A Guernica de 2016
O balanço retrospectivo de VEJA sobre o ano mais longo de nossa vida, as quatro capas da revista e a simbologia desse estupendo manifesto de Picasso contra a barbárie
Pablo Picasso recebera a encomenda para pintar algo que a Espanha republicana pudesse expor na feira mundial de Paris que seria aberta em maio de 1937. Passavam-se os dias, as semanas, e Picasso trabalhava sem inspiração. Até que uma notícia dramática chegou: em plena guerra civil, a pedido dos nacionalistas espanhóis, a cidade basca de Guernica, no norte da Espanha, fora bombardeada por aviões alemães com o objetivo explícito de atingir a população civil. Aos poucos, a revelação da catástrofe espalhou-se e chocou o mundo. Picasso, escandalizado, encontrou seu tema para a exposição de Paris. Pôs-se a trabalhar imediatamente e não demorou a concluir Guernica, esse estupendo manifesto contra os horrores da guerra e a barbárie fascista.
Oitenta anos depois, VEJA foi ao mural de Picasso para buscar a inspiração da capa desta retrospectiva de 2016, este que parece ter sido o ano mais longo de nossa vida. Com essa ideia na cabeça, o diretor de arte da revista, Rafael Costa, encomendou ao ilustrador Eco Moliterno uma paródia de Guernica, povoada pelos personagens mais marcantes do ano. Em vez de cavalos, touros e mulheres chorosas em meio a um sofrimento excruciante, a ilustração traz o fim fulminante de Dilma Rousseff, o triunfo assustador de Donald Trump, a ascensão de Michel Temer, o desespero incontido de Eduardo Cunha, Luiz Inácio Lula da Silva e Anthony Garotinho — e uma lágrima no rosto de todos os que morreram no ano.
Guernica, pintada por Pablo Picasso em 1937
Moliterno dispôs a cena no mesmo formato horizontal que Picasso adotou, mas, como a capa de VEJA é mais vertical, apresentou-se um impasse: como manter toda a narrativa da obra original, indo do grito agônico da mulher à esquerda até o desespero retratado na figura mais à direita? A solução, engenhosa, foi fatiar a ilustração em quatro capas, que, colocadas lado a lado, compõem a imagem completa. O resultado pode ser visto na reprodução acima. O leitor, em visita à banca de revistas, poderá escolher qual das capas prefere levar para casa.
A Guernica de 2016 pareceu a VEJA uma síntese adequada para um ano que também nos apresentou os horrores da guerra, como mostraram as imagens dramáticas do cerco a Alepo, na Síria, e a sucessão interminável de atentados. Mas, para além das catástrofes bélico-terroristas, a paródia de Guernica remete às disputas renhidas no Brasil, com seu rastro de ressentimento e ódio, e às inquietudes universais sobre o futuro do planeta, diante da eleição de Trump e do avanço da direita populista na Europa, com seu rastro de isolacionismo, preconceito e intolerância.
Há, porém, outro motivo. Guernica, com sua paleta em preto, branco e cinza, com seu tom documental, como se fosse a primeira página de um jornal ou uma tela de cinema, talvez seja uma das últimas obras de arte moderna a conter referências políticas tão evidentes e, ao fazê-lo, conseguir interferir no debate público a ponto de mudar o discurso político. Com o avanço da tecnologia no último meio século, a pintura e a escultura deixaram de ter a potência política. E, no momento em que o Brasil e o mundo parecem se inclinar perigosamente para o desprezo à política e aos políticos, Guernica pode nos lembrar de que não há saída democrática fora da política.
À apresentação gráfica desta edição segue-se um material editorial de primeira qualidade, como o leitor poderá conferir ao longo das próximas páginas. Um conjunto extraordinário de reportagens preparadas pela equipe de VEJA e de artigos escritos por personalidades brasileiras e estrangeiras ajuda a pensar o significado de 2016 e projetar um pouco sobre o que serão o Brasil e o mundo daqui para a frente. O leitor poderá apreender o espírito que perpassa todas as páginas desta edição retrospectiva — o de que vivemos tempos absolutamente extraordinários.
Veja abaixo todos os personagens da capa