Como nascem os campeões

O que alimenta a indústria de velocistas da Jamaica de USAIN BOLT, genética ou cultura?
Fábio Altman, de Sherwood Content (Jamaica)

O bicampeão olímpico dos 100 metros, dos 200 metros e do revezamento 4 x 100 metros: ele quer ser do tamanho de Pelé e Muhammad Ali (Michael Steele/Getty Images)

Se o menino é pai do homem, como escreveu o carioca Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas, as paredes de argamassa caiada da Waldensia Primary School parecem ecoar o destino de pelo menos uma das crianças que corriam em suas varandas e jardins no início dos anos 1990 — um garoto para quem a distância e o tempo se tornaram modo de vida. Lê-se, em inglês, em letras coloridas e já esmaecidas pelos anos: “O metro é usado para medir largura ou distância; as distâncias muito longas são medidas em quilômetros; o relógio é usado para contar o tempo; 60 segundos são um minuto; 60 minutos são uma hora; 24 horas são um dia”. A turminha de uniforme cáqui e verde repete nas aulas de matemática o refrão aritmético. Lá embaixo da colina, onde pousa a escola infantil, virando à direita, um pouco antes dos correios, aonde um cachorro vai devagar, um burro vai devagar, devagar as janelas olham, um muro, este mais recente, anota com orgulho uma informação e um par de números que reinventaram a cidadezinha de vida besta: “Bem-vindo a Sherwood Content, o lar do homem mais rápido do mundo, Usain Bolt. Recordes mundiais: 9s58 (100 metros) e 19s19 (200 metros)”.

As crianças de Sherwood Content, cidade de pouco mais de 2 000 habitantes a 100 quilômetros de Kingston, na Jamaica, já não precisam das informações escolares para aprender a calcular o tempo gasto para percorrer determinadas distâncias, sobretudo se forem 100 ou 200 metros. Como o menino é indubitavelmente pai do homem, e cabe aqui excluir a conjunção condicional do início desta reportagem, Bolt não hesita em sorrir, quase comovido, ao lembrar de Ricardo Geddes, o garoto que sistematicamente o vencia na pista improvisada num pedaço plano de gramado entre a estrada e a montanha da Waldensia. Com sua peculiar voz de barítono, diz a VEJA: “Sim, houve um tempo em que ele costumava me vencer. Acho, porém, que meu talento ainda estava dormente. Éramos amigos, muito amigos. Mas é difícil esquecer aquelas derrotas”. Geddes se tornou jogador de futebol. Vive nos Estados Unidos. A primeira professora do velocista, Sheron Seiv­wright, tem lembrança um pouco mais nítida daqueles embates pueris. “Às vezes, um coleguinha vencia a competição de mentirinha, e Usain começava a chorar.” Ante a impossibilidade de negar o pranto, Bolt atalha: “Sou muito competitivo”.

Uma vez por ano, pelo menos, o gramado entre a Waldensia Primary School e a estrada vira pista de atletismo
Uma vez por ano, pelo menos, o gramado entre a Waldensia Primary School e a estrada vira pista de atletismo (Mark Guthrie/Contour/Getty Images)
Correr é um hábito em toda a Jamaica. O atletismo só é menos popular que o críquete e o futebol
Correr é um hábito em toda a Jamaica. O atletismo só é menos popular que o críquete e o futebol (Marina Fitzgerald Selby)
As crianças fazem o clássico gesto de Bolt em frente à escola onde ele estudou
As crianças fazem o clássico gesto de Bolt em frente à escola onde ele estudou (Marina Fitzgerald Selby)
Sheron Seivwright, a primeira professora: “Às vezes, um coleguinha vencia”
Sheron Seivwright, a primeira professora: “Às vezes, um coleguinha vencia” (Marina Fitzgerald Selby)
O ex-primeiro-ministro Norman Manley (no destaque): campeão do torneio estudantil, o “Champs”, em 1911 e 1912
O ex-primeiro-ministro Norman Manley (no destaque): campeão do torneio estudantil, o “Champs”, em 1911 e 1912 (National Library of Jamaica)

Bicampeão olímpico de duas das mais clássicas provas do atletismo, os 100 metros e os 200 metros, além do revezamento 4 x 100 com a equipe jamaicana, ele admite não ser o favorito nos 100, mas sonha com o recorde mundial nos 200. Evidentemente está abaixo das condições físicas ideais. Nas seletivas da Jamaica, no início de julho, sentiu um estiramento no lado posterior da coxa esquerda. Não participou da final dos 100 metros e nos 200 metros nem sequer entrou nas eliminatórias. Foi convocado porque é Bolt, Usain Bolt. Ele chega ao Rio de Janeiro para ampliar ainda mais sua condição de lenda, caso conquiste o tricampeonato nas três provas — magnético, tem nítida noção de que, como já ocorreu em 2008 e 2012, os Jogos devem girar ao redor dele. Antes do tiro de largada, haverá a expectativa de vê-lo disputar as finais (os 100 metros, no domingo 14 de agosto; os 200 metros, na quinta-feira 18). Depois, em caso de vitórias, haverá o prazer estético de saborear as passadas largas, o corpo ereto, a completa harmonia entre braços e pernas, a beleza do esporte tangenciando a perfeição em intermináveis replays na televisão.

O “MILAGRE” DE JUSTIN GATLIN

Com o passar dos anos, o americano ficou mais rápido e Usain Bolt perdeu velocidade, o que é natural. A explicação pode ser o aprimoramento dos treinamentos e a postura na pista de Gatlin. A sombra do doping, no entanto, sempre o acompanhará

Bolt, para além de seu carisma e sucesso individuais, encarna a espetacular fábrica de campeões de atletismo da Jamaica. Nas últimas três Olimpíadas, o país conquistou doze medalhas de ouro, oito de prata e oito de bronze, sempre em provas de velocidade. Os resultados impõem uma questão: por que os velocistas jamaicanos são tão bons? Há alguma propensão genética ou suas vitórias são fruto da cultura cotidiana, como já aconteceu no Brasil, por exemplo, quando o país fez brotar craques de futebol da profusão de campos de várzea? A hipótese genética é interessante demais para ser descartada. Cientistas da Universidade de Glasgow, na Escócia, associaram-se a especialistas da Universidade de West Indies, na Jamaica, e durante dois anos investigaram o DNA de 120 atletas jamaicanos e de 200 jamaicanos comuns. Em 75% das duas populações, um pouco mais, um pouco menos, foi encontrada uma variação do gene ACTN3, responsável pela produção de uma proteína ativada em fibras musculares de contração rápida, que se retraem entre 40 e 90 milissegundos, em média. Essas fibras não pedem oxigênio — são, portanto, anaeróbicas, característica seminal das provas de velocidade. Disse a VEJA a pesquisadora Rachael Irving, líder do projeto, professora da Faculdade de Ciências Médicas: “A prevalência desse gene é inquestionável, mas ele precisa ser acionado por fatores ambientais e de condicionamento físico”.

De um dos locais mais lentos do mundo, surgiu o homem mais rápido do planeta. VEJA foi até a Jamaica conferir de onde surgiu a lenda dos 100 metros rasos e registrou tudo em 360 graus

VEJA reuniu Rachael, nítida defensora da hereditariedade, e uma ex-atleta, Vilma Charlton, para pôr na mesa os argumentos favoráveis e os contrários às teses da predominância genética e da influência da prática esportiva. A cientista não tem dúvida da importância de ir cada vez mais fundo nas investigações da constituição bioquímica dos atletas, quase todos oriundos de uma mesma região — Trelawny, de onde veio Bolt, de onde veio a fenomenal Veronica Campbell­-Brown (um Bolt de saias, com perdão pelo lugar-comum) e mesmo Ben Johnson, que exilado no Canadá virou o mais conhecido símbolo da infâmia do doping, em 1988. Em Trelawny, a partir do século XVI, desembarcaram escravos de canela fina importados da África. A campeã Vilma Charlton é irremovível: “Somos bons no atletismo porque gerações sucessivas gostam de praticá-lo”. Instado a entrar no debate, a distância, Bolt não vacila um milésimo de segundo e responde com uma exclamação: “É o Champs!”.

Champs é o campeonato estudantil que ocorre há mais de 100 anos em Kingston. Tem a força do desfile das escolas de samba do Rio, e um único enredo a costurá-lo: o atletismo, preferencialmente de velocidade. É uma festa de dancehall (o reggae anda em baixa), cores e gente saudável. Os colégios têm nomes britânicos, do tempo de colônia, como Manchester High, The Queen’s School, St. Jago High e Convent of Mercy. Bolt (do colégio William Knibb) venceu os 200 e os 400 metros em 2002 e 2003, aos 15 e aos 16 anos. Comoção como a das tardes e noites de março no Estádio Nacional de Kingston, embaladas pela descoberta de futuros promissores, de amanhãs dourados, aconteceu somente uma vez fora do esporte, quando Bob Marley virou um gigante, apesar de seu 1,70 metro, ao erguer os braços de dois adversários políticos que ensaiavam uma guerra civil alimentada por hipócritas, disfarçados, rondando ao redor. Era 22 de abril de 1978. Bob fez Michael Manley (1924-1997), do Partido Nacional Popular, dar as mãos a Edward Seaga, do Partido Trabalhista, hoje com 86 anos. Foi histórico, mas inútil. Os dois principais organizadores do show, o One Love Peace Concert, os pais da ideia de chamar as lideranças partidárias, foram assassinados menos de dois anos depois da festa.

O maior corredor da Jamaica (quiçá do mundo) falou com exclusividade a VEJA sobre suas raízes e os objetivos para a Olimpíada do Rio

Manley é filho de um antigo primeiro-ministro, herói nacional, Norman Manley (1893-1969), defensor do sufrágio universal (há um retrato dele no muro na Waldensia Primary School, ali onde Bolt começou a correr). Para não perder o ritmo da prosa, é bom lembrar que, antes da política, Manley foi campeão no Champs (velocidade, claro!), em 1911 e 1912. Era branco, com uma herança genética distinta. Mas, graças a Manley pai, negros como Bolt viraram cidadãos, e como cidadãos ingressaram em boas escolas, e das boas escolas caminharam até as pistas. Sentado numa delas, que não por acaso se chama Usain Bolt, dentro da Universidade de West Indies, tendo o vento como trilha sonora, o Raio olímpico se abaixa para amarrar os cadarços — aliás, para girar um pequeno disco que deixa os tênis colados nos pés, sem barbante externo, novidade da Puma que ele anuncia que vai usar no Rio (em 2008, ressalve-se, o cadarço do calçado esquerdo de Bolt desamarrou-se na final dos 100 metros). Agacha-se e, mãos nas costas, ao subir reclama, esboçando um gemido: “Ah, dói. Já tenho quase 30 anos”. É evidente zombaria. Seu principal adversário nos 100 metros, o americano Justin Gatlin, ouro nos 100 em 2004, tem 34 anos — em quatro deles, esteve afastado por doping. Gatlin busca o bi. O problema dele é que Bolt quer o tri. E, como não haverá nenhum Ricardo Geddes alinhado na largada, aquele amigo de infância que fazia o jamaicano chorar, é melhor sair da frente porque lá vem outra vez o homem filho do menino. E ele é competitivo, avisa.

Texto: Fábio Altman, de Sherwood Content (Jamaica)
Edição de vídeo: Natália Luz
Captação: Xande Oliveira
Finalização de vídeo: Lucas Mariano
Design e programação: Alexandre Hoshino, André Fuentes e Sidclei Sobral