A SEREIA DE FÔLEGO ETERNO

Especialista nas provas de fundo da natação, a americana KATIE LEDECKY tem um duplo e raríssimo dom: resistência e rapidez
Maria Clara Vieira

A rotina da campeã: de pé às 4h25 para quatro horas de treino, seis dias por semana (Al Tielemans/Sports Ilustrated/Getty Images)

Não há hipótese de a americana Katie Ledecky cair numa piscina sem grande chance de sair vitoriosa. No esporte, apostas assim tão assertivas nem sempre são confirmadas durante uma competição. No entanto, no caso desta moça de 19 anos, a derrota é quase uma improbabilidade. No Rio, ela disputará os 200 metros, os 400 metros e os 800 metros, todos de nado livre, além de pelo menos um revezamento. Numa indevida, mas interessante, comparação com o atletismo, é como se ela incorporasse um velocista jamaicano e um fundista queniano sem perder o ritmo. Os 200 metros são uma disputa de velocidade. Os 400 e os 800 metros exigem resistência. Nunca houve um nadador, homem ou mulher, capaz de ir tão bem em modalidades tão díspares. Katie tem o recorde mundial nos 400 e nos 800. Nos 200, precisará vencer a experiente italiana Federica Pellegrini.

Qual o segredo? Katie mede 1,80 metro, dentro da média das nadadoras campeãs, e seu físico, em comparação com o das colegas, nada tem de excepcional, como é, por exemplo, a portentosa envergadura de Michael Phelps e como eram os corpões inchados de doping das nadadoras da Alemanha Oriental nos anos 70. Katie faz diferença porque treina muito, de modo a educar não apenas o aspecto mecânico das braçadas, da angulação à entrada das mãos na água, mas também a respiração. A prática incansável lhe rendeu a habilidade incomum de acionar no organismo, simultaneamente, tanto o motor aeróbico, o da resistência, quanto o anaeróbico, o dos picos de energia para curtas distâncias. Por isso, repita-se, essa americana parece meio jamaicana, meio queniana. “Cada atleta é propenso a privilegiar um sistema”, disse a VEJA o português Tiago Barbosa, que ensina ciência do esporte na Universidade Tecnológica de Nanyang, em Singapura. “Explorar os dois requer um enorme esforço de adaptação.” Segundo o técnico de Katie, Bruce Gemmell, “ela se convenceu de que pode nadar em todas as provas como se fossem de curta distância”. É espantoso e viciante acompanhá-la por longos minutos de vaivém. O recorde mundial da americana nos 800 é de 8m06s68.

Katie em ação: a diferença está no treino incessante para dominar técnicas incomuns (Mike Lewis/Ola Vista Photography )

Nascida em Bethesda, no Estado de Maryland, cidade próxima a Washington, Katie já apareceu para o mundo ganhando, e ganhando em uma Olimpíada. Em Londres, aos 15 anos, a loirinha tímida surpreendeu com o ouro nos 800 metros. Entre o pódio na Inglaterra e o desembarque no Brasil, bateu onze vezes o recorde mundial. Disse dela Michael Phelps: “Katie é uma nadadora forte e com metas muito bem definidas. Nada quase como um homem”. Soa machista, mas é assim mesmo. Bem mais rápida que suas colegas, ela passou a praticar na raia dos rapazes. Ali aprendeu a reproduzir a sincronia das braçadas, uma mais longa, outra mais curta e rápida — que chama de “galope” e descreve como “não tão bonitas, mas eficientes” —, e a potência das pernadas (veja o quadro acima). Nas eliminatórias para o Rio, seus tempos em algumas modalidades seriam suficientes para incluí-la na equipe masculina.

Filha de uma dona de casa e de um advogado com diploma das universidades de Harvard e Yale e com alto padrão de vida, Katie teve formação católica e estudou em boas escolas. Como até hoje não dispôs de tempo para tirar a carteira de motorista, é a mãe, Mary Genevieve, ou o pai, David, filho de imigrantes checos, que a leva para os treinos, às 4h25 da manhã. Às 5 horas, está na água, e lá permanece por quatro horas (além de uma na academia), seis dias por semana. “Ela não passa muito tempo em terra”, brinca o pai.

Entenda por que a nadadora americana é considerada o maior fenômeno da natação desde o multimedalhista Michael Phelps

Em terra, Katie é uma menina tranquila, que troca mensagens de texto com as amigas e não segue nenhuma dieta especial. Não tem namorado e, nestes meses que precedem os Jogos Olímpicos, saiu muito pouco de casa. Geralmente dorme às 21h30. Terminou o ensino médio em meados de 2015 e tem matrícula certa, além de uma bolsa de estudos, na Universidade de Stanford, na Califórnia. Como boa nativa dos arredores de Washington, manifesta grande interesse por política e pensa em estudar ciências sociais, mas adiou a faculdade por um ano para se dedicar aos Jogos.

Abrir mão da vida normal de adolescente não parece abalá-la. Katie jamais se queixou da dura rotina. “Sempre fui de estabelecer objetivos, desde criança”, disse em entrevista recente. “Há três anos, eu me sentei com meu técnico e traçamos as metas até 2016.” Seus objetivos são ambiciosos, e só um desastre monumental e histórico a afastará da glória na Barra da Tijuca.

Reportagem: Maria Clara Vieira
Edição de vídeo: Lucas Mariano
Locução: Maria Carolina Maia
Design e programação: Alexandre Hoshino, André Fuentes e Sidclei Sobral