No seu 11º mandato como deputado federal – está na Casa desde 1971, com uma pequena interrupção entre 1982 e 1986 - , Miro Teixeira (Rede-RJ) diz que o sistema político estabelecido na transição da ditadura militar para a democracia faliu e defende uma Constituinte exclusiva para recomeçar o país, a partir da rediscussão da organização dos poderes, do sistema tributário e do pacto federativo, além da reforma política. Para ele, é preciso desmontar de vez a ordem “muito regulamentada” vigente no Brasil e o sistema político de relações pouco republicanas entre Executivo e Legislativo, que para ele cria um “presidencialismo de cooptação” e não de “coalização”, como é dito. Nesta entrevista a VEJA, ele questiona a existência de caixa dois, crime do qual têm sido acusados vários políticos a partir da delação da Odebrecht – “não tem onde botar tanto dinheiro nas campanhas” –, e classifica esse fenômeno como uma “tese do mensalão” que, ao final, não passaria do bom e velho enriquecimento ilícito. Político com passagens pelo antigo MDB, pelo PDT de Leonel Brizola, deputado durante a ditadura, membro da Constituinte de 1988, ministro das Comunicações no governo Lula e apoiador do impeachment de Dilma Rousseff (PT), ele manda um recado ao presidente Michel Temer (PMDB), que diz aproveitar sua impopularidade para fazer reformas como a da Previdência, rejeitada por 71% da população, segundo o Datafolha: “Em uma democracia, é preciso estar afinado com a opinião pública”.
Em depoimento em março ao juiz Sergio Moro (como testemunha do ex-ministro Antonio Palocci), o senhor afirmou que há uma movimentação em Brasília para combater a Operação Lava Jato. As forças políticas estão se movimentando para parar as investigações? Como? Isso começou com a tentativa de anistia para o caixa dois, quando eu e outros deputados começamos a reagir e acabamos conseguindo impedir. A minha impressão é que a Lava Jato vai começar a sofrer reveses nos tribunais superiores, o que não significa comprometimento desses tribunais. Juízes erram. O Sergio Moro acerta além da conta, mas às vezes erra e é por isso que existem apelações. Agora, a Lava Jato sofre ataques muito menos por conta de políticos, mas, sim, porque ela se aproximou de nomes do PIB nacional que não se imaginava que ela pudesse alcançar. São essas forças econômicas que usam seus políticos, do Legislativo e do Judiciário, para agirem por elas. A ofensiva ostensiva de agora é pelo risco que a operação passou a representar para os grandes nomes da economia brasileira.
O senhor fala das empreiteiras especificamente ou de outros segmentos que ainda não apareceram nas investigações? As empreiteiras já foram embora faz tempo. Não vou dizer que são “os banqueiros” porque eu sou a favor da economia de mercado e o Brasil precisa ter e tem bons bancos, mas está batendo neles. Já bateu no André Esteves [do banco BTG Pactual], por exemplo. E não é só a Lava Jato, você tem os processos contra os bancos no Carf [Conselho Administrativo de Recursos Fiscais]. Não houve prisão, mas já tivemos uma denúncia contra o Joseph Safra [dono do Banco Safra], por exemplo. O negócio ficou incômodo e logo veio a ideia de que ‘prisão preventiva demorada não pode’, mas isso não é por causa de político.
O senhor está no Congresso há 46 anos e não aparece em nenhuma delação premiada. Como conseguiu? Me estranha que não seja assim com todos, mas vamos fazer uma retrospectiva. Nós fizemos a Constituição de 1988, e o regime autoritário, que vinha desde 1964 e neutralizava o Congresso, se esgotou. A primeira eleição foi em 1990. Em 1993, já na primeira legislatura da democracia, tivemos a CPI dos Anões do Orçamento [escândalo envolvendo parlamentares que promoviam fraudes com emendas ao Orçamento da União]. É curioso e absolutamente estranho que tenha sido assim. Quando se olha esses chamados “anões do Orçamento”, não existe ninguém que tenha vindo de antes do golpe, com vícios de corrupção. Aquilo chocou muito, foi algo que ficou marcado, que fez pensar: como é que pode ter acontecido tudo tão rapidamente? Tudo ter se deteriorado assim?. Na CPI dos Anões, verifica-se o seguinte: o chamamento do Executivo à prática de corrupção.
Ou seja, não é algo da atualidade, e sim uma questão estrutural? Esse modelo chamado de “presidencialismo de coalização” não tem nada de coalização, porque não é em torno de teses ou de planos de metas. É um presidencialismo de cooptação, o que é facílimo de demonstrar com o Diário Oficial, que recentemente publicou uma lista de pessoas ligadas a parlamentares que votaram contra o governo na reforma trabalhista e foram exoneradas. Não tem nada de amor sincero nessa relação, o que existe é um amor pago do Executivo com algumas pessoas da sua base parlamentar. Ou seja: eu acho que o modelo de governança brasileiro se esgotou. O presidencialismo brasileiro é vistoso, mas é frágil, é fraco. É o mais debilitado por essas práticas todas, que não são exclusivas do Congresso. A chave está com o Executivo e os seus cúmplices no Legislativo. É um sistema que se mostrou desde logo frágil e corrompido.
“Lembro-me do Lula sentado no meio de artistas, falando “Isso é caixa dois e caixa dois todo mundo faz”
Por “corrompido”, o senhor quer dizer o quê? Todo o sistema de governança, que junta o Executivo e Legislativo. Você não tem um programa que se organize a partir de ideias, de metas, de um programa de trabalho, de objetivos. Eu falava uma coisa que parece muito ultrapassada, mas não está, que é o Pacto de Moncloa, na Espanha. No fim da ditadura franquista, foi feito um documento dizendo quantos empregos iam ser criados, quantas casas iam ser construídas. Não tinha ocupação de cargos, apesar de ser um país parlamentarista. Era um acordo em torno de um objetivo, e isso não acontece no Brasil. Mas não acontece agora? Não, eu acho que nunca aconteceu.
O senhor já se elegeu onze vezes para o Congresso. O financiamento privado vigorou até 2015. Quais foram os impactos disso no Legislativo? Eu acho que caixa dois não existe, é propina mesmo. Foi uma tese de defesa do mensalão. Lembro-me do Lula, em Paris, sentado no meio de artistas e falando “isso é caixa dois e caixa dois todo mundo faz”. Todo mundo coisa nenhuma, veja lá. É preferível perder uma eleição a praticar um crime. Não era financiamento de campanha, é só olhar os valores, que eram absurdos. Quando eu vejo que os marqueteiros dizem que receberam, eu penso que nesse caso é um dinheiro de propina que foi deslocado para campanha eleitoral. E o Pedro Barusco [ex-gerente da Petrobras] foi candidato a quê? A nada. E só na primeira leva ele devolveu quase 100 milhões de dólares. Você acha que é dinheiro de campanha? A questão é que não tem onde colocar tanto dinheiro nas campanhas. A não ser que saia comprando prefeito, vereadores, pessoas quaisquer na rua. Alegar isso chega a ser ofensivo com a população. Eu duvido que coloquem esse dinheiro em campanhas. É corrupção para enriquecimento ilícito, não “corrupção democrática”.
E qual é a solução? Se o sistema faliu, como podemos consertá-lo? Eu acho que nós devemos começar de novo o Brasil, porque o país acabou tendo uma organização político-administrativa muito regulamentada. Desde 1997, eu defendo uma Constituinte exclusiva para alguns pontos, por artigos, para evitar espertezas. Se não, nós vamos ficar ultrapassando crises, com as pessoas passando dificuldades de investir, de ter iniciativas, de empreender. Tudo decorre de uma ordem que nós organizamos depois da ditadura. O que não podemos é condenar o futuro do Brasil a isso. Mas eu não sou um desalentado, existe saída e a saída é esta: entender que está errada essa amarração do Estado brasileiro e a saída é uma Constituinte. Não é como a do [presidente da Venezuela Nicolás] Maduro. Mas convocada por emenda constitucional, eleita pelo povo, estritamente naqueles artigos. Constituinte democrática.
Mas quais artigos devem ser alterados? O Brasil precisa perder a vergonha de ser capitalista. Sempre há um controle absoluto do Estado sobre todas as atividades. O Brasil é capitalista, ponto. Se você pergunta para o dono do camelódromo, ele quer uma loja. Se puder, ele quer até um shopping center. As pessoas querem mais, querem crescer, ganhar mais dinheiro trabalhando honestamente. Poucos são os que imaginam ser possível uma implantação próxima do socialismo. Nesse nosso país, com essa dimensão, esse PIB diversificado, não parece ser um caminho. Devemos lutar para tornar mais fácil, menos enrolado, um Estado menos intervencionista, mais cuidadoso com seus próprios afazeres. E isso começa com uma bela reforma constitucional, enxugando muito. E para evitar truques, espertezas, a minha proposta é uma Constituinte por artigos, que tenha pré-definido o que pode ou não tratar. Eu coloco, na minha proposta, quais artigos eu quero mexer. Não vai poder fazer uma disputa política a respeito desses aspectos.
O ministro Gilmar Mendes, presidente do TSE, tem defendido uma reforma política urgente. Entra na sua proposta ou são alternativas conflitantes? Eu defendo discutir sistema tributário, pacto federativo e organização dos poderes, que envolve um pouco de reforma política. Agora, quando Mendes ou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso falam de reforma política, eles estão tratando de sistema eleitoral, não de uma reforma. Reforma do sistema eleitoral para deputados não é reforma política. Você reduz o tamanho da farra, do prejuízo do povo, mas não a elimina.
O senhor disse recentemente que os ministros citados em delações premiadas deveriam deixar o cargo. A pergunta é: por que fariam isso? O presidente Michel Temer disse em um determinado momento que só afastaria os ministros que tenham sido denunciados e cujas denúncias tenham sido acolhidas pela Justiça. Esses ministros têm o dever de devolver o obséquio, dizer “presidente, nós vamos nos afastar”, porque dificilmente o presidente pode voltar atrás naquilo que ele falou. A presença deles eleva o custo das alianças, e a desconfiança em torno do governo fica além do merecido. Você pode demonstrar os números que quiser em uma preliminar, que o povo não vai querer olhar, porque não confia. Isso tem importância? Para mim, tem. Outra frase que se tem dito é “aproveita a impopularidade e faz as reformas”. Aproveitar a impopularidade, não. Em uma democracia, é preciso estar afinado com a opinião pública.
Foto: Cristiano Mariz/VEJA