Meu mundo é a quadra

Herói da Sérvia, NOVAK DJOKOVIC, o tenista número 1 do ranking, representa como poucos uma das facetas mais valorizadas da Olimpíada — o patriotismo movido a esporte
Alexandre Salvador

A rotina da campeã: de pé às 4h25 para quatro horas de treino, seis dias por semana (Al Tielemans/Sports Ilustrated/Getty Images)

Novak Djokovic está mais de uma hora atrasado. Enquanto o aguardo em uma sala anexa ao complexo de tênis de Key Biscayne, na Flórida, o tenista número 1 do mundo é sabatinado em uma entrevista coletiva a respeito de suas declarações no fim de semana anterior. Depois de levantar o troféu de campeão no Masters de Indian Wells, disputado em março, o sérvio disse que os jogadores homens deveriam receber prêmios maiores que os das mulheres pelo fato de atraírem a maior parte da audiência. A reação obviamente não foi das melhores, e ele teve de se explicar — à imprensa, mas antes, numa sala reservada, a duas ex­-jogadoras, Billie Jean King e Chris Evert, lendas do tênis americano e militantes da igualdade entre os sexos. Finalmente, Djokovic entra apressado no pequeno espaço reservado para nosso encontro. Parece absorto, ainda se recuperando do bombardeio dos jornalistas. “Plateia difícil?”, pergunto. “É como entrar em um tanque repleto de tubarões sem nada nas mãos.” Não está fácil para ninguém. Até o melhor jogador da atualidade, dono de doze títulos de Grand Slam e líder do ranking desde julho de 2014, pode sentir-se acuado de vez em quando.

A grita justificada em torno de uma declaração infeliz, contudo, nem se compara a outros bombardeios, nada metafóricos, que o sérvio de 29 anos enfrentou ao longo da vida. Criado em meio a duas guerras civis que retalharam a antiga República da Iugoslávia, Djokovic lembra-se vivamente do dia em que abandonou às pressas o apartamento em que vivia com os pais e os irmãos em Belgrado, capital da Sérvia, para procurar abrigo das bombas disparadas pela Otan durante a Guerra do Kosovo, em 1999. Ou de quando tinha de buscar um local decente para treinar em meio aos escombros dos prédios derrubados no confronto. “Tudo isso me fez mais forte, ainda mais sedento de sucesso e de trilhar meu caminho”, disse a VEJA (leia a entrevista na pág. 83). Quase vinte anos após o fim dos conflitos étnicos nos Bálcãs, ele é a face mais conhecida dessa nova Sérvia. Uma nação em paz, sim, mas muito longe de ter destruído o ovo da serpente do nacionalismo associado a tentações autoritárias.

Djokovic comemora o título da Copa Davis de 2010: a Sérvia para quando o tenista está em quadra (AFP Photo/ Andrej Isakovic)

As partidas de Djokovic param o país. Tudo o que ele faz dentro e fora das quadras vira notícia. Mas o campeão se diz confortável com a responsabilidade. “Sempre quis estar na posição de ter influência suficiente para provocar uma mudança”, afirma. É assim desde cedo. Em 1992, com apenas 5 anos, o primogênito do casal Srdjan e Dijana Djokovic decidiu circular sozinho entre as quadras localizadas do outro lado da rua da pizzaria de seus pais, em Kopaonik, popular destino turístico próximo à fronteira da Sérvia com o Kosovo. O olhar de curiosidade do menino Novak, hipnotizado pela viagem frenética da bolinha amarela, chamou a atenção de Jelena Gencic, treinadora encarregada da clínica de tênis em curso naquela tarde. Jelena, então, convidou o garoto a voltar no dia seguinte, dessa vez para participar da atividade. “Ele tinha grande destreza motora, concentração impenetrável e a habilidade de ouvir e observar”, disse ela ao jornalista Chris Bowers, autor de recente biografia sobre Djokovic. As poucas horas de contato com o prodígio foram suficientes para a treinadora vaticinar: Novak seria um tenista profissional, e dos grandes. Antes que alguém duvide do faro da treinadora, foi ela a responsável por descobrir outros talentos das quadras. Ela guiou os primeiros passos de Monica Seles, nascida na Iugoslávia e posteriormente naturalizada americana, e de Goran Ivanisevic, que depois de 1992 passou a defender as cores da Croácia.

Em entrevista exclusiva a VEJA, o tenista número 1 do mundo conta como os conflitos ocorridos nos anos 90 na Sérvia moldaram sua personalidade

Pupilo e mentora, Jeca e Nole (seus apelidos) caminharam juntos até o tenista completar 12 anos. Nesse período crucial, Jelena ensinou ao menino bem mais do que os fundamentos do esporte. Ela expandiu suas áreas de interesse para a ciência, a música e as artes. Foi por sua influência que Djokovic se tornou um apaixonado por música clássica e decidiu que seria um poliglota — hoje o tenista é fluente em inglês, italiano, alemão e ainda arranha no francês. Quando venceu pela primeira vez o torneio de Wimbledon, em 2011, foi recepcionado por mais de 100 000 pessoas nas ruas de Belgrado. Afastou-se da multidão, rapidamente, para visitar Jelena Gencic em casa, homenagem carinhosa às raquetadas iniciais. Ali, abraçou a mentora e resumiu aquele momento: “Foi para isso que trabalhamos tanto, não foi?”. Jelena morreu em 2013, em plena temporada de Roland Garros, vítima de câncer. O convívio com sua primeira orientadora proporcionou a Djokovic um traço hoje inerente a sua personalidade: a coragem de arriscar novidades.

Sem Jelena, talvez Djokovic nunca tivesse decidido mudar radicalmente de rotina. Depois de seu primeiro título de Grand Slam (o Aberto da Austrália, em 2008), parecia que a evolução do sérvio havia batido no teto — recém­­chegado à maioridade, ele aparentava estar a anos-luz do espanhol Rafael Nadal e do suíço Roger Federer. Constantes abandonos de partida e repetidas solicitações de auxílio médico na quadra ajudaram a sedimentar a (má) fama de Djokovic como “catimbeiro”. Para piorar, sua personalidade brincalhona (quem nunca assistiu a uma de suas hilárias imitações?) passou a ser confundida com deboche. Na verdade, o sérvio sofria fisicamente. Ele se cansava antes dos rivais, tinha tontura e náuseas em meio às partidas. Em 2010, Djokovic descobriu-se intolerante ao glúten, proteína abundante em pães e massas. Por orientação médica, cortou esses alimentos de sua dieta, bem como os derivados do leite e açúcares processados. Funcionou. Sem o mal-estar, ele viu sua carreira decolar. Em 2011, venceu dez torneios, três deles Grand Slam, e chegou ao topo do ranking mundial. Nos últimos dezoito meses atingiu a impressionante marca de 128 vitórias e apenas dez derrotas. Mesmo em um ano tão cheio, Djokovic faz questão de disputar os Jogos. A Olimpíada do Rio é a terceira tentativa do sérvio de alcançar o ponto mais alto do pódio. Ele já tem um bronze, conquistado em Pequim 2008.

“Novak é o grande responsável pelo aumento de confiança do povo sérvio”, disse a VEJA o ex-tenista alemão Boris Becker, atualmente um dos técnicos de Djokovic. “É algo semelhante ao que ocorreu na Alemanha. Tivemos nossos piores momentos nos anos 1940, mas hoje somos um país muito diferente, e todos os ícones nacionais colaboraram nesse processo.” O carisma de Djokovic, que o faz ser muitos ao mesmo tempo, é o atalho para reunir a sociedade em torno de um esportista — algo que, a rigor, não acontece nem mesmo na Jamaica de Usain Bolt. Djokovic zela por essa força magnética, que o transforma no centro das atenções o tempo todo, e com maestria. Depois de vencer Roland Garros neste ano, ele imitou o gesto imortalizado por Guga no saibro francês — o coração desenhado com a raquete no chão da quadra. “Foi como vencer meu quarto título”, disse Guga depois da homenagem. “Temos valores muito similares, de respeito às pessoas mais carentes”, diz Djokovic, que seguiu os passos do ídolo brasileiro ao fomentar um projeto de educação pré-escolar na Sérvia. Com Guga na torcida e simpático até não poder mais (além do tênis espetacularmente bem jogado), Djokovic desfilará no Rio a um só tempo como atleta e celebridade.

Reportagem: Alexandre Salvador
Edição: Natália Luz
Captação: Gilberto Tadday
Finalização: Lucas Mariano
Design e programação: Alexandre Hoshino, André Fuentes e Sidclei Sobral