Em junho de 2017, o carioca Sérgio Sá Leitão, 51 anos, assumiu um compromisso com prazo de validade: chefiar o Ministério da Cultura do governo de Michel Temer, pasta pela qual já haviam passado dois nomes em um só ano e cuja extinção chegou a ser aventada pelo presidente – ideia que provocou revoltas furiosas na classe artística. Sá Leitão, antes diretor da Agência Nacional de Cinema (Ancine), herdou vários nós por desatar: o irrefreável contingenciamento de recursos anunciado no começo daquele ano, a crescente descredibilidade da Lei Rouanet e a ineficiência do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que até então destinava menos da metade de sua arrecadação para o mercado. Há um esforço recente neste último ponto. Nessa segunda-feira, o MinC anuncia o investimento recorde de 471 milhões em editais para linhas de produção de cinema e TV, aliados à promessa de mais 700 milhões até o fim de 2018. Nesta entrevista a VEJA, Sá Leitão explica os impactos do novo programa de investimento em audiovisual e antecipa planos para os próximos dez meses à frente da pasta.
Antes de assumir o cargo, o senhor escreveu um artigo no qual defendia que a existência de um Ministério destinado exclusivamente à Cultura não era necessária. Mantém sua opinião? Sim. A institucionalidade do Ministério da Cultura não é decisiva. O que importa é o orçamento e a efetividade das políticas públicas voltadas para o setor cultural – que podem ser geridas por uma secretaria dentro do Ministério da Educação, por exemplo. A estrutura do MinC custa mais de 2 bilhões de reais por ano. Se metade disso fosse destinada à atividade fim, a cultura teria muito a ganhar. A melhor alternativa seria a junção com o Turismo e o Esporte, como acontece na Inglaterra. São áreas afins que compõem o que chamamos de economia criativa.
Tornar-se ministro após a publicação do artigo não o deixou desconfortável? Nem um pouco. Sou uma pessoa de ação. Vi o convite como uma oportunidade de realizar o que penso e desejo para a cultura brasileira.
O Ministério da Cultura sofreu cortes significativos por parte do governo. De onde vem agora tanto dinheiro para o audiovisual? O audiovisual tem uma fonte própria. Não são recursos do Tesouro. Há uma contribuição chamada Condecine. O setor audiovisual e o setor de telecomunicações pagam a Condecine, e parte disso vai para o Fundo Setorial do Audiovisual. Historicamente, 30% ficam com o governo, o que é previsto por lei, 20% têm sido contingenciados e os outros 50% vão efetivamente para o FSA. O volume de recursos é imenso, se compararmos com o que há para outras áreas. Só neste ano, serão arrecadados cerca de 700 milhões de reais. Isso sem contar os rendimentos financeiros e os resultados do fundo.
Por que os recursos não chegavam ao mercado? Porque o excesso de burocracia gerava um hiato de até dois anos entre a aprovação de um projeto e a liberação do recurso. Além disso, as linhas de investimento eram restritas. Os editais só contemplavam produção, distribuição e exibição de cinema e TV. Não havia frentes para investir em preservação e digitalização de acervos ou infraestrutura e tecnologia - carência que se reflete na baixa competitividade de parte dos nossos filmes. Havia também uma ênfase na modalidade seletiva, que é subjetiva e leva mais tempo do que a automática. O objetivo das novas regras do fundo é facilitar o acesso dos produtores ao dinheiro, bem como ampliar as possibilidades de investimento.
A Condecine será aplicada às plataformas de vídeo on demand, como a Netflix? Sim. Considero que é justo regulamentar a incidência da Condecine sobre as plataformas de VOD. Afinal, todos os demais players do setor audiovisual pagam. Além disso, muitos canais de TV paga e aberta já possuem suas plataformas e a tendência é que isso tenha um peso cada vez maior no faturamento dessas empresas. É razoável supor que num futuro muito próximo haverá uma queda brusca na arrecadação do FSA caso a Condecine não incida sobre o VOD.
Isso não trará prejuízos para o consumidor? Não. Ao planejar sua inserção no mercado brasileiro, muitas plataformas já inseriram a cobrança da Condecine em seus planos de negócio e têm sinalizado que se o valor for compatível com o dos demais segmentos, não haverá ônus para o consumidor. Além disso, a ausência de regulamentação específica tem inibido o desenvolvimento do VOD no Brasil. Vários players querem oferecer seus serviços e estão esperando porque consideram que é preciso ter regras claras e adequadas – o que ainda está em discussão no Conselho Superior de Cinema. O importante é que a regulamentação da Condecine não imponha restrições que impeçam o segmento de crescer.
"É fundamental regulamentar a incidência da taxa sobre as plataformas de streaming, justamente porque todos os mercados pagam"
Não há um descompasso entre os investimentos para o audiovisual e outras áreas da cultura? Sem dúvida. O audiovisual conseguiu estabelecer uma fonte própria de recursos, mas não temos um programa de investimento direto que abranja outras áreas. A parte do orçamento destinada à restauração de patrimônio histórico, por exemplo, está hoje em 150 milhões de reais, 100 milhões a menos do que o necessário. Isso é grave porque se não investirmos a tempo na restauração, muitos imóveis importantes podem sofrer danos irreversíveis.
O que fazer para evitar isso? Apresentei ao presidente a minuta de um projeto de lei ou medida provisória que prevê o uso de recursos oriundos de loterias federais para um programa de fomento direto à cultura. Seriam dez áreas contempladas, sem o audiovisual. A legislação existente já prevê a aplicação de 3% das loterias na cultura, mas o dinheiro é depositado pela Caixa Econômica no Tesouro e acaba sendo contingenciado. A ideia é fazer com que esses 3%, ou cerca de R$ 350 milhões, sejam alocados diretamente pela Caixa, por meio de editais de alcance nacional. O programa seria gerido por um comitê composto por agentes do governo e do setor cultural. Caso a medida seja aprovada, pode ser o principal legado desta gestão.
Como é sua relação com a classe artística, que é predominantemente crítica do governo do qual o senhor faz parte? Tenho ótima interlocução, por exemplo, com o Movimento 342, criado por artistas de oposição ao governo, e outros segmentos. Costumo convidar as pessoas que têm convicções políticas diferentes das minhas a refletir sobre as políticas culturais de forma técnica. Assim, abrimos um campo onde as afinidades são muito maiores do que as divergências. Estamos, inclusive, rompendo tabus com lideranças cristãs, que também tinham receio de se aproximar do ministério. O fundamental é o diálogo e o perfil técnico da gestão.
Sendo um liberal convicto, não é contraditório defender a lei Rouanet, que condiciona o investimento cultural à regulamentação do Estado? Tenho muita dificuldade de entender a crítica que alguns liberais fazem à Lei Rouanet. Quando ela nasceu, na década de 1990, a esquerda acusava-a de transformar a cultura em um negócio. Agora, é criticada pela direita como instrumento de cooptação. Vejo a lei como um mecanismo de empoderamento do contribuinte, porque permite que ele decida se quer pagar até 6% de seu imposto de renda para o governo ou apoiar projetos culturais à sua escolha. A função do ministério é verificar se os projetos cumprem a finalidade cultural e se os orçamentos são adequados, além de acompanhar a realização e auditar os resultados e a execução. Me parece um recurso inteligente e essencialmente liberal.
Mas, como se sabe, isso nem sempre ocorre... Verdade. Houve negligência na gestão. Devemos também combater o dirigismo cultural – o direcionamento ideológico por parte do governo, que não pode dizer o que é ou não considerado cultura, algo que já foi praticado. Voltando à questão com os cristãos, desde o começo deixei claro para a minha equipe que não nos importa se um festival é de samba, jazz ou música gospel. Importa é que seja cultural e viável, de modo que as empresas interessadas possam investir com segurança.
Com tantos casos de inadimplência, pode-se dizer que a Lei Rouanet fugiu ao controle do governo? Sim. Mas isso foi consequência de negligência na gestão da Rouanet em anos anteriores. Não é um problema intrínseco ao mecanismo, que tem uma longa folha de bons serviços prestados à cultura brasileira e ao país.
Onde estão as falhas? O MinC não cumpriu adequadamente o papel de analisar e acompanhar a execução de muitos projetos, de modo que chegamos a ter um déficit na análise de prestações de contas de cerca de 25 000 projetos – quase a metade das iniciativas fomentadas em 27 anos de Lei Rouanet. Uma das minhas maiores preocupações é fazer com que ela volte a ter credibilidade. Conseguimos resolver 2 500 destes casos em alguns meses e editamos uma nova instrução normativa, reduzindo pela metade o número de artigos. Também baixamos em um terço o tempo de análise das iniciativas. Acredito que agora a lei conseguirá cumprir melhor sua função de promover o desenvolvimento da cultura brasileira.
O senhor já fez críticas à chapa Dilma e Temer antes de assumir – chegou a dizer em um tweet, que “não tem bandidos de estimação”- e hoje tece elogios ao presidente. O que mudou? Nada mudou. Eu nunca me posicionei contra o governo Temer. Fui crítico ao governo Dilma, do qual o presidente fez parte. Tenho uma identidade programática muito forte com as medidas que estão sendo tomadas pelo governo atual, sobretudo no campo das reformas. Não conhecia o presidente até o convite para assumir o Ministério da Cultura e, desde então, tenho visto o esforço que ele está fazendo para colocar o país novamente no trilho do desenvolvimento.
Como se sente diante das denúncias contra o presidente? Não afetam o meu trabalho. Acredito que qualquer atuação supostamente ilícita deve ser investigada e, se a culpa for comprovada, os responsáveis precisam ser punidos. Isso não exclui ninguém.
A Paraíso do Tuiuti recebeu 500 000 reais via Lei Rouanet para o Carnaval. O senhor ficou incomodado de ver um desfile crítico ao governo? De jeito nenhum. A irreverência e a crítica fazem parte da essência do Carnaval. O apoio aos desfiles não está vinculado aos enredos, mas ao reconhecimento de sua importância cultural e do alto impacto na geração de renda e emprego. Lamento apenas que muitos condicionem seu espírito crítico às afinidades políticas. Se tivéssemos mais livres pensadores, certamente teríamos visto críticas deste gênero nos governos anteriores, responsáveis por escândalos de corrupção escabrosos e por levar o Brasil à maior recessão da sua história. Se isso não é material para irreverência, não entendo o que pode ser.
Para o senhor, qual deve ser o perfil do novo presidente? Torço para que o novo presidente seja alguém com uma visão de mundo liberal, que compreenda a importância da iniciativa privada para o desenvolvimento do Brasil. Vejo que há alguns nomes se colocando que de alguma forma se encaixam ao menos parcialmente neste perfil. Estamos aos poucos nos livrando do populismo, o maior mal político que acometeu a América Latina nas últimas décadas. Isto é muito positivo.
A intervenção militar no Rio foi uma ação populista? Não. Melhorar a segurança pública é chave para recolocar o Rio num ciclo de desenvolvimento econômico. A criminalidade atrapalha muito a economia e a agenda de eventos do Rio. A economia criativa e o turismo, somados, respondem por quase 8% do PIB do estado e são áreas diretamente impactada pela sensação de insegurança. Por isso, participei das conversas sobre a intervenção e me posicionei desde o início a seu favor.
Como você definiria sua experiência em Brasília? Brasília, por vezes, me lembra o seriado “A Ilha da Fantasia”. Há um isolamento muito grande em relação à realidade do país. Não dá para fazer uma gestão adequada ficando apenas na cidade. É preciso percorrer o Brasil e tomar um banho de realidade para perceber o quanto ainda há por fazer.
O senhor alimenta expectativas de continuar à frente da pasta no próximo governo? Não. Trabalho com o horizonte de 31 de dezembro e já avisei ao presidente que não serei candidato a nada. Quando acabar, espero tirar seis meses sabáticos para descansar, estudar e planejar o futuro.
Foto: Ronaldo Caldas