Às cinco horas da tarde, os empregados se despedem. Charles Cosac está sozinho com os cachorros e as dezenas de obras de arte que ocupam os novecentos metros quadrados de seu luxuoso apartamento em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo. Entre as paredes vermelhas como as de Gritos e Sussurros, de Ingmar Bergman, sobem e descem acordes de um réquiem. Cosac, 52, está mais solitário do que nunca. Um ano depois de colocar fim àquela que por dezenove anos talvez tenha sido a maior editora de arte do país, a Cosac Naify, e meses depois de se despedir de Tunga, artista plástico e amigo que se hospedou em sua casa enquanto lutava contra o câncer que o vitimaria em junho, o rico herdeiro de uma família de mineradores tem uma rotina quase monástica, dividida entre o próprio apartamento e o da mãe de 88 anos, portadora de Alzheimer. “Ela não é um peso para mim. Eu, sim, fui um peso para ela, que viveu tentando apaziguar a minha relação com papai. Acho que o pior, para ele, foi eu não ter herdado os negócios. A minha homossexualidade não era motivo de alegria, mas eu não o compelia a conviver com ela. Nunca passei a noite com ninguém. Não tenho vergonha de falar que eu nunca sofri por amor.” Sozinho, o carioca que adotou São Paulo, onde votou pela primeira vez na vida neste ano e lamentou a vitória de João Dória Jr. (“a cafonice paulistana”), edita aqueles que chama de seus últimos livros de arte, como o de Mauro Restiffe para a Cobogó, e se prepara para deixar a vida pública. “Quero resgatar meu sobrenome. Deixei de usá-lo por causa da editora, assinava só Charles. Agora, quero apenas trabalhar como voluntário em um museu para me ocupar. Seria uma coisa simbólica, o meu primeiro salário.” Enquanto faz planos para uma velhice desacompanhada – ele adquiriu, ainda criança, uma cápsula para ter seu corpo lançado no espaço depois de morto, mas hoje pensa em terminar seus dias em uma casa de repouso na Europa e ser enterrado no Brasil –, Cosac, trinta quilos mais magro, repassa a decisão que deixou atônito o meio editorial no final de 2015.
Um ano depois de dar fim à Cosac Naify, talvez a maior editora de livros de arte do país, que balanço o senhor faz?
Estou muito triste um ano depois da decisão, de ter perdido a editora, o meu trabalho, a minha rotina, a convivência com diversas pessoas, mas acho que estaria ainda mais triste se ela estivesse aberta. Estaria completamente neurotizado. Houve muitos problemas, como um mercado viciado pela Lei Rouanet – eu criei um desafeto pela Ipsis, não por ser a melhor gráfica do país, pois isso eu não poderia negar, mas pelos altos preços que ela pratica vis-à-vis gráficas de similar qualidade em Portugal ou mesmo no Chile, e esses preços se devem à tabela paralela gerada pela lei de incentivo. Mas não apenas isso. Eu queria ter um discurso apolítico, porém, o que mais pesou foi mesmo a crise. A editora sobrevivia com dificuldade, com um investimento mensal meu, mas a crise aumentou e criou um efeito dominó, com a elevação do dólar, a interrupção das aquisições governamentais e o início da inadimplência. E 2016 foi horrível para todo mundo, um ano marcado por promoções, não teria sido diferente para a Cosac Naify. Não me arrependo de nada – teria vivido tudo de novo, desde o começo.
Houve algum episódio ocorrido na editora que tenha simbolizado, para o senhor, o caminho sem saída que ela estaria tomando?
Eu sempre lutei para que a editora fosse a continuação da minha casa e vice-versa. Eu queria que as pessoas notassem que eu tinha algo de árabe (tapetes persas, que não são árabes!) e, sobretudo, cristão. Eu desgosto da palavra editora. Prefiro como se fala em francês, italiano ou mesmo em português lusitano: casa editorial. Eu não queria um escritório, mas algo que fosse uma casa, um lar, que tivesse uma bela lareira onde todos se sentissem aquecidos. Muitas vezes, porém, danos causados a móveis de design ou a obras de arte me feriram pessoalmente, pois refletiam uma incompreensão à minha iniciativa. Todavia o ferimento mais grave e irremediável foi quando eu próprio notei o meu desinteresse por ela. Eu me sentia frustrado com o trabalho de dezenove anos e com o impasse da editora, que não entrava no azul nunca. Estava muito cansado dos heróis que apareciam prometendo salvar a empresa. E o Brasil foi tomado por um grande ceticismo, com a possibilidade de que em dez anos voltássemos a estar como em 2010. Quando anunciei o encerramento, em 30 de novembro de 2015, fazia três anos que as paredes não eram pintadas, a poeira cobria as vidraças e escurecia as persianas internas. Pilhas e pilhas de livros e correspondência por toda a parte. O abandono imperava. Eu já não me importava mais com ela. Tudo que eu queria era sair de lá.
O anúncio do fechamento foi feito na noite em que a editora venceu o Prêmio São Paulo de Literatura. Isso não teria ajudado?
O prêmio não teria feito nenhuma diferença. Mesmo um Nobel não faz, senti isso com Mo Yan e Le Clézio. O Nobel não é tão importante quanto a gente pensa. A escolha do Bob Dylan deu mais visibilidade para a Academia Sueca do que para ele. O que teria ajudado a editora seria uma grande estrela como Carlos Drummond de Andrade ou Clarice Lispector, que tentamos ter. São livros adotados por escolas, por vestibular, uma solução que fugiria ao best-seller. Mas o Drummond ficou com a Companhia das Letras e acho que ela estava mesmo mais capacitada para recebê-lo. Outro problema enfrentado pela Cosac Naify foi a fuga de autores: muitos lançavam a primeira obra na editora e depois iam para a Companhia das Letras. Eu não queria ser apenas uma lançadora de talentos.
É verdade que a editora chegou a dar prejuízo de 500.000 reais por mês, em 2001?
Houve períodos mais graves até. Eu só assumi a presidência da editora no finalzinho, e então soube que ela devia direitos autorais. O diretor financeiro daquela ocasião, o Otávio Gruber, sob a presidência do Bernardo Ajzenberg, maquiava o quadro e a bomba estourou na mão do mais fraco, que era o autor. Sou veemente contra e dei ordem para que tudo fosse quitado. A Cosac Naify nunca deu lucro. Uma vez, se festejou um lucro de dez mil reais, mas era camuflado, não era real. Eu posso dizer que a editora fechou por incapacidade administrativa minha, nunca tive interesse nessa parte. Mas vendi obras de arte para ajudar a Cosac Naify, vendi Valtércio Caldas, Sérgio Camargo, Siron Franco, Iberê Camargo. Depois, recebi propostas para vender a editora, só que não foram propostas justas e havia um acordo desde o início, meu e do meu cunhado, Michael Naify, meu sócio, de que o nosso nome não seria repassado.
O senhor se considera mais um empresário ou mecenas?
Nenhum dos dois. Se eu quisesse ser empresário, teria ido trabalhar nas minas da minha família, em Minas Gerais. O que eu gostava mesmo era de fazer livro. Nunca quis levar esse estigma de mecenete. Eu tive atitudes de mecenas na Cosac Naify, mas ela não era um mecenato. Era uma editora comercial que teve uma administração fraca. Mecenas seria a Milu Villela, a família Setúbal. Eu seria um excelente mecenas, se eu fosse rico, rico mesmo. Eu iria contemplar o teatro, que está morrendo e me preocupa muito. Iria contemplar a música clássica, que não pode ser uma coisa elitista. A gente tem a Osesp e só a Osesp.
Como foi a tomada da decisão que pôs fim à Cosac Naify?
Eu me tranquei em casa na quinta-feira e na sexta, dias 26 e 27 de novembro, conversando comigo mesmo. Minha casa é a minha lareira, ela me dá o calor de que preciso. Decidi no sábado e, na madrugada do domingo, escrevi um e-mail para a diretoria da editora. O Tunga estava em casa e, embora ele fosse contra – já havia até me demovido da ideia em outras ocasiões –, eu não teria conseguido tomar a decisão sem ele por perto. Eu precisava ter alguém daquela envergadura ao lado. Na manhã de terça-feira, quando a notícia saiu no jornal, eu o deixei na porta do quarto dele. Tunga não disse nada, mas me mostrou que leu ao deixar o jornal aberto, no chão, na página da notícia.
Como a morte do Tunga o abalou?
Sim, mas já vinha de um período duro. Com o encerramento da editora, vivi dias difíceis. Fiquei tenso, meu psiquiatra me falou para não sair nem atender ao telefone. Em casa, o Tunga me dava força. Era uma pessoa apartidária, mas uma resistência por si só. A existência dele me protegia demais. Hoje, me sinto sem interlocutor. O Tunga determinou um caminho para a gente seguir na Cosac Naify com o Barroco de Lírios, o primeiro título, de 1997, um livro atemporal que até hoje me impressiona. Ele ficou em casa até quase o fim. Eu me senti obrigado a oferecer ajuda. Meu pai teve câncer, eu tive um melanoma perto da medula, sei como é. O Tunga voltou para o Rio três semanas antes de morrer. Já estava desacreditado, achávamos que morreria no avião, mas faleceu algumas semanas depois. Nós nos despedimos no aeroporto. Foi duro, mas um privilégio tê-lo comigo.
Agora que o senhor pensa em se afastar da vida pública, cogita também deixar o país?
Cogitou-se de fato uma mudança, para Florença ou para os Estados Unidos, os dois lugares onde a minha irmã Simone habita, mas seria ruim para a minha mãe. Também pensei no Rio. Mas o Rio era uma cidade pequena quando eu nasci e agora parece menor ainda, parece um bairro. É uma cidade muito decadente. O Rio é cheio de Romários, carioca não leva a vida muito a sério. Não que eu ache que se tenha que levar a vida muito a sério, mas não me vejo como membro do Rio. E agora tem o Crivella.
Tem receio do futuro do Rio de Janeiro com Marcelo Crivella?
Nós estamos sendo invadidos pelos crentes. Esse é o meu grande medo. Eles vão mudar o Brasil para trás, é um retrocesso. Tudo bem a gente ficar um tempo estagnado com uma crise econômica. Mas andar moralmente para trás é péssimo. Uma economia parada pode gerar saídas criativas, a falta de recursos aguça a criatividade, tem aspectos positivos, e pode trazer outros valores à tona, como o questionamento do consumismo. Nada disso está acontecendo. Você está vendo o dinheiro dos pobres ser direcionado. Não é um processo de aculturação como foi com a chegada dos portugueses. A coisa vem vindo de uma forma lenta e, quando você vê, tem um monumento gigantesco em São Paulo, o Templo de Salomão, com isenção fiscal. É uma loucura, eu fui lá conhecer. Se você vir o estacionamento, o tamanho daquilo, não tem nada mais dessa envergadura por aqui. Se você imaginar o tanto de montanha de mármore que foi gasto naquilo, eu digo isso e nem sou ecológico. E, se você vir quem vai lá… é todo mundo. Todo mundo.
E a vitória de João Dória Jr. em São Paulo, como o senhor vê?
Eu votei na Marta Suplicy, que fez a melhor prefeitura dos últimos vinte anos, com os CEUs, os corredores de ônibus, o Bilhete Único, mas acho que até o Haddad era melhor do que ele. Eu não acho que grandes empresários, homens que ficaram ricos, sejam obrigatoriamente grandes prefeitos. Eu também não entendo um prefeito que não é político. Um prefeito que não é político devia ser contratado por um prefeito que é político. Ele age como um Trump, um self-made-man que vai fazer todo mundo ficar rico em São Paulo. E isso não vai acontecer. Fiquei passado com a vitória contundente dele. E frustrado. Pela primeira vez na vida, em 52 anos, saí de casa para votar, estava super orgulhoso. Antes eu não ia, cheguei até a ter problema para tirar passaporte, uma confusão tão grande que eu resolvi sucumbir e ser um cidadão. Aí veio o medo, porque eu nunca votei, achei que ia dar azar, fiquei com receio de o câncer voltar. Coisa de criança.
Nem do gosto artístico do Dória o senhor compartilha?
Eu acho a esposa dele um escândalo, aquelas cópias do Frans Krajcberg que ela faz, acho tudo uma coisa de mau gosto, patético. É a cafonice de São Paulo, a parte da cidade que realmente me assusta.
Do Romero Britto o senhor também não é fã?
Não. Eu aceito a existência dele. Mas não comungo do sucesso. E a verdade é que o prefeito não foi eleito para falar das preferências artísticas dele. É que nem mãe de jogador de futebol que começa a falar de política. Vira aquela coisa brasileira.
O senhor ficou satisfeito com o impeachment?
Não acho que tenha sido um golpe nem que a Dilma seja inocente, mas, se tivesse de escolher, eu teria convocado novas eleições. Também não vejo como descolar o Temer da chapa em que ele foi eleito vice-presidente. Por outro lado, não vejo candidatos para o lugar.
Onde se vê trabalhando agora?
A minha vida está num momento delicado. Quero trabalhar e as portas não estão abertas, não vejo muita possibilidade a não ser que eu crie uma e eu não estou querendo criar. Eu queria trabalhar como voluntário num museu, na área administrativa ou na montagem das exposições, coisa que adoro fazer, duas ou três vezes por semana. Queria me ocupar. Cheguei a fazer contato com algumas pessoas, mas não recebi resposta. Talvez as pessoas pensem que eu quero muito, quando quero muito pouco. Seria um salário simbólico, o primeiro da minha vida.
Nunca pensou em uma galeria de arte?
Sou muito amigo da Luiza Strina, da Raquel Arnaud, do André Milan, e acho que, no momento em que abrisse uma galeria, deixaria de ser, e isso me assusta um pouco. Mas já pensei, sim, mas via uma galeria atrelada a uma editora de arte. A minha ideia, ao criar a Cosac Naify, era um pouco essa. Mas o mercado de arte se profissionalizou tanto de lá para cá que é uma verdadeira gincana, uma escravidão. Os galeristas têm de viajar muito, fazer muita feira, livro, exposição institucional, comprar obras. Não é como antes, quando era uma coisa caseira, mais tipo loja. Galeria se tornou uma coisa muito séria, e não que eu tenha horror a coisa séria, mas não queria carregar esse compromisso nas costas. A Cosac Naify foi um peso muito grande para mim.
O senhor gosta de citar o aristocrata russo Oblómov, publicado pela Cosac Naify, para falar de si mesmo. Não se vê em nenhum personagem brasileiro?
Não sou tão próximo de literatura brasileira. Gosto muito do Mario de Andrade e li também a obra completa da Clarice Lispector, embora não consiga vê-la como autora brasileira. Mas não consegui gostar de Guimarães Rosa. Sei que isso vai depor contra mim, mas não consegui terminar Grande Sertão, achei aquilo um inferno.
Como está o estoque da Cosac Naify hoje, depois da notícia de que poderia ser queimado?
A Cosac Naify tem ainda seis funcionários, que devem ser demitidos até dezembro, para em janeiro fechar o escritório. Mas nenhum livro vai ser queimado. Essa história surgiu da má fé de um autor, o Nelson Cruz. Os livros dele estavam na categoria de encalhe. Eu me correspondi com ele, tentando amenizar a situação – não que o meu nome toque e seja música –, mas eu não podia abrir uma única exceção ou teria de atender a outros 1.600. Então, em uma feira de literatura, ele encontrou um jornalista do site Publishnews e disse que teria os livros queimados. Eu não queimaria o livro dele. Eu picotaria. Picotar é uma prática comum no mercado. Simplesmente não se anuncia por uma questão de decoro, soa mal num país em que há tanta gente sem ler. E doar é complicado. Uma biblioteca aceita dois exemplares iguais. Então, se você tem um encalhe de 1.800 livros, isso significa 900 abordagens a 900 bibliotecas, significa logística, tempo e pagar direito autoral para o autor. Mesmo na doação, o autor precisa receber. Isso significa custo. Em momento algum, eu me queixei de um livro, um autor, do povo brasileiro, nunca me queixei que um título não vendia. Quem devia estar se queixando sou eu. Mas o Nelson Cruz acabou ajudando, as vendas praticamente dobraram. Quando fechei a editora, o estoque era de 1,1 milhão de livros. Quando estourou a bomba do Nelson Cruz, eram 400.000 livros, agora são 200.000. Com Black Friday e Natal, acaba. O remanescente, a própria Amazon vai querer reter.
O senhor considera a Lei Rouanet prejudicial?
Nós recorremos a leis de incentivo, mas, embora elas tenham melhorado muito, as acho prejudiciais porque viciam o mercado. A Lei Rouanet cria duas tabelas de preços, uma com e outra sem incentivo. Um designer, que pediria 3.000 reais pelo trabalho, tem a ousadia de pedir 25.000 reais com a lei de incentivo. Ela não maximiza recursos, ela os direciona para algo que já nasce em segundo plano, porque um livro que já está pago não vai ter a mesma divulgação que um livro que precisa se pagar.
A cultura depende de ajuda oficial?
A cultura precisa de patrocínio e investimento, mas eu faria uma coisa menos solta. Quem tem contato com banqueiros se dá melhor, não é justo. Nos países em que eu conheci melhor, como a Inglaterra, esse dinheiro é oriundo da loteria, e o país é dividido em condatos, e não fica aquela coisa de o dinheiro ficar concentrado na região Sudeste. E era muito preto no branco, não havia possibilidade de você jogar um almoço, uma viagem pessoal sua naquele orçamento.
A editora imprimia lá fora para combater os custos. Tínhamos duas datas para a China e uma para Portugal. Na China, eram livros de texto, de literatura, desses que a gente fazia com capa colorida, com fotos às vezes, cadernos de cor. A gente já imprimia o suficiente para estocar dois anos, porque valia a pena, quanto mais você imprime, menor fica o custo unitário. Nesse caso, a gente escolhia livros de domínio público e traduções, que eram vendas certas e um esteio para a editora, um dinheiro que entra mensalmente.
Portugal era para os livros de arte. Aqui no Brasil, a gente sofre um monopólio horrível de uma única gráfica, que cobra o preço que quer, e que eu acho que foi muito mal alimentada pelas leis de incentivo à cultura. As leis de incentivo viciam os preços -- da gráfica, do tradutor, do autor -- e o livro se torna uma irrealidade. Um produto caro no qual poucas pessoas têm interesse.
Foto Felipe Cotrim/VEJA.com