Entrevista | H.W. Brands

O gigante pragmático

 

Atuar em Hollywood, participar da direção de uma das maiores empresas do mundo, desbravar a política a ponto de, em menos de duas décadas, alcançar o posto de presidente, além de ser um dos principais artífices do fim da Guerra Fria. Realizar um dos feitos descritos acima já comporia uma vida especial. Alcançar todos eles aconteceu apenas com Ronald Reagan (1911-2004). Não à toa, o historiador americano H.W. Brands considera que o calhamaço de 805 páginas que escreveu sobre o ex-presidente, que acaba de ser lançado nos Estados Unidos, é modesto para fazer jus à sua história. Em Reagan: The Life, Brands conta o que encontrou ao vasculhar seus diários e arquivos guardados pela Agência de Segurança Nacional, que só vieram a público recentemente. Trata-se da primeira biografia feita com base nesses documentos. Brands conclui que Reagan foi um gigante: “Ele tinha o poder de engajar as pessoas e costurar alianças sem trair seus princípios. Não se pode entender a história recente sem conhecer Ronald Reagan”. Leia trecho da entrevista do historiador a VEJA.

Reagan acreditava no livre mercado, na presença pequena do Estado na economia e na desburocratização. Se conservadorismo é, por definição, a defesa desses ideais, ele era conservador”

H.W. Brands

O MUNDO QUE ELE CRIOU

Reagan está entre os maiores presidentes dos Estados Unidos pelo impacto que teve no campo da economia e da política internacional. Vivemos em um mundo que funciona sob as regras que ele criou. Sob essa ótica, o seu grande contendor no século XX é Franklin Delano Roosevelt. Alguns dirão que Roosevelt foi um presidente terrível, que abriu as portas do país para o socialismo ao criar um sistema de bem-estar social. Dirão coisas semelhantes sobre Reagan. Mas mesmo os que são críticos da política que eles criaram têm de reconhecer que ainda vivemos sob seu impacto. Poucos presidentes deixam marcas desse tipo. Reagan é um deles.

de democrata a republicano

O primeiro envolvimento político de Reagan foi no campo democrata. Sua transição para o campo conservador se deu em dois passos. Primeiro, nos anos 50, houve a “caça às bruxas” promovida pelo senador Joseph McCarthy, que tentou identificar simpatizantes do comunismo em diversos setores da vida americana, inclusive no meio artístico. Reagan era ator em Hollywood e tinha um cargo importante no Screen Actors Guild (SAG), o sindicato da categoria. Reagan teve embates duros com a ala socialista do sindicato e foi acusado de ser dedo-duro. Chegaram a ameaçá-lo fisicamente. E isso o deixou com um ranço incancelável em relação às ideias socialistas e a tudo o que, no partido democrata, remetesse ao socialismo. Outro momento decisivo para sua mudança partidária foi quando abandonou a carreira em Hollywood e foi trabalhar na General Electric como alto executivo, uma espécie de porta-voz. Nesse período, entre as décadas de 1950 e 1960, Reagan vivenciou as dificuldades impostas aos negócios nos Estados Unidos. Havia ainda efeitos do New Deal na economia americana que prejudicavam a vida empresarial. E, por último, como Reagan recebia altos salários, também pagava as mais altas alíquotas de imposto. Por isso, desenvolveu ojeriza às mordidas profundas do Fisco.

MENOS ESTADO - Em seu discurso de posse, em 1981, Reagan defende a redução da presença do Estado na economia

Conservador, MAS NÃO INTRANSIGENTE

Reagan acreditava no livre mercado, na presença pequena do Estado na economia e na desburocratização. Se o conservadorismo, por definição, é a defesa desses ideais, ele era conservador, e seu discurso pregava exatamente isso. Mas o Reagan dos discursos era diferente do Reagan da política. O político sabia transitar com tranquilidade entre pessoas de diferentes visões. Ele sabia que não é possível governar apenas com ideias, que é preciso pactuar. Assim, apesar de ser lembrado como um presidente que cortou impostos, ele também se viu obrigado a elevar taxas que deixariam os republicanos de hoje chocados. Também fez da reforma da imigração um ponto-chave de seu mandato. Ele acreditava que qualquer cidadão que estivesse trabalhando e pagando impostos nos Estados Unidos tinha o direito de regularizar sua situação, caso estivesse ilegal. Essa ideia não estava muito alinhada com o que pensavam os republicanos. Reagan foi ainda responsável por aumentar a contribuição previdenciária, enquanto, hoje, muitos republicanos falam em desmantelar a previdência. Reagan agia como exímio negociador, com um pragmatismo ímpar. Ele não hesitava em fazer concessões aos democratas em nome de um objetivo maior. Hoje em dia, num Congresso americano em que negociar é sinônimo de fraqueza para muitos republicanos, essa faceta mais moderada de Reagan causa desconforto sempre que é lembrada. Quanto aos integrantes do Tea Party, a ala mais radical do republicanismo, eles dizem inspirar-se no legado de Reagan, mas só entenderam metade do legado. Não sabem o que é governar.

política externa das grandes questões

Reagan tinha uma visão muito clara de que a União Soviética era um “império do mal” e tinha de ser derrotada. Dizia isso com clareza em seus discursos. Mas, na hora de negociar com Mikhail Gorbachev, foi pragmático. Seus talentos de negociador levaram à construção de tratados, em especial o de 1987, que selava as bases para o fim da Guerra Fria. Sua dedicação a esse tema se explica pelo fato de ser o assunto mais importante para os Estados Unidos na época. Tomemos, por contraste, sua política para o Oriente Médio. O episódio que ficou conhecido como Irã-­Contras foi um dos maiores fracassos de seu governo. Descobriu-se que oficiais dos Estados Unidos negociavam armas com o regime do aiatolá Khomeini em troca de apoio para libertar reféns americanos no Líbano. Na prática, sua administração reconheceu fazer acordos com terroristas. Foi um escândalo. Isso aconteceu porque, para Reagan, o Oriente Médio, naquele momento, não era prioridade. Não era a grande questão na política externa americana. E esse tipo de questão ele relegava a subordinados. Isso evidencia uma característica muito importante de Reagan: ele não era um bom gestor, não era um tipo de líder preocupado com os detalhes. Dedicava sua atenção às questões mais amplas.

O PROBLEMA DA AMÉRICA LATINA

Reagan agiu de forma contundente para financiar o combate a governos de esquerda em El Salvador, na Nicarágua, em Granada. O que contava então era a Guerra Fria. Se fosse eleito presidente hoje, não tenho dúvida de que Reagan pouco se envolveria com a América Latina, simplesmente porque não há nenhuma potência inimiga por trás desses países, como ocorria com a União Soviética. Ou seja, não há nenhum país por trás da Argentina ou da Venezuela que possa se beneficiar do discurso antiamericano de seus líderes.

 
 

RELAÇÃO DELICADA - Reagan gostava da primeira-ministra britânica, e também temia contrariá-la. Quando o fazia, era em tom de desculpa

REAGAN, O PENSADOR?

Reagan citou o economista austríaco Friedrich von Hayek em muitos discursos. Concordava com os preceitos do liberalismo econômico defendidos por ele e às vezes procurava em seus livros um apoio, uma segunda opinião. Mas a verdade é que ele não tinha um conhecimento profundo de suas teorias. Se lhe fizessem perguntas mais específicas, não saberia o que dizer. A proximidade com Hayek foi uma história que os assessores econômicos de Reagan espalharam para lhe atribuir uma faceta mais intelectual. Reagan não era um grande apreciador de filósofos e pensadores. Ele não era um teórico de nada. Ele gostava de fazer política.

O bom humor era o segredo de seu sucesso como líder. Mas esse bom humor não estava relacionado às emoções. Quem conviva com ele o classificava como frio e desapegado”

H.W. Brands

a temida Margaret Thatcher

É verdade: Reagan temia a primeira-­ministra britânica Margaret Thatcher. Ela tinha uma personalidade poderosíssima e exercia esse poder sobre ele. A tal ponto que Reagan se sentia mais confortável confrontando o russo Mikhail Gorbachev. Um exemplo: quando os Estados Unidos adotaram uma posição inicialmente neutra em relação ao conflito entre Inglaterra e Argentina sobre as Ilhas Malvinas, Thatcher se enfureceu, e Reagan, mais que depressa, mudou de ideia. Pessoas que conviveram com Reagan relatam que, sempre que ele atendia uma ligação de Thatcher e, de alguma forma, tinha de contrariá-la, assumia um tom de desculpa. Coisa que ele não fazia com nenhum outro líder mundial. Mas também é verdade que ele gostava muito dela. Justamente por isso não queria desapontá-la. Muitas vezes, ele a via como sua própria consciência em assuntos de política externa. Como uma guia. Eles concordavam em muitas coisas. E, como a Inglaterra sempre foi uma grande aliada dos americanos, ele se sentia na obrigação de não estragar essa relação.

TUDO POR NANCY

Reagan era um político muito irônico. Gostava de piadas e de fazer discursos divertidos. O bom humor era um dos segredos de seu sucesso como líder. Quando aparecia na TV, sempre estava sorrindo, com um aspecto afável. Era o tipo de homem que as pessoas tinham vontade de conhecer melhor, que julgavam ser uma companhia agradável, uma pessoa afetuosa. Mas esse bom humor não estava relacionado às emoções. Quem convivia com ele o classificava como frio e desapegado. Todas as suas emoções eram direcionadas a uma única pessoa: sua esposa, Nancy. Nem mesmo com os filhos ele era muito afetuoso. Reagan sempre relutou muito em demonstrar sentimentos e só conseguia dar esse passo com Nancy. Isso tem muito a ver com sua infância. Seu pai era alcoólatra. E desde muito cedo ele aprendeu que não podia contar com algo com que, em teoria, todos podemos ter, que é o apoio paterno. Isso fez com que Reagan desenvolvesse uma desconfiança aguda e não conseguisse se relacionar com ninguém de forma mais profunda. Era um homem extremamente fechado. Exceto com Nancy. Ela foi o amor de sua vida e sua única amiga. Como direcionava a ela toda a energia emocional que possuía, não sobrava espaço para outras pessoas.

BOM HUMOR - Reagan sabia como poucos equilibrar a crítica e a ironia em seus discursos sobre Cuba e a União Soviética