Em busca de acolhimento

VEJA acompanhou imigrantes e refugiados venezuelanos desde a fronteira entre a Venezuela com o Brasil até um novo lar

Todos os dias, cerca de 250 venezuelanos cruzam a fronteira de seu país com o Brasil para fugirem do regime de Nicolás Maduro e da miséria que atinge mais de 90% da população. Desde 2015, quando a crise política e econômica se agravou, estima-se que cerca de 170 000 imigrantes tenham se estabelecido no Brasil. Somente em 2018, 90 000 pessoas ficaram no território brasileiro e foram feitas 61 681 solicitações de refúgio apenas por venezuelanos. No total, o Brasil recebeu 80 000 pedidos para o reconhecimento da condição de refugiado. De acordo com o Acnur e a OIM, as agências da ONU para refugiados e para a migração, mais de 4 milhões de pessoas já deixaram a Venezuela.

Ao mesmo tempo em que os números absolutos sobre os fluxos globais cresceram – em 2015, 244 milhões de pessoas eram migrantes internacionais –, a proporção em relação ao aumento da população vem se mantendo estável e hoje representa 3,3% da média global. Em 1990, os emigrantes representavam 2,9% da população. Segundo a pesquisa Perigos da Percepção, de 2018, realizada pelo Instituto IPSOS, o Brasil é uma das nações que mais superestima a população de imigrantes no país. Enquanto a maioria acredita ser de 30% a presença de estrangeiros, a realidade é que eles compõem cerca de 0.4% da população. Além disso, a entrada de estrangeiros é inferior à saída de brasileiros. Segundo a ONU, na América do Sul o Brasil é o segundo país com maior população que vive fora da região. São cerca de 1,6 milhão de brasileiros no exterior.

VEJA entrevistou mais de 80 imigrantes venezuelanos no Brasil e acompanhou as jornadas das famílias em diferentes momentos do caminho até um novo lar. A Operação Acolhida, que recebe as pessoas desde Pacaraima, em Roraima, passou a focar no processo de interiorização. Com a concentração de pessoas em Boa Vista, capital do estado, ficou claro que a necessidade era distribuir os imigrantes entre os outros municípios brasileiros. Desde 2018, mais de 15 000 venezuelanos já foram interiorizados e outros 16 000 estão cadastrados à espera de uma oportunidade.

Pacaraima (RR): cidade brasileira fronteiriça com o vizinho sul-americano

Santa Elena de Uairén, Venezuela

São quase 20 quilômetros que separam as cidades fronteiriças Santa Elena de Uairén, na Venezuela, de Pacaraima, no Brasil. Tanta proximidade fez com que naturalmente se estabelecesse um fluxo de troca entre os municípios. Até cinco anos atrás, era mais comum os brasileiros se beneficiarem com o país vizinho do que o contrário. Viagens curtas para abastecer os veículos com gasolina, antes praticamente de graça na Venezuela, que tem a maior reserva de petróleo no mundo, era uma das benesses. Agora a situação se inverteu.

Diariamente, a cada ônibus que chega com 30 pessoas, 20 vão para o Brasil. Na rodoviária, motoristas começam a gritar: “linha Pacaraima, linha Pacaraima!”, que é o serviço que leva os migrantes recém-chegados até o ponto mais próximo com a fronteira do Brasil. Normalmente, cobra-se 15 reais por pessoa – quase metade do valor de um salário mínimo na Venezuela. Nas fachadas dos pequenos comércios da cidade, anúncios em papel sulfite mostram as iguarias disponíveis à venda: "sim! temos frango e queijo! aproveite!". Muitas vezes, os produtos são comprados no Brasil e revendidos na Venezuela.

Todos os dias, imigrantes carregam os poucos pertences que têm em busca de refúgio

Pacaraima, Roraima

Em meio ao clima amazônico, os termômetros costumam marcar (ou até superar) os 30ºC, temperatura amenizada por pancadas de chuva típicas da região, que vão e vêm ao longo do dia e que são responsáveis pela constante umidade do ar que se sente na pele. Quando os imigrantes chegam ao primeiro município brasileiro, eles têm à disposição uma estrutura montada pela Operação Acolhida, a força-tarefa humanitária em Roraima do governo federal para responder ao aumento do fluxo migratório. Liderada pelas Forças Armadas, e sob coordenação do General Eduardo Pazuello, ela é formada por 16 órgãos do governo federal, agências da ONU e tem a colaboração de ONGs e empresários. Em um posto de triagem, os venezuelanos declaram se são imigrantes, se querem entrar com um pedido de refúgio ou se estão apenas de passagem pelo Brasil. Depois, têm à disposição 12 vacinas, como de febre amarela influenza, entre outras, e recebem a documentação para ficarem de forma legal no país, com CPF e carteira de trabalho.

Postos de triagem emitem a documentação necessária para a permanência legal no Brasil

Por ser o primeiro ponto de parada depois de uma longa viagem dentro do país que foi tomado pela miséria, muitos venezuelanos chegam em condições extremamente vulneráveis. Elas apresentam sinais de desnutrição, não têm medicamentos para doenças que precisam de acompanhamento contínuo e muitas chegam sem documento de identidade algum, pois o governo tem dificuldade até mesmo para a emissão de papéis oficiais. Aqueles que não conseguem seguir viagem para Boa Vista tentam uma vaga no abrigo BV8, com capacidade para 600 pessoas. A ideia é que a estadia em Pacaraima seja de três dias a três meses, no caso das pessoas em maior vulnerabilidade, como mães solteiras com muitos filhos ou pessoas com necessidades especiais. Estima-se que outras 500 fiquem em situação de rua até conseguirem partir para o próximo destino.

Famílias percorrem a pé o quilômetro final entre Venezuela e Brasil em busca de um futuro melhor

Aqueles que não conseguem uma vaga em abrigos dormem nas ruas

Dia após dia, filas se formam nos postos de atendimento para os imigrantes

Crianças e adolescentes são quase a metade da população de refugiados no mundo

Boa Vista, Roraima

Com o constante fluxo de pessoas que chegam à capital do estado, cerca de 7 000 estão distribuídos entre os 11 abrigos da cidade, 3 000 vivem nas ruas e em torno de 18 000 moram em casas alugadas. Junto ao esforço do poder público, o empresário Carlos Wizard Martins decidiu, em agosto passado, se dedicar à causa da interiorização ao longo de dois anos. Wizard tomou a frente da parceria com as companhias aéreas para a liberação de assentos vazios para os venezuelanos e faz a intermediação com líderes comunitários e empresários de diversas regiões para o acolhimento das famílias. Para facilitar o processo, lançou uma plataforma online, o Brasil do Bem, por meio da qual qualquer pessoa pode ajudar um refugiado venezuelano. Sem a parceria com as companhias aéreas, o governo dependia exclusivamente das aeronaves da Força Aérea Brasileira.

Em Boa Vista, as Forças Armadas criaram uma estrutura para conduzirem um trabalho semelhante ao de um RH. Tiram fotos dos imigrantes, constroem um currículo, elencam as principais habilidades de cada um e sondam empresas em todo o Brasil para ver se há uma vaga disponível. As entrevistas de emprego são feitas por vídeo e, quando necessário, os militares emprestam equipamentos para testes práticos, como de motorista. Contudo, o tempo até o encaixe entre um venezuelano e uma empresa pode levar meses.

No abrigo indígena Pintolândia, as etnias Eñepa e Warao mantêm suas tradições

Para o professor e doutor João Carlos Jarochinski, coordenador do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima, a interiorização não pode se tornar uma transferência de demanda social. “O trabalho tem que ser decente, a pessoa tem que ser integrada à sociedade e os serviços públicos, como escolas e atendimento de saúde, têm que ser melhorados para absorverem a demanda”, afirmou. Além disso, Jarochinksi pensa no futuro da região da fronteira. “A Acolhida não vai durar para sempre. Precisamos criar uma estrutura permanente, pois o fluxo continuará durante alguns anos”, disse.

Em Boa Vista, cerca de 7 000 pessoas vivem em 11 abrigos na cidade

O complexo de abrigos Rondon I, II e III é o maior da América Latina, com 2 200 pessoas

Ginásios e galpões foram adaptados para receberem a população de imigrantes e refugiados

Os venezuelanos podem se cadastrar para concorrerem a vagas de trabalho em diferentes municípios do Brasil

Hércules

No sábado do 20 de julho em Boa Vista, por volta das 8h, um Hércules C-130 da FAB foi preparado para um voo até Florianópolis, capital de Santa Catarina, a quase 5 000 quilômetros de distância. Símbolo da aviação, o modelo foi desenvolvido em 1951 pela força aérea dos Estados Unidos para servir como aeronave de guerra, em resposta à primeira crise com a União Soviética. Na manhã de julho, 63 estrangeiros, entre eles 20 crianças, embarcaram na aeronave em missão de paz. Sem oferecer conforto, o avião tem a função de transportar tropas, cargas, combustível e operar em condições de busca e salvamento. No ano passado, o Hércules foi integrado ao igualmente hercúleo esforço da Operação Acolhida na missão para destinar os refugiados venezuelanos a outras cidades do Brasil.

Mesmo embarcados, a maioria dos imigrantes não tem conhecimento sobre o local para onde estão se mudando

Durante as 7h30 de voo, os imigrantes puderam descansar nos assentos maleáveis de tecido da aeronave militar. Antes da decolagem, a comandante convidou os passageiros a visitarem a tripulação na cabine. As crianças mal puderam esperar para corresponder ao convite e chegaram a fazer fila para enxergar o mundo por outra perspectiva. Antes do olhar de deslumbre, o caminho até o embarque foi uma jornada digna de um herói da mitologia grega. A maioria dos passageiros não fazia ideia do que os aguardava em Santa Catarina. Escolheram o destino por ser a opção possível.

Aeronaves da Força Aérea Brasileira são usadas na operação para interiorizar os venezuelanos

Entre os cerca de 15000 que já saíram de Boa Vista, muitos voaram pela primeira vez com a FAB

O Hércules C-130, uma aeronave de guerra, foi desenvolvido para transportar tropas e cargas

As viagens de interiorização são feitas por vagas de emprego, reuniões familiares e sociais ou transferências para outros abrigos

Dourados, Mato Grosso do Sul

Um dos exemplos de interiorização é o município de Dourados, no Mato Grosso do Sul, que já recebeu mais de 700 pessoas. Entre eles, mais de 400 foram contratados pela empresa de alimentos Seara, uma das unidades da JBS. Há dificuldade em encontrar mão de obra e muitos brasileiros não querem ocupar os postos. No caso das vagas preenchidas pelos venezuelanos, a maioria recebe um salário mínimo. O processo de recrutamento é feito à distância, com entrevistas por vídeo e são contratados sob a legislação trabalhista brasileira, com carteira assinada e todos os direitos garantidos.

Por mais que os imigrantes representem apenas 3,3% da população, eles contribuíram com 9,4% do PIB global em 2015. No ano passado, as remessas financeiras enviadas a países em desenvolvimento, normalmente os seus países de origem, aumentaram em 11%, representando 528 bilhões de dólares, volume maior do que o investimento estrangeiro direto.

Anthony Allen, 26 anos, ficou três meses longe da família até conseguir se reencontrar com todos

Anthony Allen, de 26 anos, foi o primeiro de sua família a chegar em Dourados, no Mato Grosso do Sul. No dia 28 de junho, sua esposa, com os três filhos do casal, e sua cunhada, junto com o marido e cinco filhos, se reencontraram com Allen depois de três meses de distância. Enquanto Allen começou a trabalhar em Dourados, na Seara, as outras onze pessoas de sua família estavam morando na rua em Boa Vista. Para chegarem até lá, o cunhado de Allen, Henry Soledad, 36 anos, fez o trajeto entre Pacaraima e Boa Vista, de mais de 200 quilômetros, a pé e acompanhado de seu filho mais velho, de 12 anos. As mulheres e as crianças mais novas conseguiram carona. Depois da exaustiva jornada, a família pode enfim descansar e recomeçar a vida.

Antes da chegada dos venezuelanos, uma igreja realizou campanhas de arrecadação para doar itens básicos, como roupas e sapatos

Casais e famílias se reencontraram depois de meses separados

Enquanto Allen estava em Dourados, sua família dormiu na rua por três meses em Boa Vista

Ruselis Hernandez, de 27 anos, deu à luz em Boa Vista; Luis, 29, fez a mudança primeiro para começar a trabalhar e só conheceu a filha com um mês de vida

Reportagem: Jennifer Ann Thomas e Jonne Roriz
Fotos: Jonne Roriz
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