A psicóloga e escritora Jessica Joelle Alexander, 40 anos, nasceu nos Estados Unidos e morou em diferentes países. Ela leciona comunicação e técnica literária na Escandinávia e na Europa. Há 17 anos, Jessica se casou com um dinamarquês. Quando seu primeiro filho nasceu, reparou em um comportamento curioso: sempre que algo a afligia em relação à educação e à criação, recorria aos amigos dinamarqueses. Mas foi só quando leu que a Dinamarca era considerada a nação mais feliz do mundo há 40 anos que ela passou a estudar a conexão entre educação e felicidade. O resultado da pesquisa está em Crianças Dinamarquesas, livro escrito em parceria com a terapeuta e escritora dinamarquesa Iben Dissing Sandahl e que acaba de ser lançado, no Brasil, pela Fontanar. De sua casa em Roma, Jessica falou ao site de VEJA.
Qual o segredo dinamarquês para criar filhos? Começamos o livro com um acróstico que especifica as bases do modelo: F.I.L.H.O.S — F de farra, porque, na Dinamarca, a brincadeira é considerada parte importantíssima da educação; I de integridade, a franqueza e a honestidade, acreditam os dinamarqueses, elevam a autoestima; L de linguagem, relacionada ao diálogo; H de humanidade, que tem a ver com empatia; O de opressão zero, pois estamos falando de uma sociedade extremamente democrática; e, por fim, S de socialização. São essas as principais ideias do estilo dinamarquês que, vale ressaltar, não é um método, mas uma filosofia.
Há relação entre educação e felicidade? Sou casada com um dinamarquês há 17 anos e, embora soubesse que eles faziam algo diferente, foi só quando li uma notícia de que a Dinamarca era considerada o país mais feliz do mundo há 40 anos seguidos que comecei a estabelecer uma relação. Ora, crianças felizes se tornam adultos felizes que, por sua vez, criam filhos igualmente felizes. É um ciclo que se alimenta. Os pais dinamarqueses fazem muitas coisas diferentes. Permitem muito tempo para brincar, por exemplo. Também não são superprotetores e nem estimulam excessivamente a competição. Nos Estados Unidos, assim como no Brasil, os pais querem que os filhos frequentem uma série de cursos. Eles sentem que, dessa forma, as crianças aprendem mais e, consequentemente, sentem-se melhores pais. Na Dinamarca a brincadeira é considerada parte do processo educativo desde 1871. A coisa mais importante para os dinamarqueses é que seus filhos brinquem. Durante minha pesquisa, descobri que a brincadeira desenvolve empatia, estratégias de negociação e até a habilidade para lidar com o stress, quando situações relativamente perigosas se apresentam. Então, ao brincar, eles desenvolvem a resiliência, que é um dos componentes importantíssimos para a felicidade. A brincadeira também é um jeito da criança descomprimir a rotina. Quando estamos crescendo, aprendemos milhares de coisas novas ao longo de um único dia. A brincadeira é um período para digerir todo esse aprendizado.
As escolas também estimulam as brincadeiras? Sim. Até pouco tempo, as crianças terminavam as aulas às 13 horas. Recentemente, o governo passou para às 14 horas. O resto da tarde as crianças passam no que eles chamam de “escola do tempo livre”, um lugar onde elas só brincam. As brincadeiras são estimuladas também nos adultos e nos escritórios. E, veja, os escritórios dinamarqueses também foram votados como um dos lugares mais felizes para se trabalhar.
Os dinamarqueses não são superprotetores e deixam os filhos se arriscarem. Como estabelecem limites? A abordagem é bastante democrática. Mesmo quando as crianças ainda são bebês e não falam, os pais explicam as regras como se estivessem falando com adultos. Eles veem as crianças como seres competentes. A regra dos pais é ser um guia, não um controlador. Eles confiam muito nos filhos. Prova disso é o “jardim da infância da floresta”. São crianças que “estudam” ao ar livre. A escola delas é um bosque ou floresta, mesmo quando a temperatura está baixíssima. Nada menos do que 5 mil crianças frequentam o “jardim da infância da floresta”. Elas passam o dia subindo em árvores altíssimas, brincando em lagos, aprendendo a manusear facas para fazer gravetos. Há até mesmo educadores especialistas em educação ao ar livre. Um desses professores declarou, certa vez, que a única ocasião em que foi parar em um hospital foi quando um pai passou com o carro em cima do pé de um de seus alunos. É interessante, os dinamarqueses também não poupam os filhos de acontecimentos dramáticos ou tristes...
Como assim? Desde pequenas as crianças leem histórias tristes. A Pequena Sereia, por exemplo, eles usam a versão original, do dinamarquês Hans Christian Andersen. Nela, a sereia não fica com o príncipe, o príncipe não se apaixona por ela e, para completar, a sereia morre. Os dinamarqueses são muito honestos com as crianças. Eles não consideram que há boas e más emoções, mas que a diversidade delas é o que nos forma. A tristeza não é pior do que a felicidade. Quando mais contato as crianças tiverem com as emoções, melhor preparadas estarão para a vida.
Quais são os grandes temas relacionados à paternidade, atualmente, na Dinamarca? Como em qualquer outro país, tecnologia e redes sociais são dois assuntos que rendem debates por lá. Os dinamarqueses não usam o termo “americanização”, mas, por causa das redes sociais, eles estão começando a sentir de maneira mais assertiva a pressão externa. O governo tem feito mudanças para aproximar a escola do padrão americano e isso tem desagradado os dinamarqueses. A mudança do horário escolar que acabei de mencionar, de 13 horas para 14 horas, é um exemplo de influência externa.
"A brincadeira desenvolve empatia, estratégias de negociação e até a habilidade para lidar com o stress"
A relação das crianças com a tecnologia certamente é uma questão no Brasil. Como os dinamarqueses lidam com ela? É um desafio em qualquer lugar do mundo. Uma das coisas que eles fazem para combater o excesso é o que chamam de at hygge sig, ou simplesmente hygge (pronuncia-se ruga), que significa “divertir-se juntos”. Dedico todo um capítulo do livro a esse conceito porque de fato acredito que ele está intrinsicamente ligado à felicidade. Defino o hygge como um estado psicológico onde opera um acordo não verbal de que ninguém, durante esse período, reclama, faz fofocas, fala do estresse no trabalho, apresenta temas controversos ou fica grudado no celular. É uma reunião familiar que pode durar horas ou dias. Nesse período, os dinamarqueses acendem velas, cantam juntos, jogam jogos de tabuleiro, cozinham, tomam chá com bolo. Todo mundo ajuda, para que ninguém fique sobrecarregado. Durante o hygge ninguém precisa ficar alerta, é um estado psicológico bastante protegido. Como os dinamarqueses já crescem com essa cultura, ninguém precisa explicar as regras. Toda vez que uma família se reúne, eles já sabem que não haverá discussões ou conflitos. No hygge, as pessoas deixam a tecnologia de lado para criar um espaço sem distrações para as interações familiares. Quem mais se beneficia desse comportamento são as crianças.
Mas como os dinamarqueses sabem que estão num período de hygge? Eles avisam uns aos outros dizendo que amanhã, por exemplo, haverá um hygge? Não, ninguém precisa anunciar. Quando eles se reúnem, já sabem que aquele é o período do hygge. Ninguém pensa a respeito, eles fazem naturalmente porque é um comportamento transmitido de geração para geração. Para nós, estrangeiros, é um desafio porque temos que alterar nosso comportamento padrão. Veja, as nossas família também têm boas memórias para compartilhar, mas raramente falamos a respeito delas. Nos sentamos à mesa e reclamamos, falamos do trabalho, de política. Mas é possível agir de maneira diferente e, se treinarmos esse comportamento em casa, nossos filhos também agirão assim.
O alto índice de felicidade não poder ser explicado, também, pelo estado de bem-estar social, que oferece inúmeros benefícios aos cidadãos dinamarqueses? Sem dúvida, o sistema ajuda bastante. Além de excelentes creches para os filhos, tanto as mães quanto os pais têm período de licença. O sistema, no fim das contas, reflete as características de uma sociedade e, no caso dos dinamarqueses, o sistema reflete empatia. Os dinamarqueses são considerados o povo mais confiável do mundo. A Dinamarca alcançou o topo em um estudo da Universidade Aarhus que avaliou a confiança na sociedade e estimular a empatia é algo que os pais daquele país realmente levam a sério. Outra característica que se reflete no sistema é a igualdade de gênero. Talvez as dinamarquesas discordem de mim, mas, em comparação com os Estados Unidos, há muito mais envolvimento dos homens nos países escandinavos. Eles participam da educação e do cuidado com os filhos tanto quanto as mulheres.
A senhora é americana, morou em diferentes países, casou-se com um dinamarquês. Como cria os seus próprios filhos? Não existe perfeição. Eu erro o tempo todo. Tento implementar as filosofias dinamarquesas. Considero a brincadeira uma parte extremamente importante do aprendizado, então, eu deixo eles brincarem muito. Mas é claro que foi difícil vencer a tentação de coloca-los na natação, no balé, no piano, no curso de idiomas. Meus filhos têm quatro e sete anos. Incorporei o hygge na minha família, inclusive na minha família que está nos Estados Unidos. Portanto, sei que funciona. No início foi estranho porque não estávamos acostumados e precisávamos racionalizar para evitar certos assuntos ou deixar o telefone de lado. Agora, fazemos isso naturalmente e é tão mais legal! Minha família americana sempre falava de coisas ruins quando nos encontrávamos, o que é um hábito que simplesmente desenvolvemos sem perceber. Não significa que seja proibido falar de problemas com a família, mas, à mesa, durante o almoço de domingo, não parece ser o lugar mais apropriado. O fato de ter morado em diferentes países me fez ver que havia algo de especial no estilo dinamarquês. Vivenciei muitas maneiras diferentes de criar crianças, mas asseguro que não é preciso estar na Dinamarca para criar seus filhos como um dinamarquês.
A senhora diz que não tinha o dom natural para ser mãe e até mesmo que não gostava de crianças. É difícil ouvir alguém, especialmente uma mãe, fazendo esse tipo de confissão... Sentimos muita pressão da sociedade e o meu livro não é, de maneira nenhuma, um instrumento para julgar ou impor regras. Os pais precisam apoiar uns aos outros, usar a empatia para entender por que as pessoas agem de maneira diferente. Temos que baixar a guarda e deixar de julgar. Os dinamarqueses dizem que permitir a vulnerabilidade é o que mais nos conecta uns aos outros. Na Dinamarca, quando uma mulher tem filho, a parteira fornece a ela os contatos de todas as outras mulheres do bairro que também acabaram de ter bebês. Além disso, elas formam grupos que se reúnem uma vez por semana para compartilhar experiências e oferecer apoio. Quando uma mãe dá à luz, espera-se que ela demonstre que está tudo sob controle, mas, o que ocorre de fato, é um choque. A mulher se sente horrível, deprimida, e a tendência é que ela se isole, pois não quer admitir que a maternidade não é aquilo que esperava. A ideia de estimular essa conexão social é justamente para evitar a reclusão.
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