As primeiras bruxas retratadas pela ficção incorporavam os estigmas herdados da caçada de Salém. “Eram mulheres velhas, feias e assustadoras, que misturavam pedaços humanos em caldeirões e usavam feitiços para machucar os outros”, explica a professora de Idade Média e história das bruxas Marion Gibson, da Universidade de Exeter, do Reino Unido. O filme sueco-dinamarquês Häxan - A Feitiçaria Através dos Tempos, de 1922, misturava documentário com momentos encenados para falar sobre as superstições que construíram tal imagem. Um dos personagens nem mesmo se parece humano, de tão deteriorado pelos rituais satânicos.
Em 1937, o conto clássico dos Irmãos Grimm, Branca de Neve e os Sete Anões, ganhou uma versão cinematográfica pelas mãos da Disney. A trama deu o chute inicial no processo de redenção das bruxas, ao colocá-las como mulheres que se sentiram injustiçadas e, então, recorreram à feitiçaria— mesmo que por motivos supérfluos, como ser a mais bonita para a Madrasta Má. Outros filmes do filão de animações do estúdio, como A Bela Adormecida (1959) e A Bela e a Fera (1991) perpetuaram essa tendência.
O Mágico de Oz chegou ao cinema em 1939 apresentando as duas faces das bruxas: a bondosa Glinda, e a maléfica Elphaba, a Bruxa Má do Oeste. Enquanto Glinda tem feições marcadas como angelicais — cabelo loiro em cachos, roupas de cores claras cintilantes, e voz de mocinha —, Elphaba desfila com a pele verde, nariz curvado e uma verruga no meio do queixo, aparência acompanhada de um chapéu preto pontudo e um caráter para lá de duvidoso. A trama foi inspirada no livro de mesmo nome de 1901, de L. Frank Baum, um ex-metodista que abraçou a teosofia, doutrina religiosa sincrética, que mistura elementos filosóficos e místicos, visíveis em sua obra.
Após dar início à luta pelo direito ao voto e à propriedade privada, as mulheres encararam o que ficou conhecido como segundo onda do feminismo, nos anos 1960, nos Estados Unidos. O movimento pedia, entre outras coisas, por igualdade no mercado de trabalho, direitos reprodutivos e liberdade sexual. Na ficção, as bruxas ficaram no 8 ou 80 para espelhar o momento político. Na TV, que tinha acabado de se popularizar nos lares americanos, chegou a simpática A Feiticeira (1964), com uma bruxa que se casa com um humano e se torna uma divertida dona de casa — herança direta do filme Casei-me com uma Feiticeira (1942). Enquanto A Feiticeira divertia dentro de casa, no cinema, as bruxas tocavam o terror em uma resposta mais agressiva ao feminismo. O Bebê de Rosemary (1968) explora a questão das seitas satânicas, assim como As Bruxas (1967) e As Bodas de Satã (1968), títulos que serviram de alerta às mulheres, para que não flertassem com hábitos fora dos bons costumes.
Com a chegada das fitas VHS, nos anos 1980, os filmes sobrenaturais conquistaram um público mais jovem. A personagem, então, aproveitou para abraçar uma roupagem sensual, refletindo o momento da moda, que criou ícones como Madonna e Cyndi Lauper. Destacam-se a boazuda Elvira (Cassandra Peterson) de Elvira: A Rainha das Trevas (1988) e As Bruxas de Eastwick (1987), filme protagonizado pelo trio Cher, Susan Sarandon e Michelle Pfeiffer e que mais fala sobre liberdade sexual do que de magia — com um irônico Jack Nicholson como o diabo disfarçado. Em ambos os títulos, mulheres independentes e de vida sexual ativa precisam superar a repressão de uma sociedade conservadora.
Na virada dos anos 1980 e 90, o cinema americano viu alguns de seus filmes de terror censurados pelo governo, considerados “perturbadores”. A resposta dos estúdios veio em títulos como Abracadabra (1993), cujas personagens caricatas — com chapéus pontudos, roupas medievais e nariz comprido — beiravam a paródia. “Quando um gênero irrita o governo por ser muito sangrento ou sexual, os cineastas usam do melodrama e da comédia para expandir a produção ao limite”, diz a professora.
Tia Morgana (Rosi Campos), do Castelo Rá-Tim-Bum, adiciona um quê de brasilidade ao histórico de bruxaria da ficção. No folclore do país, as bruxas dão lugar a personagens como o Saci e a Mula Sem Cabeça, uma vez que não há, na história brasileira, grandes manifestações de feitiçaria, como nos Estados Unidos. Morcegos, ratazanas, baratinhas e companhia a parte, a personagem foi inspirada na sua xará dos contos do rei Arthur, As Brumas de Avalon, uma feiticeira cujo poder rivaliza com Merlin.
Após os excessos dos anos 1980 e da rápida “caça às bruxas” do governo americano ao cinema de terror, o fim da década de 90 se mostrou um período menos retrógrado. “As pessoas perceberam que acusações de bruxaria e a associação de bruxas como criaturas do mal no passado foram formas de atacar as mulheres”, explica Marion. Só então ser uma feiticeira se tornou algo, por assim dizer, normal. Sem a necessidade do filtro da sátira ou da sensualidade. A ideia pode ser vista na série Jovens Bruxas (Charmed, em inglês, 1998-2006), em que três belas e boas irmãs com poderes defendem a humanidade de feiticeiros mal-intencionados. Fórmula parecida foi usada no filme De Magia a Sedução (1998), com Sandra Bullock e Nicole Kidman.
Em 1999, o cinema de terror de baixo orçamento ganhou títulos que marcariam a história do cinema, caso de A Bruxa de Blair, filme que nem mostra a figura da tal bruxa, mas assusta apenas pelo medo do desconhecido. Na vida real, as pessoas encaravam o clima de incerteza da virada para os anos 2000 — havia quem acreditasse que seria o fim dos tempos.
Criado por J. K. Rowling, em uma série de livros iniciada em 1997, Harry Potter chegou ao cinema em 2001 e se tornou um fenômeno pop, que dominou as salas até 2011, quando estreou seu episódio final. O protagonista do sexo masculino, uma quebra para o hábito de colocar mulheres no papel da bruxa, reforçou o processo de humanização do personagem mágico. “No mundo de Harry Potter, ter magia não qualificava ser do bem ou do mal. Os vilões eram vilões por suas ideologias racistas, fascistas. O desejo pela magia era comparável à ambição pelo poder”, pontua Marion.
Após décadas de apedrejamento, as bruxas ganharam um lugar de fala. Em 2003, estreou na Broadway o musical Wicked: A História Não Contada das Bruxas de Oz, que se aprofundou na clássica trama do Mágico de Oz, dizendo que, na verdade, as duas bruxas sempre foram amigas e a esverdeada Elphaba foi vítima de muitas injustiças. O mesmo caminho seguiu a série Once Upon a Time (2011-2018), que reimaginou os contos de fadas, dando verniz à Rainha Má, resultado de uma mãe abusiva e uma desilusão amorosa. Malévola, de 2012, com uma chifruda Angelina Jolie, fez o mesmo, e deu à personagem sua chance de explicar por que amaldiçoou a Bela Adormecida. Em todos os casos, é difícil não ficar do lado da vilã.
Em um movimento cíclico, o temor das bruxas associadas a figuras satânicas é algo que vai e volta. A Bruxa, de 2016, é um exemplo recente, ao revisitar os receios do século XVII e a velha ideia de seres sobrenaturais embrenhados na floresta. Melisandre, de Game of Thrones, seguiu o mesmo caminho e chegou, inclusive, a queimar uma menina viva como parte de um ritual. Seriam as personagens um reflexo dos novos tempos, em pleno século XXI? Para a especialista em história das bruxas, sim. “O sexismo e a perseguição de minorias continua crescendo. Quando políticos como Donald Trump pregam uma ‘caças às bruxas’, com grupos disseminando o ódio e perseguindo outros, é importante olhar para a história a se perguntar: nós evoluímos alguma coisa?”
O Mundo Sombrio de Sabrina é uma mistura de boa parte dos elementos da história das bruxas, desde noções clássicas, como rituais na floresta, até ideais feministas. A personagem, em si, é uma dualidade: meio-bruxa, meio-mortal. Sabrina apresenta a versão millennial da feiticeira. Nas vésperas de seu “batismo”, em que deve entregar sua alma para o Senhor das Trevas, ela usa os poderes para fazer justiça às amigas oprimidas pela sociedade patriarcal. A jovem não hesita em amaldiçoar colegas que fazem bullying com a amiga transgênero, ou o diretor da escola, quando ele bane livros escritos por mulheres da biblioteca. Apesar de diferentes, a Sabrina de 2018 provocaria orgulho na sua versão alegre da TV em 1996.