Jaburu. Ouvir do próprio que ele tem um procurador infiltrado. Pergunto: o que se esperaria do presidente da França, por exemplo? Chama o capitão da guarda e manda prender na hora.
“O PSDB é um partido de classe média. E esse pessoal tem o seu foco na luta contra a corrupção. O partido não percebeu isso? Preferiu ficar com o Temer a ficar com os seus próprios eleitores”
Sabemos que o discurso oficial é o apoio às reformas. Mas o que, de fato, segura o PSDB ao PMDB?
Primeiro, esse vício de ficar em cima do muro. Segundo, o receio de represálias contra o Aécio [Neves, presidente licenciado do partido, também investigado na esteira das delações da JBS]. E terceiro, uma cegueira eleitoral. Basta ver os comentários no Facebook. O PSDB está descontentando o seu eleitorado. O PSDB é um partido de classe média. E esse pessoal tem o seu foco na luta contra a corrupção. O partido não percebeu isso? Preferiu ficar com o Temer a ficar com os seus próprios eleitores. Preferiu dar um pretenso respaldo às medidas econômicas ao invés de dar o braço para a sociedade que o apoia. Ele não só trai a sua história, como toda a sua base social.
E a eleição de 2018? O PSDB não tem interesse em fazer coligações com o PMDB?
A única coisa que o PMDB pode oferecer com essa crise toda que atinge todos os seus líderes é tempo de TV.
E tempo de TV não é importantíssimo para uma eleição presidencial?
É. Mas não precisa trair as suas origens para isso.
Sobre o Aécio, não seria uma incoerência desembarcar do governo e mantê-lo no partido, sendo que ele foi pego na mesma investigação que o Temer?
Seria uma grande incoerência ele não sair. Ele tem que ser destituído da presidência. Rápido. Esse é mais um motivo pelo qual eu decidi sair. Ele tem cinco ou seis processos no STF com fatos gravíssimos.
Além do senhor, quem mais do PSDB deve sair por causa dessa decisão?
Por enquanto, não sei de ninguém. O que há é um forte descontentamento por parte de algumas lideranças, como o Tasso e o próprio FHC, mas ninguém que queira sair. Isso depende muito da conveniência política de cada um.
FHC disse a VEJA nesta semana que o limite da tolerância com o governo já estourou. O que acha dessa mudança de posição?
O Fernando Henrique e o PSDB perderam o timing. Ele deveria ter dito isso antes da reunião [ que decidiu pela permanência do partido no governo]. Não podemos esperar os fatos decidirem por nós. A partir de agora, não será mais uma decisão própria e sim uma decisão dos fatos. Será uma decisão em consequência dos fatos. Agora já se perdeu todo o efeito positivo do desembarque.
O sr. foi o antecessor de Temer na Secretaria da Segurança Pública de São Paulo. O sr. o conhece? Ficou surpreso com as denúncias?
Conheço-o muito bem. Aliás, fui eu que o indiquei para a secretaria para o Franco [Montoro]. O governador disse que ele só aceitava minha renúncia se indicasse alguém ligado ao direito. Eu me lembrei do Temer, que era procurador-geral do Estado e professor na USP. Liguei para ele e ele concordou. Depois, quando migrei para o PSDB, perguntei se ele queria ir também. Ele disse que não, porque tinha muito cacique no partido. Ele estava certo. E ficou no PMDB, onde ele virou o cacique. Agora, é lógico que me surpreendeu. Sabendo que ele era professor de direito constitucional. Mas não era uma possibilidade tão remota, sabendo que ele continuou na linha quercista [ligada ao ex-governador Orestes Quercia, do PMDB].
Como autor do impeachment de Dilma, o senhor foi bastante crítico à corrupção dos governos petistas. E a do PMDB?
É diferente. A corrupção peemedebista é privatista, ela forma um grupo que rouba para si. Já o lulopetismo aparelha todo o Estado e forma uma corrupção sistêmica. O PMDB é mais egoísta.
Na época do impeachment, o sr. chegou a dizer que o Brasil estava prestes, não a só mudar de governo, mas de mentalidade. Acha que isso aconteceu?
Sim, com certeza. Estava falando em relação ao surgimento de um novo ator político – o povo mobilizado. O que está acontecendo no Brasil é um efeito semelhante ao que aconteceu com Emmanuel Macron [presidente da França]. Lá, quem ganhou a eleição não foi um partido, mas um movimento.
O sr. sempre foi ligado aos movimentos do impeachment. Por que agora, com as delações da JBS, ninguém saiu à rua. Esse também não é um dos motivos que manteve o PSDB no governo?
Não precisamos estar sempre na rua. A movimentação nas redes sociais é imensa. Por exemplo, uma hashtag publicada pelo Vem pra Rua levou o Rodrigo Maia (presidente da Câmara) a recuar na votação da anistia ao caixa dois. Isso virou um fenômeno.
“O PSDB foi constituído em 1988 como uma reação ao desvio ético do PMDB. É como uma costela que saiu do PMDB, ganhou corpo, autonomia, independência, assumiu a Presidência da República e agora se minimiza voltando para o corpo doente”
Mas os políticos se comovem muito mais com os atos de rua...
Pode ter certeza de que, na hora em que a denúncia contra Temer entrar para votação na Câmara, a Avenida Paulista enche de novo. E não vai ser esquerda e direita. Vai ser todo mundo — de cima, de baixo, esquerda, direita. Todos.
Como um respeitado jurista e professor de direito, o que o senhor achou do julgamento da chapa no TSE?
Uma vergonha. Como é que um tribunal autoriza a produção de provas, essas provas são realizadas com todas as garantias da ampla defesa, com o respeito aos prazos e à participação dos advogados. E esse mesmo tribunal depois diz que essas provas não valem. É um tribunal que age contra si próprio.
O que achou da posição do presidente do TSE, Gilmar Mendes, pela absolvição?
Me surpreendeu, fiquei assustado. É um grande magistrado, com uma formação jurídica extensa, por isso, me espantou ele ter dado esse voto. É um voto que envergonha. Espanta porque vem de um jurista de qualidade. Ele disse que não era um processo de reintegração de posse, mas de cassação da chapa de um presidente da República. Ele demorou três anos para concluir isso?
Conhecendo o Temer e sabendo que Temer também é um renomado jurista, por que acha que ele reluta em renunciar?
É uma questão um pouco messiânica. Ele acredita que vai sair com a economia em ordem e vai se consagrar por isso. Que a história o redimirá. O Sarney também pensava isso. E olha como saiu. Imagina, ele até estava consertando a economia até fez essas estripulias. É um absurdo.
Foto: Ricardo Matsukawa/VEJA.COM