Segundo tempo

VEJA voltou a Chapecó cem dias depois do acidente aéreo que emocionou o mundo para saber como anda a reconstrução da cidade e do clube catarinense
Por Alexandre Senechal (texto) e Natália Luz (vídeos e fotos)

“Que escutem / Em todo continente / Sempre recordaremos / A Campeã Chapecoense”. O cântico que surgiu ainda na noite do fatídico dia 29 de novembro de 2016, nas vozes de centenas de colombianos que se reuniram de maneira espontânea nas ruas de Medellín, ressalta um fato que pouca gente se recorda: a Chape é a atual campeã da Copa Sul-Americana. Venceu a competição sem ter tido a chance de disputar a final. A trajetória daquela equipe, que colocou a pequena cidade do interior catarinense no mapa e no coração do mundo todo, foi abruptamente interrompida pela queda do avião que levava sua delegação ao jogo mais importante de sua história.

Pelo título da Sul-Americana, a Chapecoense conquistou o direito de disputar o sonho de qualquer clube grande do Brasil: a Taça Libertadores, torneio que escolhe a melhor equipe do continente. E na última quinta-feira, dia 16 de março, a Chape a fez sua primeira partida pela competição na sua casa, a Arena Condá. Neste relato, o resultado da partida é o que menos importa. VEJA esteve em Chapecó na semana do confronto marcante para ver de perto como anda a reconstrução de uma equipe destruída pela tragédia. Começou o Segundo tempo para a Associação Chapecoense de Futebol. A seguir, você conhece quem está escrevendo este novo capítulo da história do clube.

Em cinco dias na cidade, VEJA ouviu três sobreviventes da tragédia, o prefeito Luciano Buligon – que esteve na Colômbia logo depois da queda do avião –, dirigentes do clube e os novos membros do elenco de jogadores. O discurso é bem semelhante: respeito à memória dos que morreram e a responsabilidade de manter a Chapecoense um motivo de orgulho para os moradores de Chapecó.

A CIDADE

Não existe outro lugar no mundo que tenha sentido mais a queda do avião da LaMia que a cidade de Chapecó. A torcida cultiva uma forte relação com o clube fundado em 1973 como uma alternativa de lazer aos jovens moradores desse pólo frigorífico catarinense. Mas foi apenas na década passada que essa relação se intensificou. A rápida ascensão da Chapecoense no cenário futebolístico nacional – em cinco temporadas, subiu três vezes de divisão, e está na Série A do Campeonato Brasileiro desde 2013 – fez da equipe um exemplo para os habitantes, de como se pode ter sucesso sem perder as raízes. “A cidade gosta muito de futebol e se envolve muito com o clube”, conta Nivaldo Constante, que até o ano passado era goleiro da equipe profissional e que depois do acidente tornou-se diretor de futebol do clube.

As referências à filha mais notável da cidade aparecem em todos os lugares. Um enorme pôster da Arena Condá recebe os visitantes logo na saída do desembarque no Aeroporto Serafim Enos Bertaso. A imagem do caldeirão da Chape também está presente em diversas lojas e até no gabinete do prefeito Luciano Buligon, o que dá a medida da devoção do município à Chapecoense. No prédio do Instituto Geral de Perícias, uma bandeira com o símbolo da equipe pendurada na janela. Outra bandeira do clube, esta com o sinal de luto, aparece na vitrine de um pet shop no centro da cidade, ao lado de um outdoor enorme, onde aparece escrito “#ForçaChape”. Felipe Tremea Peres, vendedor da loja, traduz o sentimento da população pelo time. “Chapecó é uma cidade de gente trabalhadora e o time reflete isso.”

RESPEITO O prefeito de Chapecó, Luciano Buligon, se preocupa com a memória daqueles que morreram: “Precisamos honrar essas pessoas"

A população local também presa pela boa convivência e faz questão de fazer todos se sentirem em casa, inclusive os atletas que chegavam para se integrar ao elenco da Chape. Após a tragédia, a simpatia tornou-se uma via de mão dupla, agora em escala global. “Nos tornamos o segundo time de todo mundo”, afirma Ivan Tozzo, vice-presidente de futebol do clube.

O ano de 2017 já seria especial para Chapecó mesmo sem o alvoroço provocado pela tragédia. O município completa 100 anos no dia 25 de agosto, mas o calendário de festividades ainda não foi divulgado. O clima ainda não é para celebrações. “Estamos resgatando os nossos valores e todas as conquistas que aquelas pessoas nos deram. Já não sentimos uma tristeza, agora é uma saudade. Precisamos honrar essas pessoas”, diz o prefeito Luciano Buligon.

Certamente haverá muitas homenagens a memória daqueles que se foram. Em agosto, o governo municipal inaugurará a Praça Cidade de Medellín, em referência a cidade colombiana que viveu o luto e abraçou a Chapecoense na época da tragédia. Também existe a ideia de transformar Medellín e Chapecó em cidades-irmãs. Outra iniciativa será a construção de um memorial na Arena Condá, com as lembranças recebidas de outros clubes do mundo inteiro e artigos pertencentes ao elenco do ano passado. Tudo isso para que a memória das 71 vítimas não seja esquecida.

A RECONSTRUÇÃO

A tarefa era inédita no futebol brasileiro. Para a temporada deste ano, a Chapecoense precisou montar praticamente do zero o elenco de jogadores, a comissão técnica e o corpo diretivo do clube. “Nós tivemos aproximadamente 15 ou 20 dias para fazer um time. Com minha experiência no futebol fora do campo, eu nunca vi isso acontecer em lugar nenhum”, conta Nivaldo Constante, o agora ex-goleiro e atual diretor de futebol da equipe.

O trabalho foi intenso e exigiu dedicação total dos novos responsáveis pela Chapecoense. Foi o caso de Ivan Tozzo, vice-presidente do clube e dono de uma distribuidora de bebidas em Chapecó. “Nós trabalhávamos das 8 horas da manhã até às 9, 10 horas da noite. Eu e meus colegas abandonamos nossas empresas e passamos 60 dias trabalhando somente aqui no clube.”

DEDICAÇÃO Ivan Tozzo, vice-presidente da Chapecoense: “Abandonamos nossas empresas e nos últimos 60 dias passamos a trabalhar somente aqui no clube"

Com surpreendentes 27 contratações, a Chapecoense estava de volta ao campo para enfrentar o Palmeiras, em um amistoso na Arena Condá, já no dia 27 de janeiro. Mesmo com todas as condições adversas, a Chape estava de volta, e a reconstrução foi da forma que a Chapecoense queria. “Num curto espaço de tempo, nós conseguimos fazer o que, pra nós, era tão importante quanto ter jogador de qualidade: criar um clima de solidariedade e amizade que fizesse deles um grupo de amigos”, comemora Rui Costa, contratado para ser o diretor executivo de futebol e remontar a equipe.

No calor da tragédia, surgiram notícias de que jogadores consagrados foram oferecidos ao clube, casos do argentino Riquelme e do astro Ronaldinho Gaúcho. De acordo com os dirigentes do clube, porém, dificilmente esses craques de renome se encaixariam no perfil buscado pela Chapecoense. “Buscávamos jogadores mais família, comprometidos com o coletivo. Desde o início, nós sabíamos que o nosso sucesso dependia de compreender o que o clube significa para a comunidade”, explica Rui Costa. A ideia era trazer jogadores que já haviam vestido a camisa da Chapecoense, ou seja, que conhecessem sua história e que soubessem da proximidade entre o clube e a população da cidade. O problema foi justamente esse.

COM A CARA DA CHAPE O time de 2017, posado para foto, antes da histórica partida contra o Lanús pela Libertadores da América: os novos jogadores foram selecionados pelo histórico de comprometimento

O lateral-direito Apodi havia sido um dos destaques da Chape na temporada de 2015, quando a equipe foi eliminada pelo River Plate nas quartas-de-finais da Copa Sul-Americana. O jogador confessou ter hesitado em aceitar o convite feito para voltar. Não por falta de respeito, mas por ter perdido muitos amigos no acidente. “Foi um momento difícil, mas depois eu pensei que poderia voltar para contribuir e honrar meus amigos por tudo aquilo que eles fizeram e continuar o que nós começamos juntos“, revela. “Todo mundo aqui perdeu muitos amigos e essa volta pesou um pouco”, complementa Douglas Grolli, zagueiro revelado na Chapecoense e outro jogador a voltar para ajudar na reconstrução da equipe.

O técnico Vagner Mancini, o primeiro funcionário a ser contratado depois da tragédia, garantiu estar satisfeito com a qualidade do grupo montado, principalmente pelas condições que encontrou quando assumiu a equipe, dias depois da tragédia. Cada atleta foi contratado considerando suas qualidades e seu profissionalismo. “O Alan Ruschel me disse que acredita que quem está aqui foi escolhido, que não foi uma coisa aleatória. Se vai ser um sucesso desportivo ou não, o tempo vai dizer”, completa Rui Costa.

OS SOBREVIVENTES

Das 77 pessoas a bordo do voo 2933 da empresa boliviana LaMia, apenas seis sobreviveram a queda na região montanhosa próxima ao aeroporto internacional de Rionegro, na região metropolitana de Medellín, na Colômbia. Dois tripulantes da aeronave, os bolivianos Erwin Tumiri e Ximena Suárez, o radialista brasileiro Rafael Henzel e três jogadores da Chapecoense: Alan Ruschel, Jakson Follmann e Hélio Neto. Para todos eles, conseguir deixar a Colômbia com vida e voltar para casa já seria um feito e tanto. Mas o grupo de atletas tem um outro objetivo particular: poder voltar a pisar num campo de futebol.

O lateral-esquerdo gaúcho Alan Ruschel foi o primeiro a ser resgatado do local da queda do avião da LaMia. Com uma fratura na décima vértebra, Alan teve que fazer uma cirurgia e correu o risco de ficar paraplégico. O cenário mais grave, felizmente, não se concretizou. Apenas 12 dias depois do acidente, o jogador já caminhava pelo hospital. Hoje, mais de três meses após o fatídico dia, o lateral-esquerdo ainda precisa ganhar massa muscular para cogitar o retorno aos gramados, mas Alan está tranquilo. “Não tenho pressa para voltar, não coloquei prazo para minha estreia, mas como eu sou atleta espero estar em campo num futuro muito breve”. O contrato de Ruschel com a Chapecoense vai até o final de maio, mas o jogador de 27 anos espera renovar para poder atuar com a camisa do clube mais uma vez.

SUPERAÇÃO Alan Ruschel e Neto já começaram os treinamentos e sonham com a volta aos gramados. Jakson Follmann, que teve uma perna amputada, já consegue caminhar sem a ajuda de muletas

O outro atleta que continua fazendo parte do elenco da Chapecoense é Neto. O zagueiro, porém, vive uma situação um pouco mais difícil que a de Alan Ruschel. “O Neto vai ficar um pouco mais de tempo parado devido à lesão no joelho”, explica Marcos Antonio Bilibio, fisioterapeuta do clube. Imaginava-se que o jogador de 31 anos não conseguiria nem retornar ao futebol, pois foi o último a ser retirado com vida dos destroços do avião. No hospital, teve que superar uma forte pneumonia. “Parece que eu envelheci uns 80 anos. Sinto ainda algumas dores pelo corpo que incomodam, mas comparado a forma como eu estava como eu acordei, já estou muito melhor”, revela Neto.

Dos três jogadores da Chape, Jakson Follmann é o único que não vai poder continuar no futebol. O goleiro reserva da equipe sofreu uma amputação abaixo do joelho direito e começou a utilizar uma prótese no começo de fevereiro. Na semana do jogo contra o Lanús, porém, Follmann já chegava para a fisioterapia andando sem a ajuda de muletas. E sempre demonstrando o bom humor que virou padrão em suas entrevistas. “Ele sempre foi muito alegre e por isso está conseguindo encarar o acidente desta forma”, conta Paulo Follmann, pai do jogador de 25 anos. Jakson Follmann já pensa no futuro e quer seguir sua vida normalmente, sem nunca deixar para trás sua história com o clube. “Ainda não sei exatamente o que vou fazer. Sei que vou levar a Chape para todo o Brasil e todo mundo. Quero contar essa história.”

Os sobreviventes do desastre carregarão para sempre as marcas deixadas pelo acidente, mas sem falar em trauma. Eles preferem se apegar ao que ainda podem fazer. Alan Ruschel acredita que a dor é passageira, e é preciso seguir adiante. “Sobrevivi por um propósito que eu ainda não sei qual é, mas Deus vai me mostrar. Alguma coisa eu ainda tenho que fazer aqui. Não só eu, como o Neto e o Follmann. Nós temos um propósito”. E por este propósito o trio segue unido vestindo o uniforme da Chapecoense.

E O FUTURO?

Bem, o futuro passa, invariavelmente, pelo presente. As feridas ainda estão cicatrizando, mas o pensamento coletivo é seguir em frente. O clube e a torcida têm a consciência de que, neste momento, é difícil de pensar em títulos, ou esperar que a equipe repita o sucesso dos últimos anos ainda em 2017. “Meu sonho é ver a Chapecoense campeã de algum campeonato e não cair para a Série B”, torce o zagueiro Neto, extremamente racional e que espera estar pronto para atuar ainda este ano. “Vai demorar muito tempo para a gente fazer um time parecido com aquele”, completa Nivaldo Constante.

Como foi dito anteriormente, hoje o resultado de campo pouco importa. O ideal é reconstruir as bases do clube, a moral do seu torcedor e recolocar o futebol de Chapecó em evidência. O trabalho que colocou a Chapecoense como um dos principais clubes do Brasil foi minuciosamente feito ao longo dos últimos anos, sempre baseado em um planejamento com os pés no chão.

ESPERANÇA É comum ver famílias com crianças pequenas nos jogos da Chapecoense na Arena Condá: o amor pela Chape vem de berço

O diretor-executivo Rui Costa sabe que será um ano difícil e de reconstrução, mas já pensa em plantar uma semente para os próximos anos: devolver o clube ao patamar que estava antes do acidente é a meta para o próximo triênio. “Esse é um clube que já provou o que uma Copa Sul-Americana faz em termos de crescimento e visibilidade de marca. Se a gente fizer uma campanha digna, não vejo porque não possamos pensar em participar de uma competição internacional mais uma vez em 2018”, afirma, relembrando que todas as competições nacionais oferecem 15 vagas em campeonatos sul-americanos.

Chapecó quer construir o futuro sem esquecer do passado. Batalhar para recuperar o status que alcançou com o elenco de 2016 e continuar a história que a queda do avião da LaMia interrompeu. Como definiu o prefeito Luciano Buligon, a cidade quer traçar seus novos caminhos a partir das boas lembranças deixadas pelas 71 vítimas. “Nosso sonho hoje é reconstruir uma equipe, reconstruir uma cidade e, acima de tudo, homenagear aqueles que nos deixaram. Eles precisam ser honrados todos os dias. Para sempre.”

EXPEDIENTE

Reportagem:
Alexandre Senechal

Captação de vídeo e edição:
Natália Luz

Edição de conteúdo:
Alexandre Salvador

Direção de Arte:
Rafael Costa

Design e desenvolvimento:
Alexandre Hoshino e Sidclei Sobral

Finalização:
Lucas Mariano