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José Manoel Bertolote

“É preciso haver uma política de prevenção ao suicídio”

Qual a relação entre suicídio e uso de álcool ou drogas ilícitas? Por que os idosos se matam tanto? Como o governo poderia reduzir os índices do problema? Com a palavra, uma das maiores referências do tema

Por Fernanda Bassette

query_builder 25 jun 2018, 20h00

Quarta causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos no Brasil, o suicídio é um tema tratado quase sempre da forma mais silenciosa possível. Para que se combata o problema, porém, ele precisa deixar de ser um tabu. É o que pensa o psiquiatra e professor voluntário da universidade estadual Paulista (Unesp), consultor da Organização Mundial da Saúde (OMS) e criador do Dia Mundial da Prevenção do Suicídio, José Manoel Bertolote. Para ele, é necessário que se fale mais sobre o assunto e que haja políticas de ações preventivas, assim como ocorre com aids, câncer e gripe, para tentar reverter a curva crescente de casos. Bertolote compara o número de mortes por aids e por suicídio por ano no Brasil – cerca de 11 000 – e questiona a diferença de investimentos de recursos nas duas áreas. “Se não houver uma boa política de prevenção, muitos outros continuarão morrendo.”

Os números de suicídio só estão crescendo no Brasil? Os países que adotaram políticas de prevenção e as implementaram adequadamente conseguiram reduzir as taxas de suicídio, como China e Japão. Nações como Brasil, México e Rússia, que não adotaram medida nenhuma de prevenção, no mesmo período, aumentaram o número de casos. São dados de comparação de países com mais de 100 milhões de habitantes. O Brasil precisa urgentemente de uma política nacional de combate ao suicídio, assim como existe para aids, para câncer, para gripe. Algumas populações como os indígenas, os presidiários e os policiais são altamente vulneráveis ao suicídio e precisam de programas específicos.

O Brasil registra cerca de 11 000 casos por ano de suicídio, ou 32 mortes por dia. Esse número pode estar subestimado? É muito subestimado. Mas mesmo que fosse preciso. Tome-se o total de 11 000 casos anuais, comparáveis às mortes por aids. Agora veja a dimensão dos recursos destinados pelo governo na prevenção de aids. Na prevenção do suicídio, que mata praticamente o equivalente em número de pessoas, o mesmo não acontece.

O Ministério da Saúde divulgou no mês passado o repasse de 1,4 milhão de reais para seis estados brasileiros com mais casos de suicídio para investimento em campanhas de prevenção. É o suficiente? Isso é ridículo. Não serve para nada. Há cerca de doze anos, o Brasil começou a discutir propostas de campanhas de prevenção de suicídio. Convidou a Organização Mundial da Saúde (OMS), e eu trabalhava lá na época. Vim ao Brasil mais de uma vez para desenhar essa política. As Diretrizes Nacionais para a Prevenção do Suicídio foram discutidas em 2005 e 2006, na gestão do então ministro Saraiva Felipe (que deixou o cargo em março de 2006), publicadas em agosto de 2006, assinada pelo ministro Agenor Alves da Silva, que já havia sido substituído em março de 2006 por Gomes Temporão. Nessa troca de cadeiras, a portaria se perdeu.

Entre 2011 e 2016, o Brasil registrou 62 804 mortes por suicídio, sendo 79% delas praticadas por homens. No mesmo período, houve 48 204 tentativas de suicídio, sendo 69% praticadas por mulheres. Por que a diferença? A mulher usa meios menos letais? O registro de óbito por suicídio no Brasil é subnotificado, inconfiável, extremamente precário. Sabemos que no mundo acontecem de dez a quarenta tentativas para cada caso de suicídio. Se o Brasil registrou 62 000 mortes, pode acreditar que deveria ter registrado de 600 000 a 2,4 milhão de suicídios. Há muito mais casos que acabam sendo registrados de outras formas, às vezes a pedido da própria família, que não quer se expor. Por exemplo: a pessoa toma uma cartela de comprimidos para se matar. E no registro fica como "envenenamento" e não "autoenvenenamento". Com relação ao gênero, as mulheres comprovadamente são menos violentas do que os homens. Elas se preocupam mais com o ambiente, são mais cautelosas, e isso se reflete no momento de desespero. O método preferencial das mulheres para acabar com a vida é a ingestão de alguma coisa tóxica, um medicamento, enquanto os homens, em geral, empregam métodos mais violentos, como enforcamento e uso de arma de fogo.

Há alguma forma técnica de saber qual a causa de um suicídio? Existe uma técnica chamada autópsia psicológica. Consiste basicamente em fazer entrevistas com pessoas próximas de quem se matou. Quando coletamos as informações de uma mesma pessoa ouvindo dez fontes, muitas vezes sai uma colcha de retalhos com retalhos totalmente incongruentes. Normalmente não se investiga a vida de nenhum suicida com essa profundidade de detalhes para saber qual a real causa. Na autópsia psicológica, quem faz a entrevista é um médico, um enfermeiro, um psicólogo, e o resultado fica confinado dentro do sigilo médico.

Mas esse procedimento não é uma rotina, certo? Não. Há quase 1 milhão de mortes por suicídio por ano, no mundo. O último levantamento do qual eu participei sobre autópsias psicológicas tinha menos de 20000 casos. Curiosamente, Dinamarca e Israel, que são dois países muito pequenos, contribuem nas pesquisas porque sistematicamente fazem autópsia psicológica em todos os casos de suicídio. Historicamente, dois terços dos suicídios acontecem na China e na Índia, em parte porque são a maior população do mundo, mas também por outras razões. E foram feitas apenas 100 autópsias psicológicas na China e 250 na Índia, pouquíssimo.

O que mais chama atenção nos resultados das autópsias psicológicas? No Ocidente, mais de 95% das pessoas que se suicidam têm um diagnóstico psiquiátrico: pela ordem de frequência: depressão, bipolaridade, transtornos de personalidade emocionalmente instável e esquizofrenia. O alcoolismo está presente em dois terços dos casos.

Nesses casos, houve uma busca ativa pelo diagnóstico do suicídio. Mas os dados mais recentes divulgados pelo Ministério da Saúde, referentes ao ano de 2016, apontam a presença de algum transtorno mental em apenas 25,5% dos casos entre mulheres e 27,7% nos homens que se suicidaram. Por que essa diferença? O que eu sei é que existem apenas três estudos de autópsia psicológica sobre suicídio de jovens brasileiros, com no máximo 100 casos cada um, e dois estudos com idosos. Somando, temos no máximo 500 casos realmente aprofundados para chegar ao diagnóstico. O Brasil soma 11 000 casos de suicídio por ano. Esse dado eu consideraria uma amostra enviesada, pois não temos nenhum grande estudo de autópsia psicológica no Brasil que determine realmente as causas do suicídio.

"O registro de óbito por suicídio no Brasil é subnotificado, inconfiável, extremamente precário."

Quais as características de uma boa política pública de prevenção? É preciso haver programas educativos, tratamento de transtornos mentais como fator central, ter um trabalho com a mídia, um sistema de notificação mais eficiente.

Há ligação entre suicídio e vício em drogas? Em princípio, sim. O que acontece é que muitas vezes fica difícil distinguir o que foi uma overdose acidental do que foi uma tentativa de suicídio nos casos de morte suspeita de usuários de drogas, sobretudo com heroína. Isso porque o dependente de heroína costuma comprar a heroína "batizada", mas pode acontecer de comprar uma dose pura, o que aumenta muito o risco de overdose. Assim, fica muito complexo distinguir as duas coisas. O que sabemos é que não existe evidência nenhuma entre dependência em maconha e suicídio. Já no caso do crack começam a surgir pesquisas sobre a ideação suicida em usuários dessa droga. Se pensarmos, porém, que o usuário de drogas rompe o convívio com a família, vai viver isolado, com perda de emprego, ele apresenta uma série de fatores de risco para o suicídio, mas é difícil apontar o papel isolado da droga.

No Brasil, o número de suicídios tem crescido, especialmente entre os idosos com mais de 70 anos. A taxa é de 8,9 para cada 100 000 casos, enquanto a taxa nacional é de 5,5 por 100 000. Por que os idosos estão se matando? Existe um acúmulo de causas, aumento de doenças em geral - sobretudo depressão e doenças degenerativas incuráveis -, isolamento social e restrição de projetos de vida. Há muito mais viúvas do que viúvos, e as mulheres são muito mais treinadas a se cuidar. Quando o homem fica viúvo, fica totalmente desamparado. Ele não sabe cuidar de si, e o seu isolamento é muito grande. Além disso, a depressão é muito mais frequente em idosos do que na adolescência.

A tendência ao suicídio é genética? Não existe causa genética para o suicídio. Os casos recorrentes na mesma família ocorrem, por exemplo, porque essa família pode carregar o gene da impulsividade, da esquizofrenia, do transtorno bipolar. E a impulsividade, por exemplo, é uma das causas de suicídio, principalmente entre os asiáticos. Mas nem sempre essa doença vai se manifestar e não há um fator de determinante genético que indique que aquela pessoa pode vir a se suicidar.

É comum que a pessoa que tenta uma vez o suicídio repita essa tentativa? Sim. Há uma curva muito clara de reincidência. E 50% delas ocorrem na primeira semana, usando outro método.

Se a pessoa que tentou se matar deu todos os sinais, o que pode ter faltado para evitar a repetição? Seria preciso que essa pessoa que tentou suicídio fosse seguida diariamente do mesmo jeito que uma pessoa que passou por uma cirurgia. Você não manda a pessoa que fez cirurgia embora para casa sem acompanhamento. No caso do suicida, a rede de saúde trata a emergência, resolve o problema e manda o paciente de volta para casa. Não acolhe, não acompanha. E essa primeira semana é crucial para evitar ou não romper o paradigma do suicídio. A pessoa sai do serviço com um agravante: o sentimento de humilhação, de vergonha, o peso de ter fracassado. O sistema de saúde brasileiro está totalmente despreparado para atender a casos de suicídio.

O que leva alguém a se matar?Todos os registros históricos, que são em geral textos religiosos com mais de 5 000 anos, mencionam suicídios. Nos primeiros textos, quem se suicida são deuses e semideuses. Imagine, por que um deus se mataria? Além dos deuses, na literatura antiga sobre heróis, os heróis se matam em determinadas situações. O suicídio é apresentado como um aspecto moral. O suicídio era uma questão de ética. E havia determinadas situações éticas em que a única saída para esses deuses, esses heróis, era cometer o suicídio.

Que situações éticas eram essas? As mais diversas, em geral associadas às derrotas, às perdas, à vergonha, à humilhação, ao fracasso.

Qual a eficácia de serviços como o Centro de Valorização da Vida (CVV)? O CVV realiza um trabalho extremamente valioso para atendimento de crises. Nem todos os que ligam são suicidas. Algumas pessoas estão em crise, alguns ligam uma vez, outros ligam toda semana e até todos os dias. Alguns com ideação suicida e outros não.

A estilista Kate Spade e o chef Anthony Bourdain, que se mataram recentemente, eram ricos, bem-sucedidos, cheios de fãs. Por que pessoas que “têm tudo” se matam? Porque o suicídio é um fenômeno multifatorial. Não existe uma única razão. Na vida de todas as pessoas os fatos vão sendo acumulados e, num certo momento, pode ocorrer um fator desencadeante que leve a pessoa a tal ato. E são fatores sociais, psicológicos, ambientais, filosóficos que fazem com que a pessoa não aguente mais aquela situação. Para entender todo esse dinamismo, é preciso investigar de forma aprofundada a causa do suicídio. Nesses casos citados como exemplo, nós conhecemos apenas uma face dessas pessoas: a face da riqueza, da fama. Mas não conhecemos os seus problemas, anseios e dificuldades. Por isso é difícil responder de forma simples por que alguém se mata.

Foto: Emiliano Capozoli