A execução de Moacir Bianchi, em 2 de março, expôs o racha entre integrantes de uma mesma torcida organizada, a palmeirense Mancha, que ele ajudara a fundar. Um dos suspeitos de matá-lo na zona sul de São Paulo, com 22 tiros, é membro da mesma agremiação. Segundo o pesquisador Bernardo Buarque de Hollanda, professor em ciências sociais da Fundação Getulio Vargas em São Paulo, o desfecho fatal de uma rivalidade interna é um marco na história das torcidas. Mas não implica, necessariamente, uma escalada da violência nos estádios. Em entrevista a VEJA, ele aponta a proliferação de grupos pacíficos e festivos, pelos quatro cantos do país, que aboliram a camisa e a bandeira das organizadas e passaram a empunhar apenas a do clube. Uma das principais referências no estudo dessas agremiações, com pós-doutorado pela Fondation Maison des Sciences de l’Homme de Paris, Hollanda critica a solução de torcida única ou a extinção das organizadas como meios de conter a violência. E contesta o mito do torcedor ignorante e grosseiro.
A rivalidade entre setores de uma mesma torcida é um fenômeno novo? Brigas internas existem há muito tempo, mas o desfecho fatal é algo inédito. Por isso o assassinato de Moacir Bianchi pode ser considerado um divisor de águas na história das torcidas organizadas em São Paulo, talvez no Brasil. Quase trinta anos atrás, a morte de Cléo Sóstenes, outro fundador da Mancha Verde, foi o estopim da rixa inter-torcidas. Estamos agora diante de um acontecimento que marca a rivalidade intra-torcidas. Na Argentina, já há registros de mortes decorrentes dessa motivação. No Brasil, rivalidades entre torcedores do mesmo clube existem desde a consolidação das uniformizadas, nos anos 1960 e 1970. Basta mencionar que dois anos após a fundação da Gaviões da Fiel, em 1969, surgiu a Camisa 12, uma primeira dissidência nas torcidas do Corinthians. Nos últimos quinze anos, a luta pelo poder interno – político e econômico – tem-se intensificado entre as grandes torcidas, algumas com milhares de associados. E quanto mais elas crescem quantitativamente, mais a ramificação territorial se evidencia, emulando conflitos, exacerbando diferenças e estimulando a sanha pelo poder.
A polícia investiga a participação do PCC no assassinato. Qual a relação entre o crime organizado e as torcidas? Como entidades associativas, tais como escolas de samba e associações de bairro, há casos em que, por contágio e proximidade territorial, absorvem-se indivíduos vinculados ao crime organizado. A predominância masculina e juvenil é outro fator a ser considerado. Diria que, no caso das torcidas, responsáveis por reunir largos contingentes de jovens oriundos da periferia, isso é quase inevitável no contexto complexo e caótico da vida urbana atual. Mas isso deve ser analisado caso a caso, torcida a torcida, com a devida cautela. É fundamental aí o trabalho da inteligência policial, para identificar os criminosos e evitar o acerto de contas. Caso contrário, passa a imperar o sentimento de vingança que origina as vendetas, como aconteceu nos últimos 30 anos no Brasil, com as rixas entre torcidas de Corinthians e Palmeiras, por exemplo.
O assassinato de Bianchi pode levar ao surgimento de agremiações ainda mais violentas? O que temos visto nos últimos anos no universo das torcidas é a persistência desse problema de segurança pública, mas também um desejo interno, disseminado entre muitos torcedores e frequentadores de estádio, de criar novas agremiações, que fujam ao estereótipo da violência. São as torcidas “de alento”, ou “coletivos de torcedores”, como dizem, muitos inspirados nas novas barras argentinas, motivadas em apoiar os clubes e em reinventar o ambiente festivo nas arquibancadas. É um jogo em aberto, que vai depender das ações e da dinâmica interna dos próprios grupos, mas também de iniciativas públicas.
Como surgiram essas torcidas mais festivas? A invenção dos “movimentos” e “coletivos”, como eles se autonomeiam para diferenciar-se das torcidas uniformizadas tradicionais, principiou em 2001, no Rio Grande do Sul, e irradiou-se por Santa Catarina, Minas Gerais, Rio de Janeiro e alcançou também as regiões Norte e Nordeste. Eles aboliram a camisa e a bandeira da torcida, e passaram a empunhar apenas a do clube. Adotaram os instrumentos musicais típico das bandas argentinas, com instrumentos de sopro, prato, bumbo, além de adereços como os trapos e os mini-guardas-chuva. A proposta é recarnavalizar o ambiente das arquibancadas, torná-lo atraente às mulheres – as organizadas tradicionais são predominantemente masculinas – e colocar o clube num patamar de exaltação mais alto que a torcida. Isso pode contribuir para mudar o paradigma hoje hegemônico dos grupos de torcedores violentos.
“A proposta desses novos grupos é recarnavalizar o ambiente das arquibancadas e colocar o clube num patamar de exaltação mais alto que a torcida”
Algum dia veremos a pacificação das organizadas? As torcidas reinventam-se a todo o momento. Em minha tese de doutorado, mostrei como as organizadas surgiram no Brasil nos anos 1940 como instrumentos de cooperação para a ordem nos estádios. Havia estádios para grandes multidões e precisava-se conter o comportamento violento das massas. As torcidas recém-criadas atuaram e colaboraram nesse sentido durante muitas décadas. Hoje a situação se inverteu, mas novos modelos de torcer têm surgido, como a Geral do Grêmio, a Loucos pelo Botafogo ou a Bravo 52, do Fluminense, com princípios e atitudes distintos. Elas mostram como a festa nos estádios pode sobreviver e a hegemonia das torcidas violentas pode ser alterada também.
É possível extinguir as organizadas tradicionais? Extinguir as organizadas é admitir que apenas existe um único tipo de torcida, amparada na violência. Mas este universo é bem mais multifacetado do que se imagina. Algumas uniformizadas desejam a institucionalização, outras a marginalização. Entendo que mais vale investir nas novas torcidas, com perfil festivo, ou influenciar na modificação das já existentes, do que operar por decretos proibitivos. Lembremos que a extinção já foi decretada em 1995, mas com o tempo ela se mostrou inócua e as torcidas voltaram aos estádios.
O hooliganismo foi bem combatido na Inglaterra e em outros países europeus. Por que lá deu certo? Na Inglaterra, houve a combinação entre modernização dos estádios e elitização dos torcedores, com a criação da Premier League nos anos 1990. Mas os hooligans não desapareceram, eles continuam nos pubs e nas divisões de base do campeonato inglês. O modelo preventivo alemão, com os Fan Projects criados pela Bundesliga, é o mais exitoso na Europa, pois combina o conforto das arenas com o apoio à festa das torcidas no setor atrás do gol, com mosaicos, bandeiras e formas coletivas de torcer. À repressão, articulou-se a prevenção e a mediação de conflitos, com o apoio de assistentes sociais e de psicólogos.
Nesta semana, um deputado russo propôs transformar as brigas de torcida em esporte. No Leste Europeu, desde a queda do Muro de Berlim e a derrocada da União Soviética, o hooliganismo, que já existia nos anos 1980, tornou-se mais visível, sobretudo com a abertura internacional para as partidas contra clubes europeus. Laivos de nacionalismo e xenofobia deram suas marcas em países como Lituânia e Rússia. No caso da proposta do deputado russo, se soa bizarra por um lado, por outro, como a briga entre torcidas existe há décadas no país e não vai acabar por decreto, criar regras 'esportivas' poderia ser uma 'solução' paliativa, ainda que, repito, bizarra...
As brigas levaram alguns estados brasileiros a adotar a torcida única. É uma solução eficaz? O princípio da torcida única é problemático, pois se trata de uma espécie de vitória da intolerância, com o reconhecimento da incapacidade do poder público de permitir o ir e vir dos torcedores e com a própria ausência de espírito esportivo na convivência com o diferente. Um raciocínio esdrúxulo dessa lógica é propor que, no limite, a segurança estará plenamente garantida quando houver futebol sem torcida, o que, para um Nelson Rodrigues, seria uma aberração esportiva. A França tentou durante um tempo impedir caravanas de torcidas uniformizadas para jogos fora de casa, decisão que não tem mais vigorado. No Brasil, Curitiba foi a primeira cidade a tentar o modelo de torcida única, no Atletiba (Atlético-PR X Coritiba), nos anos 2000, mas voltou atrás. Belo Horizonte veio em seguida, e, desde 2016, São Paulo o adotou. À primeira vista, ele surte resultado, traz uma espécie de trégua, mas no médio e no longo prazos os efeitos perversos e imprevistos da decisão podem vir à tona.
“O princípio da torcida única é uma espécie de vitória da intolerância. À primeira vista, surte resultado, uma espécie de trégua, mas efeitos perversos e imprevistos da decisão podem vir à tona depois”
Quais seriam esses efeitos perversos? Os ataques, de grupo a grupo, têm acontecido nos deslocamentos e nos trajetos rumo aos estádios. A exclusão de toda uma torcida do jogo pode fazer canalizar ainda mais a busca dos subgrupos por esses encontros com os rivais, nos metrôs, nos trens e nos bairros de origem. Em Belo Horizonte, institui-se torcida única, mas atleticanos e cruzeirense têm-se enfrentado regularmente em dias de jogos desse tipo. Já vimos em jogos de torcida única também situações em que torcedores de um mesmo time brigam entre si. Em sentido inverso, em Porto Alegre, a dupla Gre-Nal apostou na volta de setores das arquibancadas com torcida mista em seu derby.
Qual a relevância das uniformizadas para os times? O futebol é hoje um espetáculo televisivo e necessita de uma atmosfera festiva dentro dos estádios, desde que estes foram convertidos em arenas multiuso. A emoção coletiva transmitida pela TV decorre tanto dos jogadores em campo quanto dos torcedores nas arquibancadas. É essa composição binária jogador-torcedor que emoldura a atratividade de uma transmissão televisiva. Sendo assim, estes torcedores uniformizados tornam-se pouco a pouco protagonistas ou coadjuvantes indispensáveis do espetáculo esportivo. Eles ainda hoje são necessários, embora, evidentemente, não com comportamentos beligerantes. Pode ser que, com as novas arenas, o espectador, visto individualmente, seja atomizado, como no teatro ou no tênis, com suas cadeiras numeradas. Mas a tendência é que, no setor atrás do gol, a tradição continue e ainda se reúnam grupos dispostos a torcer coletivamente, a compartilhar suas emoções pulando, cantando e assistindo às partidas em pé.
Como a relação entre torcida organizada e clubes se estreitou? Muitas torcidas organizadas nasceram dentro dos clubes. A Torcida Uniformizada do São Paulo (Tusp), o primeiro grêmio associativo criado no Brasil, em 1940, é oriundo de associados do próprio clube. Somente nos idos de 1960, com as torcidas dissidentes, ou Torcidas Jovens no Rio de Janeiro, esses grupos se afastaram dos clubes, decididos a pressionar os dirigentes, a criticar os treinadores e a cobrar o desempenho dos jogadores com independência e autonomia, num sentido, vamos dizer, de fora para dentro. Nos anos 1980, houve uma reaproximação, com alianças, tutelas e acordos entre cartolas e chefes de torcida, o que envolvia apoios nas eleições e na política interna dos clubes. Hoje em dia, isso varia de clube a clube e de torcida a torcida, mas tende a diminuir com a pressão e a fiscalização exercida pela imprensa.
Quais são os exemplos mais latentes de permissividade entre as agremiações e as instituições esportivas? Os ingressos e as caravanas de viagem foram moedas de troca importantes no cenário da relação torcida-clube. Até os anos 1990, eram frequentes a gratuidade ou subvenção de entradas e as cotas de dirigentes dadas a torcedores. Com o tempo, muitas agremiações passaram a revender os ingressos recebidos. E assim montava-se seu caixa, que se somava à comercialização do material da própria torcida. Mas com o advento das arenas e a criação do programa sócio-torcedor, essa moeda de troca tende a diminuir, pois o valor do ingresso subiu exponencialmente nos últimos anos. Algumas diretorias de clubes adotam posturas mais drásticas, de rompimento total de relação com a torcida, enquanto outras são mais permeáveis ao diálogo.
Qual é, afinal, o perfil dos torcedores organizados? É muito difícil tipificar o torcedor organizado sem recair em estereótipos. Como as próprias torcidas gostam de dizer, há um pouco de tudo. É claro que, à primeira vista, sobressai a impressão de que se trata exclusivamente de jovens da periferia, com trabalho precário e com baixo grau de escolaridade, sem aspiração à ascensão social. Mas no levantamento quantitativo que fizemos com o Projeto Territórios do Torcer, cerca de 80% dos torcedores organizados em São Paulo possuíam ao menos ensino médio. No Rio de Janeiro, cinco dos seis líderes que entrevistamos tinham diploma universitário e moravam na zona sul da cidade. Ainda segundo esse levantamento, um quinto dos torcedores organizados entrevistados têm ensino superior, enquanto 60% cursam o ensino médio. É um dado chamativo, ante o senso comum do torcedor ignorante, rude, grosseiro. Mesmo o perfil do chamado ‘hooligan’ na Inglaterra também está longe da imagem dominante do excluído social, quer seja do mercado de trabalho ou da formação escolar.
Foto Ricardo Matsukawa/VEJA.com