SONHO NAS ALTURAS

Favorita ao pódio na mais plástica das modalidades, o salto com vara, Fabiana Murer chega ao Rio como a grande esperança do Brasil nas pistas
Juliana Linhares

A brasileira chega aos Jogos do Rio com o melhor salto do ano, 4m87 - o recorde mundial é de 5m06, da russa Yelene Isinbaeva (Paulo Vitale/VEJA)

Um sonho recorrente é o de cair no vazio, despencar lá de cima. A paulista Fabiana Murer, cuja atividade a faz subir a quase 5 metros de altura para depois seguir a lei da gravidade, jura não se lembrar de ter posto a cabeça no travesseiro para, de olhos fechados, desmoronar com medo. “Só sonhei com isso uma única vez, há mais de vinte anos”, diz ela. “E olhe que durmo pensando nos meus saltos. Em meu voo estou bem acordada, no controle dele o tempo todo.” Para Sigmund Freud (1856-1939), “os sonhos de cair (...) são mais amiúde caracterizados pela angústia; sua interpretação não oferece nenhuma dificuldade, no caso das mulheres, que sempre aceitam o uso simbólico da queda como um modo de descrever a rendição a uma tentação erótica”. Ainda que o clássico freudiano A Interpretação dos Sonhos, de 1899, não possa ser usado como um banal guia onírico, os sonhos com queda, grosso modo, associam-se à ansiedade.

As primeiras varas eram de madeira, rígidas e pesadas.No início do século XX, passaram a ser feitas de bambu, depois de aço e alumínio. As fibras de carbono e vidro são inovações recentes

Ansiedade que parece não combinar com Fabiana, uma atleta cujo sucesso brotou sempre da vigília, da tranquilidade, do cuidado com os detalhes técnicos do salto com vara, sua especialidade. Ela chega à Olimpíada do Rio com uma marca notável: 4,87 metros, a melhor do ano, que a coloca entre as cinco melhores de todos os tempos — a recordista mundial, a megaestrela Yelena Isinbaeva, afundada no escândalo do doping russo, já conseguiu o salto espetacular de 5,06 metros. A brasileira tem 35 anos. É a esportista mais velha da modalidade a atingir o ápice da carreira. Isinbaeva alcançou o apogeu aos 27 anos. A americana Jennifer Suhr (4,92 metros), aos 26. “Quando passo o sarrafo em competições que rendem recordes e medalhas, caio no colchão toda arrepiada”, diz Fabiana. “Quero sentir esse arrepio no Rio.” Acordadíssima, ela tem trabalhado muito para subir no pódio, que lhe escapou nos Jogos de 2008 e 2012.

Isinbaeva, imbatível, foi atropelada pelo escândalo do doping russo (Paulo Vitale/VEJA)

Técnica e um corpo adequado ao salto ela tem de sobra. Com 1,72 metro de altura e 58 quilos (um gravetinho com dissonantes ombrões, largos como os das nadadoras), Fabiana se aprimora desde 2001. Aprendeu muito com o treinador ucraniano Vitaly Petrov, que ensinou bons truques a Sergei Bubka, o maior de todos os tempos: ele superou o recorde mundial 35 vezes numa carreira tingida de dourado. Petrov foi convidado pelo também treinador e marido de Fabiana, Elson Miranda. Hoje, ela trabalha só com Elson. Um parêntese para dizer que ver o casal junto, para além de todas as pulsões descritas por Freud, ou por causa mesmo dessas pulsões, é revelador: tem boca torcida e cara bem feia quando há erro; mas há também sorriso cúmplice e conversinha ao pé do ouvido nos acertos.

A atleta brasileira, campeã mundial em 2011, revela o que passa em sua cabeça durante as cinco etapas da execução do salto com vara

Duas vezes campeã mundial, em 2010, em prova indoor, e 2011, Fabiana não é a mais forte nem a mais rápida, quando comparada a suas principais concorrentes. Sua vantagem vem da execução lapidada de cada pedacinho do salto. Um deles, em especial, é burilado com carinho. É o momento da reversão (veja o quadro na página ao lado), o mágico instante em que está no ar, de ponta-­cabeça, ainda agarrada à vara, e precisa fazer um meio-giro com o corpo para ultrapassar o sarrafo com o abdômen paralelo a ele. “Nessa hora, cometo alguns erros; entre eles o de deixar os quadris baixos demais”, diz ela. “Desse jeito, eles ficam mais pesados, e se torna difícil fazer um bom arco com o corpo, de maneira a não deixá-los tocar o sarrafo.” Para compensar essa deficiência, Fabiana tem excelente execução na decolagem porque é uma das esportistas que seguram mais alto na vara — já chegou aos 4,55 metros do comprimento da peça de até 4,75 metros —, o que a auxilia na amplitude (e na beleza) do salto.

Com o marido e treinador, Elson: conversinha ao pé do ouvido depois de bons saltos (Paulo Vitale/VEJA)

“Muito dessa harmonia vem da ginástica artística. Uma vez por semana, treino giros em barras paralelas, solo e acrobacias”, conta Fabiana. Antes de se encantar pelo salto com vara, aos 17, ela já era ginasta havia dez anos. Além da aptidão física, talhada em treinos diários de até seis horas (com exceção dos domingos) no Clube de Atletismo BM&FBovespa, em São Caetano do Sul (SP), de Fabiana se exigem cálculos mentais, que abarcam elementos como velocidade, controle do vento, força, peso e transferência de energia cinética. Evidentemente, ela não precisa ser especialista nesses temas, mas tê­-los em mente, e estudá-los o tempo todo, é fundamental para a construção de um campeão do salto com vara. “Na escola, minhas matérias favoritas eram física e matemática. Até hoje, eu me interesso por esses assuntos e estudo vetores”, diz, com a voz mansinha e o sorriso fácil que ajudam a compor o conjunto da obra. Ela tem cílios arruivados borboleteantes e a palma das mãos quase sempre suja de uma meleca preta — mistura de uma cola que Fabiana usa para dar grip nas varas a restos de adesivos grudados nelas, que marcam a altura da pegada. Os adesivos servem também para a fácil identificação das varas (ela tem pesadelos — olha o Freud aí — com o episódio da Olimpíada de 2008, em Pequim, quando uma delas sumiu de seu estojo). No caso de Fabiana, as varas são de fibra de vidro, indicadas para seus saltos por se desenvergar mais lentamente. A maioria das competidoras, fisicamente muito fortes, prefere os modelos de fibra de carbono, que “jogam” as atletas com maior empuxo.

Nos Jogos de Pequim (2008), uma confusão na marcação das varas a fez perder a chance de medalha. Em Londres (2012), o vento forte que soprava no último salto a fez abandonar a disputa pelo pódio

O maior nome da modalidade é o ucraniano Serguei Bubka, que superou o recorde mundial 35 vezes. Nos Jogos de Barcelona, em 1992, no auge da carreira, no entanto, ele fracassou — e nem subiu no pódio

Se a troca de vara é evento raríssimo, e muito dificilmente voltará a ocorrer, há algo que tira o sono de Fabiana, apesar da calma que a persegue: o vento, ameaça incontrolável por natureza. Em 2012, na Olimpíada de Londres, alegando que as condições do vento estavam ruins, ela desistiu de fazer sua última tentativa de salto e não foi ao pódio. No inverno carioca não há a ventania do verão londrino. “Naquele dia, em Londres, o vento estava no pior dos cenários, girando em diferentes direções. Nas minhas duas primeiras tentativas de salto não me saí bem. Na última, o vento começou a soprar contra e muito forte. Esperei até o último segundo, pois temos um minuto para saltar, para ver se ele parava. Não parou. Tive de começar a correr, mas senti muita resistência. Quando passei da metade da pista, vi que não tinha conseguido alcançar nem a marca nem a velocidade de que precisava. Nesse momento, meu tempo já estava no fim. Não daria mais para saltar. Por isso, desisti.”

Treino da brasileira Fabiana Murer, campeã mundial de salto com vara, com detalhes que só uma câmera que filma em 360 graus pode captar

Esta será a última Olimpíada de Fabiana, que se aposenta no fim do ano. Ela chegará à prova, portanto, com a energia de um tufão. E em traje de gala: de uniforme novo, com aeroblades, as saliências no tecido dos manguitos e das caneleiras para diminuir a resistência do ar, maquiada, com gel e babyliss nos cabelos para ressaltar os cachos. “Fabiana é uma das pessoas mais carismáticas do esporte brasileiro”, disse a VEJA o mito Sergei Bubka. “Com espírito elevado por competir em casa, ela estará 150% motivada e sua experiência será útil para superar a pressão.” Bubka não tem dúvida. Fabiana Murer reúne todas as características que fazem do salto com vara uma prova inescapável e popular. Diz ele: “É como um musical. É preciso cantar, dançar e atuar dramaticamente. O saltador com vara é um atleta universal cuja tarefa é associar corrida a ginástica, do mais alto nível”. As finais do salto com vara feminino acontecem na sexta­-feira 19 de agosto, a partir das 20h30. Como sonha Fabiana, será de arrepiar.

Reportagem: Juliana Linhares
Foto: Paulo Vitale
Edição de vídeo: Lucas Mariano
Captação de vídeo: Cleer Oliveira e Xande Oliviera
Imagens de Drone : Thiago Bianchi
Design e programação: Alexandre Hoshino, André Fuentes e Sidclei Sobral