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Marco Antonio Zago

"A USP mudou. E isso causa desconforto"

Reitor diz que alterações na gestão financeira, no vestibular e na avaliação dos docentes estão transformando a cultura da maior universidade pública do país. Mas é preciso mudar ainda mais

Por Rita Loiola e Teo Cury

query_builder 23 mar 2017, 15h00

Quando o médico Marco Antonio Zago assumiu a reitoria da Universidade de São Paulo, em 2014, a maior instituição de ensino superior do país amargava uma crise sem precedentes. Os gastos com folha de pagamento ultrapassavam os recursos recebidos, parte do ano era perdida com greves e a instituição havia caído dezenas de posições em renomados rankings internacionais. Quase quatro anos depois, a USP conseguiu aprovar um pacote para reequilibrar suas contas, reformou a avaliação dos docentes e transformou o vestibular, que hoje oferece quase metade das suas vagas para alunos de escolas públicas – mas ainda não se livrou das manifestações e paralisações. No fim de 2016, uma greve de funcionários se estendeu por quase 70 dias e, no início de março, a votação do conjunto de medidas de reestruturação motivou um duro confronto de estudantes e funcionários com a tropa de choque da Polícia Militar. Contudo, segundo o reitor, em pouco tempo os distúrbios serão superados. Otimista, acredita que as novas medidas devem promover uma transformação na cultura da universidade que, por meio de uma gestão mais democrática, voltará a ser um centro de excelência para o ensino e a pesquisa do país. Ainda sem as contas saneadas (responsabilidade que vai transferir ao próximo reitor), Zago acredita que o maior desafio ao futuro da USP não são as finanças, mas descobrir uma maneira de atrair os melhores cientistas. Nesta entrevista, concedida do gabinete na Cidade Universitária, o reitor explica como a pior crise já enfrentada pela instituição está dando outra “cara” para a USP.

A aprovação das medidas de reequilíbrio financeiro da USP, no início de março, suscitou uma manifestação de estudantes e funcionários encerrada pela tropa de choque da Polícia Militar. Por que a votação causou conflito?Essa é a etapa final de um conjunto de medidas para conter os gastos da universidade e tornar a gestão financeira mais transparente. Isso é inédito na universidade – e, como toda mudança, causa desconforto.

Mas as finanças da Universidade de São Paulo não estavam disponíveis para a população?As três universidades estaduais paulistas (USP, Unesp e Unicamp) são as únicas no Brasil que têm, de fato, autonomia financeira. Recebemos uma parcela fixa da arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e temos a responsabilidade sobre a gestão desses recursos – na USP, a decisão de como fazer isso cabia quase totalmente ao reitor. Sabíamos quais eram os gastos, mas não tínhamos detalhes de como eram feitos. Como estávamos em um período de crescimento econômico, não havia a preocupação com o dinheiro e também não era hábito o acompanhamento sistemático. Contudo, de repente, houve um salto imenso dos recursos destinados ao pagamento de funcionários. Em 2011, dispensávamos 77% dos recursos com pessoal e, em 2014, quando assumi, o número era 105%. Eu fazia parte da comissão que aprovava esses salários, mas, como não era um hábito verificar os pormenores, a situação ficou insustentável.

Quais as razões para a gastança?Quando fomos verificar os motivos, percebemos que a universidade havia expandido muito a contratação de servidores técnicos-administrativos e eles estavam ganhando muito bem. Segundo nossos cálculos, 80% dos servidores da USP tiveram 80% de aumento em quatro anos. Que profissional não quer ter esse reajuste? Diante desse quadro, precisamos de medidas de contenção. Suspendemos todas as novas contratações, fizemos dois planos de demissão voluntária, em que quase três mil funcionários foram dispensados, mas o número ainda é inflado. A aprovação do pacote de Parâmetros de Sustentabilidade Econômica-Financeira, que motivou a manifestação, foi uma espécie de ‘Lei de Responsabilidade Fiscal’ para a USP, ou seja, algumas regras muito bem definidas que determinam como os recursos devem ser despendidos. A adoção dessas medidas é algo totalmente inovador na universidade e deve causar mudanças profundas na cultura da USP.

Uma dessas regras é a de não gastar mais que 80% dos recursos estaduais com folha de pagamento, que começa a valer em 2022. A previsão de gastos para 2017 é de 100%. Como será possível chegar a esse número em tão pouco tempo?Estamos definindo os parâmetros, não os meios de atingi-los. Como chegar até eles depende da eleição para o próximo reitor, no fim deste ano, e das propostas apresentadas. A porcentagem de 80% é a média histórica de gastos da USP com pessoal. O que não pode ser feito é dissipar o patrimônio erradamente, como aconteceu no passado. Alcançar esse número não me preocupa, pois acredito firmemente que a arrecadação estadual vai aumentar e as contas vão fechar. O que me tira o sono é que, no futuro, a USP pode deixar de atrair as mentes mais brilhantes e vai ficar com professores e pesquisadores que não conseguiram boas vagas em outras universidades.

“Precisamos ousar mais para que o dinheiro investido na USP não se perca com pesquisadores ou funcionários que não querem sair da zona de conforto.”

Por quê?Quando olhamos com cuidado a expansão de vagas e salários nos últimos anos, percebemos que ela não foi para o que deveria ser o objetivo da universidade: ensino e pesquisa. Por causa dos gastos elevados, os docentes não tiveram reajuste nos últimos quatro anos e estamos com deficiência no número de professores. Temos 6 mil professores e 14 mil servidores não docentes. Nas melhores universidades do mundo essa proporção é a metade ou ainda menos. Ou seja, o estado está investindo em uma atividade que não é aquela para a qual a universidade foi criada. Se ficarmos presos a essa lógica, que é a dos sindicatos, vamos deixar de incentivar os professores – é o que está acontecendo.

Há alguma forma de mudar esse caminho, já que funcionários públicos não podem ser demitidos e há limite para a contratação de docentes?Para tentar atrair jovens professores que, junto com os estudantes, são a força criativa que traz inovação e provoca mudanças no ensino superior, entramos em dois programas de pesquisa, um do governo federal e outro do estado, que oferecem bolsas para jovens pesquisadores. Os departamentos que forem selecionados para esses programas ganharão novas vagas para docentes. Um desses editais, que está em andamento, teve 250 inscritos para quinze bolsas. Ou seja, a USP ainda atrai muito interesse – até o fim do ano devemos contratar 150 novos professores. Mas precisamos ousar mais para que o dinheiro investido na USP não se perca com pesquisadores ou funcionários que não querem sair da zona de conforto.

Como atrair bons pesquisadores, já que os salários da USP são limitados por um teto constitucional?Essa dificuldade está começando a ser sentida e considero o entrave mais perigoso ao futuro da USP. A universidade recebe um grande aporte do estado e há um grande risco de que esse enorme investimento caia no vazio devido a esse teto (o salário é limitado pelo vencimento do governador do Estado de São Paulo, hoje R$ 21.631,05). No exterior, as universidades contratam pesquisadores e oferecem o salário que acreditam que merecem. Mas, aqui, o pagamento tem um limite e essa se tornou uma questão aguda. Será que os jovens pesquisadores e professores vão querer vir para cá sabendo que, no fim da carreira, vão ganhar 13 mil reais a menos que em uma universidade federal? Menos que em uma particular? A simples comparação é um desestímulo para os jovens e o principal efeito em longo prazo é que vamos perder essa corrida. Tomamos as decisões corretas em relação à gestão financeira, mas se não abordarmos esse problema do salário, os próximos anos da USP podem estar gravemente ameaçados.

Uma das queixas mais recorrentes de membros de instituições de pesquisa, como a USP, é a avaliação que privilegia não a qualidade do trabalho, mas a produtividade. Como é feita a avaliação docente da universidade?A USP tem um sistema antigo, composto por professores titulares (aqueles com dedicação exclusiva), que aprova os docentes e os avalia. O processo sempre funcionou com muito rigor, pois a comissão é formada por pesquisadores reconhecidos, e controlado com rigidez pelo reitor. Mas, ao longo do tempo, foram surgindo distorções e a métrica das ciências naturais começou a valer para todas as áreas – ou seja, a publicação de artigos e produção de resultados passou a ser o mais valorizado. Contudo, essa régua não serve para os cursos das ciências humanas, por exemplo. Passamos três anos envolvidos em longas discussões para mudar esses padrões e chegamos a uma solução bastante inteligente, que deve começar a funcionar em breve. A avaliação docente passou a ser vinculada ao departamento. A partir de agora, cada unidade define seu projeto acadêmico e os docentes criam suas metas. Assim, o processo de avaliação leva em conta o perfil de cada funcionário e as ênfases definidas pelo departamento.

“A USP é um lugar fantástico, mas grande parte da crise se deu porque as decisões importantes estavam concentradas nas mãos de uma só pessoa, o reitor”

Os resultados da avaliação serão convertidos em progressão na carreira, como no sistema privado?Sim, a progressão na carreira, que antes era feita por meio de concursos periódicos, vai acompanhar os resultados das avaliações. Essa é uma novidade absoluta não só na USP, mas nas universidades públicas brasileiras. A ideia é que cada professor desenvolva sua melhor competência e não caia em um sistema arcaico, que leva à estagnação. Essa é mais uma das transformações que está mudando a cara da USP. Além disso, acredito que projetos acadêmicos públicos bem definidos podem ser um atrativo para bons cientistas.

O ingresso nos cursos de graduação, que sempre aconteceu por meio do mais concorrido vestibular do país, a Fuvest, mudou nos últimos anos. Alunos de escolas públicas podem utilizar a nota do Enem para ingressar na universidade. Qual a razão dessa modificação?O papel da universidade não é apenas o de ser um centro de conhecimento, mas também o de oferecer modelos de resolução de problemas da sociedade. A exclusão do ensino superior é um dos maiores desafios brasileiros. Não acredito que os melhores alunos estão nas escolas privadas: eles são apenas os mais bem treinados para o vestibular. Com isso, deixávamos de fora os melhores do sistema público – em 2013, apenas 37% de nossos vestibulandos provinham de colégios estaduais. Desde 2015, a USP usa a nota do Enem para o ingresso na graduação e cada faculdade decide o número de vagas que serão destinadas a esse sistema. As unidades reconheceram o compromisso social embutido nessa decisão e resolveram aderir ao sistema. Afinal, a universidade deve ser um espaço heterogêneo, de construção conjunta de ideias. Ainda não temos os dados consolidados da proporção de alunos que entrou por meio desse sistema neste ano, mas a meta era que 50% dos candidatos chegassem à graduação pelo novo sistema. Isso é uma mudança cultural tremenda na USP. A Fuvest deixou de ser o único meio de entrada dos estudantes na maior e melhor universidade do Brasil.

Em outubro de 2015 foi aprovada uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que permite que universidades públicas cobrem mensalidade para cursos de extensão, pós-graduação lato sensu e mestrados profissionais. Algum dia a USP terá cobrança de mensalidades?Oferecemos cursos pagos de pós-graduação de aperfeiçoamento profissional. É moralmente lícito cobrar por um curso que fará um funcionário ganhar mais e acho razoável que alguém que se beneficie financeiramente das aulas dê retorno à universidade nos mesmos termos. Dito isso, não acredito que a cobrança de mensalidade seja a saída para as dificuldades financeiras da universidade – a solução está na busca de recursos extras para o financiamento de atividades do ensino superior. A não-cobrança de mensalidades está na Constituição e quem deve decidir se isso é justo é a sociedade junto a seus representantes. Fazemos justiça social ao deixar que filhos de grandes empresários paguem todo o ensino fundamental e depois tenham acesso a cursos de excelência em universidades públicas? Ou quando pagam fábulas em instituições estrangeiras de ensino superior? Essa é uma questão que não compete a mim, mas à sociedade discutir.

Nos últimos quatro anos, a USP revolucionou seu vestibular, implantou um novo processo de avaliação e estabeleceu regras para a gestão das finanças. Era necessário mudar o perfil da Universidade de São Paulo?A USP é um lugar fantástico, mas grande parte da crise se deu porque as decisões importantes estavam concentradas nas mãos de uma só pessoa, o reitor. Depois de muitas discussões conseguimos fazer com que essa responsabilidade fosse compartilhada com o Conselho Universitário. Agora, não é o reitor quem faz – o centro de todas as decisões da USP é o Conselho. Essas mudanças eram necessárias e mexem com a espinha dorsal da universidade, por isso causam tanto receio. Para alterar a estrutura antiquada da USP e povoá-la com jovens inteligentes e criativos, as transformações eram mais que necessárias.

Foto: Ricardo Matsukawa/VEJA.com