Um Rio de Histórias

Habituada a grandes eventos, a cidade sempre soube driblar as crises, mas nunca enfrentou desafio tão grande como a Olimpíada de 2016
Sérgio Rodrigues

A chegada da Família Real, em 1808, tirou o Rio do provincianismo

O prefeito Eduardo Paes afirmou, em entrevista publicada pelo jornal inglês The Guardian no último dia 11, que os Jogos Olímpicos são “uma oportunidade perdida” para o Brasil. A declaração escancara sua intenção de se excluir do quadro, atribuindo ao pessimismo razões alheias à esfera municipal: “Com todas essas crises econômicas e políticas, com todos esses escândalos, não é o melhor momento para estar sob os olhos do mundo”. É inegável que a cidade-sede dos Jogos de 2016, acostumada ao vedetismo por suas belezas naturais, tem aparecido aos “olhos do mundo” sob luzes desfavoráveis. Discriminar o que é desfavor federal, esta­dual e municipal seria um exercício vadio a poucos dias da cerimônia de abertura. Obras atrasadas e de qualidade duvidosa — ou comprovadamente ruim, como a da ciclovia de São Conrado, da alçada de Paes, que a primeira ressaca derrubou em abril — somam-­se ao nervosismo internacional com a epidemia de zika, a uma economia estadual falida e ao descontrole da segurança pública, entre outros apuros, para pressagiar uma Olimpíada tensa. Será?.

Exposição Internacional de 1922, no Rio: o país presidido por Epitácio Pessoa estava em crise

“Terá defeitos esta minha boa cidade natal, reais ou fictícios, nativos ou de empréstimo; mas eu execro as perfeições”, escreveu Machado de Assis, em crônica de 1894. Pessimista em seu olhar sobre a natureza humana, o maior escritor brasileiro — nascido no Morro do Livramento, no centro do Rio — teria uma lição de otimismo a dar a Paes e a todos os que acreditam que a “oportunidade” olímpica já esteja derrotada. Para entender o otimismo machadiano, não é preciso fechar os olhos aos problemas atuais, numerosos e constrangedores pelo que revelam do subdesenvolvimento material e mental do país. Basta abrir os olhos para a história de uma cidade habituada a sediar grandes eventos e a conviver simultaneamente com precariedades crônicas e desigualdades sociais de pesadelo. Desde a chegada da Família Real, em 1808, que transformou o então provinciano Rio de Janeiro em capital de um reino europeu, passando pela Exposição Internacional de 1922, pela Copa do Mundo de 1950 e pela Eco-92, a cidade nunca apresentou aos “olhos do mundo” um perfil harmônico. Mas sempre deu conta do recado e, em cada uma dessas oca­siões, aos trancos, cresceu.

O caso de 1922 é emblemático. O país estava em crise quando, às 16 horas do dia 7 de setembro, o presidente Epitácio Pessoa inaugurou uma suntuosa exposição internacional em comemoração ao centenário da independência. A festa duraria até junho do ano seguinte. Cerca de 10 000 expositores, representando catorze países e todos os estados brasileiros, distribuíam-se por duas dezenas de pavilhões plantados no centro da capital federal. Tratava-se de uma versão mais modesta da Exposição Universal que, em 1889, comemorando os 100 anos da Revolução Francesa, havia embelezado Paris ainda mais, começando por fincar na cidade uma torre chamada Eiffel. Nenhum dos palácios cariocas erguidos ou reformados para a ocasião era tão vistoso, mas a herança de 1922 inclui marcos urbanos como o Museu Histórico Nacional (ex-Pavilhão das Grandes Indústrias) e o Petit Trianon, sede da Academia Brasileira de Letras (ex-Pavilhão Francês). “Do Rio de Janeiro de 1822 fizemos, durante o Império e principalmente na República, a cidade moderna que atualmente se honra de hospedar-vos, sem as epidemias dizimadoras que eram com razão o terror do estrangeiro”, discursou Pessoa. Falava sobretudo de varíola e febre amarela: a epidemia de zika não estava no horizonte.

Um passeio em 360 graus pelas instalações construídas especialmente para os Jogos do Rio de Janeiro

A luta ainda aberta entre modernização e insalubridade não é a única nota comum entre 1922 e o presente. Havia a suspeita de que as intervenções urbanísticas feitas em nome do progresso prejudicassem a maioria da população: prefeito nomeado com a missão de comandar os preparativos da festa, o engenheiro Carlos Sampaio tocara um pacote de obras que incluía a derrubada de parte do Morro do Castelo, considerado foco de doenças, com o despejo de milhares de moradores de baixa renda. Desse modo continuava a obra que o prefeito Pereira Passos tinha iniciado nos primeiros anos do século, ao pôr abaixo cortiços para rasgar a moderna Avenida Central (atual Rio Branco). Quem fosse desalojado que se arranjasse nos morros restantes, onde cresciam as primeiras favelas, chamadas pelo poeta Olavo Bilac, em crônica de 1907, de “uma cidade à parte”.

A confusão política era ainda maior. Se o governo fluminense decretou estado de calamidade pública em junho, o Brasil de 1922 estava em estado de sítio. A jovem oficialidade contestava a eleição do situacionista Arthur Bernardes, em março daquele ano. Em julho, no episódio que entrou para a história como Dezoito do Forte, um grupo de oficiais havia marchado na Praia de Copacabana contra as tropas legalistas e sido fuzilado em combate (sobreviveram apenas dois — Eduardo Gomes e Siqueira Campos). No mesmo ano que vira nascer o Partido Comunista do Brasil, surgia o tenentismo: a República Velha começava a agonizar. E, se ainda persistir a tentação de ver aquele Rio como cidade idílica, bafejada pela perfeição que o saudosismo atribui ao tempo que não vivemos, recomenda-se a leitura de uma carta azeda enviada em setembro de 1922 pelo escritor Lima Barreto a um amigo pernambucano: “O Rio não dá nada... As bibliotecas vivem às moscas; os museus, os concertos, as exposições de pintura, os arrabaldes pitorescos não têm nenhuma frequência...”.

Em 1950, o Maracanã, então o maior estádio do mundo, foi inaugurado antes de ficar pronto

Atribuir ineditismo absoluto ao buquê de problemas — políticos, econômicos, sociais, até de humor — que afligem os Jogos do Rio é ignorar a história. Sim, o trabalho de erguer o então maior estádio de futebol do mundo levou, entre 1948 e 1950, apenas 22 meses, o que parece sugerir que nossa construção civil perdeu eficiência desde então. Mas é preciso lembrar que o Maracanã, saudado pelo Jornal dos Sports como “uma prova da capacidade realizadora do brasileiro”, foi inaugurado para a Copa de 1950 antes de ficar pronto: as obras finais de acabamento só viriam anos depois. Para garantir a segurança dos 100 chefes de Estado presentes na Conferência da ONU sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, em 1992, um esquema especial coordenado pelo Exército mobilizou cerca de 25 000 homens — e a criminalidade durante o evento caiu. Hoje a dose é maior, envolvendo 85 000 agentes de segurança, porém o remédio é o mesmo. Como a história não existe para ser repetida, mas para que se aprenda com ela, nada disso exime ninguém de responsabilidade. Pelo contrário: o investimento recorde feito na cidade, em torno de 40 bilhões de reais, dá a dimensão do desafio vertiginoso representado por um evento que será transmitido por emissoras de TV de 200 países. O Rio de Janeiro nunca foi tão exigido. O que a perspectiva histórica pode evitar é o susto dos pessimistas no caso de tudo dar certo.

Texto: Sérgio Rodrigues
Captação e Edição de video: Pedro Dias
Motion graphics: Lucas Mariano
Design e programação: Alexandre Hoshino, André Fuentes e Sidclei Sobral