Para os amantes da arte, viajar pelas cidades europeias é sempre uma ótima oportunidade para desfrutar da oferta aparentemente ilimitada de obras-primas que seus museus têm a oferecer. E, como bem provam as longas e incômodas filas de museus como o Louvre, não são apenas aficcionados que correm aos museus para apreciar-lhes o patrimônio artístico: turistas de toda sorte estão de acordo com o connoisseur. Visitar Paris é, também, ir ao Louvre e apreciar os Escravos de Michelangelo e a Mona Lisa de Leonardo da Vinci.
Para aqueles que estiverem em terras europeias nas próximas semanas, no entanto, vale a pena ficar atento aos últimos dias das grandes exposições da primavera do hemisfério norte que começam a chegar a seu fim. De retrospectivas a mostras temáticas, o visitante encontrará ocasião para conhecer novas obras, apreciar as conhecidas sob outra luz e até mesmo descobrir novos museus para seu roteiro de viagens.
Este é, aliás, o caso do Museu Jacquemart-André, em Paris. A mansão que pertenceu ao casal da aficcionados colecionadores da arte italiana do renascimento, apesar de ser um endereço menos popular entre os visitantes da cidade, oferece uma das experiências parisienses mais gratificantes que se possa imaginar. Além de seu acervo de escultura e pintura italianas, que inclui Gian Lorenzo Bernini e Vittore Carpaccio, o museu abriga, até 20 de julho, a esplêndida exposição As paixões de Roberto Longhi: de Giotto a Caravaggio. Aqui o visitante tem a rara oportunidade de apreciar o desenvolvimento da pintura italiana desde Giotto, com seus belos São João Batista e São Lourenço, a Caravaggio, com seu Rapaz mordido por um lagarto, entre outras obras máximas que raramente veríamos assim reunidas. Além da sensação de visitar um pedacinho da Itália no coração de Paris, saímos todos tocados pelo inusitado da própria história da arte, pois muitos dos quadros ali expostos, hoje tidos como criações máximas da pintura ocidental, só ingressaram no nosso repertório graças aos estudos de Longhi, há poucas décadas.
Endereço bastante mais conhecido do turismo de arte em Paris, o Grand Palais é notório pela organização de retrospectivas muito completas e elogiadas de artistas de gênio. Desta vez é Diogo Velázquez, nome máximo do chamado “século de ouro”, que presta sua visita aos parisienses e torna a capital dos franceses mais espanhola (em cartaz até o dia 13 de julho). Certo, não vemos As meninas, possivelmente um dos quadros mais famosos de todos os tempos e atração do Museu do Prado, mas aqui estão inúmeras obras daquela coleção, como A forja de Vulcano, além de outras peças de rara beleza de outros acervos europeus, como A túnica de José e a muito célebre Vênus ao espelho.
Mesmo visitando o mais conhecido museu do mundo, o Louvre, é possível desfrutar de experiências novas e surpreendentes. O visitante que quiser variar seu menu no Louvre pode optar pela excelente exposição Poussin e Deus, que entra em seus últimos dias em cartaz esta semana (até 29 de junho). Nome máximo do barroco francês, Nicolas Poussin é conhecido do público brasileiro pelo seu Himeneu Travestido Assistindo a uma Dança, parte do acervo do MASP. Na atual exposição parisiense, no entanto, o espectador vê toda a técnica e todo esmero formal do pintor a serviço dos temas religiosos e da fé. Pintor de temas clássicos, como Orfeu e Eurídice (presente na exposição) e de paisagens impressionantes, como o ciclo das Quatro Estações (também exposto), vemos aqui a força impressionante que esse pintor frequentemente tido por demasiado intelectualista e técnico foi capaz de imprimir em seus quadros religiosos — a maioria de sua produção, em verdade. A surpreendente Anunciação, que consegue a façanha de representar por meio de imagens um conceito e um milagre, o momento da imaculada conceição de Maria, talvez somente seja superada pela beleza pungente da Lamentação sobre o Cristo morto.
Quem perder a impecável retrospectiva Giorgio Morandi 1890-1964, no Complesso Vittoriano até este final de semana, ainda encontrará um pouco da singela e tocante transcendência que se revela nas garrafas, nos bules e nas flores do pintor no Museu do Vaticano na própria capital, que, como já era o caso com Paris, reserva uma quantidade de tesouros ímpares a seus visitantes. “Roma, uma vida não basta”, diz um famoso bordão italiano a respeito da Cidade Eterna. É , de fato, impossível dar conta de toda a grande beleza que a capital tem a oferecer. Das ruínas da Roma dos césares e dos imperadores ao esplendor incomparável de suas igrejas católicas, a arquitetura e a arte falam o idioma da história e da civilização, e quase não respiramos outra coisa. São justamente as maravilhas do barroco romano, aliás, expressas de maneira ímpar no serviço de propagar a fé católica, que estão em exibição no Palazzo Cippola, na mostra Barroco em Roma. A maravilha das artes. A mostra, em cartaz até 26 de julho, reúne obras dos principais museus romanos, além de oferecer visitações guiadas por um verdadeiro circuito na cidade que nos permite apreciar lugares raramente acessíveis, como a Cappella dei Re Magi, obra do arquiteto barroco Francesco Borromini, acrescentando ainda ao barroco romano — uma criação que devemos essencialmente ao gênio de Gian Lorenzo Bernini — obras com o Busto de Constanza Bonarelli e os desenhos para outros importantes projetos de Bernini, como o Êxtase de Santa Teresa, sua obra máxima — restaurada e em pleno esplendor na Igreja Santa Maria della Vittoria. De fato, uma vida não basta.
Possivelmente o artista mais difícil de apreciar em uma exibição é também um dos nomes mais celebrados da história da arte. Leonardo da Vinci 1452 - 1519, a exposição que o Palazzo Reale de Milão mantém em cartaz até o dia 19 de julho, dá mostras disso. Ao longo de todo o percurso da mostra, acompanhamos inúmeros desenhos, estudos e manuscritos do gênio italiano, trazidos da coleção da Rainha Elizabeth e do British Museum, na Inglaterra, além de alguns outros empréstimos de instituições italianas. Perseguimos a formação de Leonardo como pintor também através das lentes de seus contemporâneos, como Sandro Botticeli e sua Fortitude e o impressionante Gonfalone com Pietà, de Perugino. As obras do próprio da Vinci, no entanto, são poucas, todas vindas do Museu do Louvre, como o Retrato de mulher e o São João Batista.
O mesmo Palazzo Reale reserva um agradável e singela surpresa ao visitante que vai entusiasmado ver o seu Leonardo da Vinci. Trata-se da exposição O Príncipe dos Sonhos, em cartaz até 25 de agosto na cidade. Essas obras-primas da tapeçaria renascentista realizadas por Pontormo e Bronzino para a família Médici, de Florença, contam a história bíblicaa de José e seus irmãos, com detalhes narrativos dignos da grande pintura e que acabam de ganhar frescor após excelente trabalho de restauração.
O British Museum de Londres é o lar de algumas das mais belas peças gregas que conhecemos. Tradicionalmente já podemos acorrer ao museu para passar algumas horas na companhia dos Elgin Marbles, as obras que ornavam os frisos do Partenon de Atenas e que foram compradas e trazidas para Londres no século XIX pelo então embaixador inglês, Lord Elgin. Até o dia 5 de julho, no entanto, o visitante pode aproveitar ainda e ver parte desse magnífico acervo do museu ao lado de outras obras primas, como o Apoxyomenos croata e o Torso do Belvedere na exuberante mostra Definindo a beleza - o corpo na arte da Antiguidade grega. A escultura grega e romana em seu esplendor, quer no retrato do corpo humano, buscando descobrir-lhe uma perfeição matemática, quer na representação sublime dos deuses, oferece ao espectador um olhar único sobre a origem mesma de nossas concepções de beleza e perfeição.
Roberto Longhi chegou a se perguntar, quando jovem, em tom exaltado, “que direito tem a pintura de se dizer italiana?”. A pintura, segundos ele, não pertencia a um território: seu ambiente era o das formas, das cores, dos traçados que fazem de um quadro o que ele é, que lhe conferem a beleza que nele apreciamos. A tese era radical, mas todos nós experimentamos um pouco essa sensação ao ver os grandes mestres renascentistas italianos na National Gallery, em Londres, ou ao ver a esplendorosa pintura holandesa no Louvre, em Paris. Pouco nos importa a nacionalidade dos artistas — desfrutamos das cores, das formas, dos volumes e dos traçados que são a matéria da composição das obras que aprendemos a amar e ganhamos com a experiência de as ver em contraste com outras obras de matrizes distintas.
Ao visitarmos essas exposições em que não apenas grandes pintores estão deslocados de seus contextos nacionais (o espetáculo espanhol de Velázquez ou a força italiana de Caravaggio em Paris), mas também retirados de seus ambientes mais convencionais (o museu ou a coleção a que tradicionalmente pertencem), temos também um ganho dessa espécie. Ao vermos um quadro em novo espaço, cercado de outras obras que conversam com ele uma outra conversa, temos realmente uma nova experiência.
Arriscaria dizer ainda mais: não são apenas os artistas e seus quadros que nos parecem mudados com essa experiência. É a própria cidade que visitamos que nos parece outra. Londres é outra ao receber o Torso do Belvedere, como Paris é outra quando abriga A Infanta Margarita de Velázquez. E também nós saímos outros dessa experiência.