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Jô Soares

Ditadura cordial não existe

Humorista, que lança O Livro de Jô – Volume 2: uma Autobiografia Desautorizada, afirma que qualquer retrocesso no país seria uma “penúria” e que o humor via WhatsApp tem um papel político

Por Lucas Almeida

query_builder 14 dez 2018, 20h00

Longe da televisão desde 2016, Jô Soares lança o segundo volume de O Livro de Jô – Volume 2: uma Autobiografia Desautorizada (Companhia das Letras), obra que reúne as memórias da vida do humorista, ator, escritor, diretor teatral e apresentador, feita em parceria com o jornalista Matinas Suzuki Jr. O novo calhamaço, de 336 páginas, rememora a história de Jô desde a sua entrada na Globo, em 1969, até 2018, quando completou 80 anos de idade.

O livro reúne também histórias sobre a ditadura militar, incluindo as contribuições de Jô para o jornal O Pasquim, semanal humorístico e crítico ao regime da época. Em entrevista a VEJA, Jô não perde a piada quando questionado sobre os que exaltam e almejam um novo governo militar. "Sou gordo demais para pedir a volta do regime", diz, antes de falar sério: "Não existe uma ditadura mais branda, porque morreu menos gente ou torturou-se menos. Quando você tira a liberdade de um cidadão, está tirando a liberdade de toda uma população".

Rodeado pela gata Claudete Soares (o gigante maine coon Gustavo decidiu ficar deitado próximo à entrada), Jô recebeu a reportagem em sua casa, em São Paulo. Com 62 anos de trabalho e um repertório de mais de 14.000 entrevistas feitas na televisão, ele elogia os novos apresentadores de talk show, como Tatá Werneck, uma "comediante talentosíssima".

A seguir, a entrevista.

O Livro de Jô traz informações mais íntimas de toda a sua carreira. A relação com o público mudou desde o lançamento do primeiro volume, em 2017? Senti uma repercussão maravilhosa em relação às histórias que eu nunca tinha contado, foram as que mais surpreenderam. Tenho 62 anos de profissão, então é muita história — tem muita coisa que sobrou ainda. Acho que o público está acostumado com o meu lado escritor, mas, na verdade, sou um humorista. Tudo o que eu faço sempre é puxado para esse lado, até nas minhas entrevistas. Nunca pensei que o público poderia ficar mais íntimo, mas é sempre bom ter uma proximidade. É gratificante ser aceito por essas pessoas.

"Eu sou gordo demais para pedir a volta do regime, estou fora. A pessoa que fala isso não tem ideia do que está falando e, além de tudo, é mal informada, porque poderia ler a respeito. "

Em uma passagem do livro, o senhor reflete: “Dediquei a minha vida a fazer a vida dos outros um pouquinho mais alegre”. Isso o fez alegre também? Sempre. O humor não é uma piada, apenas, é a maneira como você enxerga o mundo. Isso nunca foi algo forçado, é só a minha maneira.

Longe da TV, sente falta desse afeto que recebia do público? Agora não. Foram quase 28 anos de programa de entrevistas na televisão, praticamente. Então, já saciou qualquer vontade.

O livro também rememora algumas situações pelas quais o senhor passou durante a ditadura militar. Hoje, uma parte da população pede a volta desse regime. Como enxerga esse movimento? Eu sou gordo demais para pedir a volta do regime, estou fora. A pessoa que fala isso não tem ideia do que está falando e, além de tudo, é mal informada, porque poderia ler a respeito. Já está mais do que comprovado que, apesar de todas as suas dificuldades e defeitos, a democracia é o melhor caminho que existe. Qualquer retrocesso seria uma penúria.

Nesse sentido, as histórias do livro também serviriam como uma forma de informação. Existe toda uma geração que não viveu nesse período, mas foi complicado. Não existe uma ditadura mais branda porque morreu menos gente ou torturou-se menos. Quando você tira a liberdade de um cidadão, está tirando a liberdade de toda uma população. A gente tinha medo de passar de automóvel em frente a certos quartéis, porque não podíamos dirigir em uma velocidade rápida ou lenta demais. Se parecesse suspeito, qualquer sentinela poderia atirar. Esse é o clima que se estabeleceu. Qualquer regime baseado no medo tende a acabar de uma forma terrível. Ditadura cordial não existe. Só para o tirano.

"Acho a Tatá Werneck, especificamente, uma comediante talentosíssima, com uma presença de espírito fundamental para esse tipo de programa "

Acredita que o humor ganha destaque em momentos de tensão política, como vemos no Brasil? Para mim, sim. Você vê isso através do WhatsApp e das redes sociais. A população se expõe ali e cria coisas geniais. Acho isso fantástico. Tem gente que reclama de fake news, mas tudo isso sempre existiu. Claro que isso ganha uma dimensão rápida e tem muita gente falando bobagem, como é na vida. Quem cria sites de mentira não ficará impune, isso acaba sendo revelado. Mas também há coisas ótimas que são compartilhadas nessas redes. As pessoas têm que se conformar que isso veio para ficar, não terá volta.

Costuma acompanhar alguma rede social? Não tenho nenhuma dessas coisas, mas de vez em quando crio uma conta só para dar uma lida, para ver o que estão falando. Em compensação, sei que há várias contas falsas minhas. Como estão assinando com o meu nome, só falam bem de mim. Encontram coisas antigas da TV e postam no YouTube. Começaram a criar uma biblioteca virtual. Você consegue encontrar vários trechos de entrevistas minhas. Eu, pessoalmente, não procuro, porque não gosto de me assistir, mas acho maravilhoso que existam esses registros.

Gosta de acompanhar o que passa na TV hoje? Eu tenho outro vício: seriados noir nórdicos. É o que mais vejo, além do noticiário. Comecei lendo livros noir de autores da Noruega, da Suécia... fiquei com um fascínio muito grande. Agora, estou assistindo a uma série sueca antiga, chamada Beck, de investigação. Gosto da ambientação. É um vício. Você começa a ver e não para mais.

Hoje vemos talk shows bem diversos no Brasil, como o Lady Night, com a Tatá Werneck. Gosta de algum em especial? O talk show é inerente ao veículo de televisão. Costumo dizer que é a forma mais saudável de voyeurismo, porque você fica sentado olhando para duas ou mais pessoas falando. Acho a Tatá Werneck, especificamente, uma comediante talentosíssima, com uma presença de espírito fundamental para esse tipo de programa. Cada talk show tem uma característica própria, sempre a respeito da pessoa que está atrás da mesa. E o (Fábio) Porchat é a única pessoa que eu digo realmente que começou no meu programa. Ele foi assistir na plateia como estudante, pediu para fazer um número e eu deixei. O talk show também depende muito do momento. Se a entrevista for boa, o programa é bom, se não, aquele dia não funcionou. É algo muito dinâmico.

Muitos programas têm divulgado material no YouTube e até feito conteúdos especiais só para a plataforma. Já pensou em fazer algo para a internet? Não. Por mais que você mude o veículo, já fiz mais de 14.000 entrevistas. Por enquanto, não me vem vontade nenhuma.

Vi que o senhor já está com dois novos projetos como diretor para o teatro. Houve algum motivo em especial para estar mais próximo dos palcos agora? Sempre tentei estar dirigindo algo e cheguei a atuar em A Noite de 16 de Janeiro (peça dirigida por Jô em 2018, baseada em texto da escritora americana Ayn Rand). Agora, um dos projetos é da minha amiga Beth Coelho e o outro me foi apresentado pelo (ator) Giovanni Tozzi, que também já trabalhou comigo. Mas está tudo à espera de que os projetos se realizem.

Foto: Gabriela Alves