Amazônia em 360 graus

Por terra, céu e água, os vários ângulos da floresta registrados pelo fotógrafo Paulo Vitale

Quando a mata começa a silenciar, às 21 horas, o guia Josué Basílio, 43 anos, neto de índios da etnia tukano, pede silêncio ao grupo de turistas que se encontra em dois pequenos barcos próximos à margem esquerda do rio Jauaperi, afluente do Negro, na divisa entre os Estados do Amazonas e Roraima.

Em pé na proa, Josué emite grunhidos que se assemelham ao som de um sapo. Segundos depois, ouvimos um barulho semelhante vindo de um igapó, a mata alagada, sucedido por outro mais alto e rouco, um pouco distante.

“O primeiro é um jacaré-açu pequeno, e o segundo é bem grande, deve ter uns 6 metros”, atesta Josué, que logo rema em direção ao local de onde veio a primeira resposta.

Para surpresa dos turistas americanos, italianos e brasileiros, ele desce do barco, caminha lentamente com água pela cintura e captura com as mãos o réptil de um metro para mostrá-lo aos visitantes boquiabertos.

Imagem interativa em 360 graus: toque, aproxime e arraste em qualquer direção

A famosa imagem

Vista de cima, a Amazônia revela a sua face mais conhecida: o verde a perder de vista. O rio serve de referência quando o barco vira apenas um ponto branco nas águas escuras que rasgam a imensidão da floresta. Do alto, só se vê as copas das árvores, não se enxerga a terra firme. O contraponto é mais claustrofóbico. Do chão, dentro da mata, não vemos o céu.

Herança dos índios

O sinal de celular se perde após 500 metros de navegação. Na labiríntica selva amazônica, o turismo precisa de um barco e guias nativos como Josué, que carregam apenas um facão e muito conhecimento herdado dos índios para traduzir o que nossos olhos não enxergam. Num inglês funcional, ele fala sobre as formigas tocandeiras, que dão ferroadas extremamente doloridas e são usadas em rituais de iniciação masculina por algumas tribos. O guia também dá aulas para não passar apuros na mata, demonstrando tudo na prática.

Um corte num cipó d’água ajuda a matar a sede. O gosto lembra água de coco.

A melhor forma para disfarçar o cheiro humano para não atrair animais é colocar a mão em um formigueiro de tapibas, esperar que os insetos cubram a pele e, depois, esfregar as mãos.

Larvas que vivem dentro dos frutos de palmeiras inajá fazem as vezes de petiscos — saborosos, por sinal.

Na hora de fazer fogueira, escolha os galhos secos e pedaços de tronco de breu branco, cuja resina mantém o fogo aceso por horas.

Mergulho no escuro

O leito escuro do rio Negro provoca uma sensação ambígua de bem estar e de medo. Protegidos pelo banco de areia, com água na cintura, podemos enxergar nossos pés, mas uma correnteza significativa e a imensidão turva que nos cerca, habitada por piranhas, arraias, jacarés e botos, que sobem de vez em quando para respirar, evidenciam a nossa fragilidade.

Nos afluentes, uma experiência improvável quando se pensa nas águas amazônicas: é possível desfrutar de cachoeiras, como as do rio Pauini. Não são altas, mas possuem um enorme volume de água. O medo de ser arrastado pela força da correnteza é grande, mas o efeito de hidromassagem natural vale o risco.

Segredos escondidos

Em terra firme, seguimos por uma hora em fila indiana, embaixo de chuva, com olhos e ouvidos atentos até as grutas do Madadá, um conjunto rochoso formado por blocos de arenito de vários tons no Parque Nacional de Anavilhanas.

No trajeto encontramos uma enorme sumaúma de mais de 50 metros — e provavelmente mais antiga do que o descobrimento do Brasil

De acordo com o guia, o batuque nas raízes expostas destas árvores, que ecoa por longas distâncias, servia como meio de comunicação pelos índios.

Perto dali, as ruínas do que foi a cidade Airão Velho compõem um cenário fantasmagórico. Engolido pela mata, o esqueleto do vilarejo criado no século XIX nos dá uma ideia da pujança da época áurea do ciclo da borracha, que não existe mais. Hoje o local é habitado por um único morador, o eremita japonês Shigeru Nakayama, que se mudou para lá após a morte de sua companheira.

Prêmio embaixo de chuva

Para avistar animais selvagens nas margens dos igarapés — os riachos que fazem as vezes de estrada — precisamos sair muito cedo, às 5h30, a bordo de uma voadeira, pequeno bote com motor. Naquele dia, debaixo de uma chuva pesada, o prêmio demora, mas aparece: uma família de macacos de cheiro, composta por uma dúzia de animais, cruza árvores ao nosso lado em fila indiana. Mais a frente, um grupo de ariranhas bate em retirada. Dois machos adultos nos desafiam com saltos e bocas abertas antes de desaparecer na mata.

Nos dois casos, Josué ouviu o som dos animais antes de avistá-los. A floresta é ruidosa e saber interpretá-la exige um conhecimento profundo. Ele mostra, por exemplo, uma antiga técnica para atrair pássaros.

A fricção de uma folha de inajá na lâmina de um facão ou em uma pedra lisa emite um som semelhante ao canto das aves. O que antes era usado para garantir comida, hoje é usado para avistar tucanos.

Macacos de cheiro é avistado no passeio

Ariranhas desafiam os turistas

Contemplação de aves, como o tucano, faz parte do roteiro

O turismo salvou o jacaré

Acostumado a comer os restos de peixe jogados no rio pelos pescadores, um jacaré-açu se aproxima assim que escuta as batidas do facão cortando as cabeças da pesca do dia. Com o passar do tempo, este ritual virou atração turística na pequena comunidade do Xixuaú, que fica dentro da reserva Extrativista Baixo Rio Branco, no Estado de Roraima. O ato é simbólico. Tidos como inimigos da pesca e um perigo para as crianças, os répteis foram e são mortos com frequência. Ao atraírem turistas, os bichos ganham aliados, como os seis moradores que nos levaram para passear nos igarapés.

Os defensores

O escocês Paul Clark e sua mulher, a italiana Bianca Bencivenni, trocaram uma confortável vida na Europa para viver numa casa de palafita às margens de um igarapé do rio Jauaperi. O local fica dentro da reserva Baixo Rio Branco, com 580.000 hectares, criada em 2018 depois de duas décadas de batalhas jurídicas.

Para enfrentar a cultura predatória incutida em algumas famílias da região, que vivem em comunidades afastadas, eles montaram em 1998, em seu quintal, uma escola de ensino fundamental, a Vivamazonia.

“As crianças aprendem sobre a importância da preservação, mas em casa são frequentemente confrontadas por alguns pais que tem outra visão”, conta Clark, que já recebeu ameaças de morte, apagou incêndios criminosos, viu tartarugas servirem de prêmio em partidas de futebol, mas segue engajado.

Além da escola, coordena um programa de proteção de quelônios, que desde 2014 remunera ribeirinhos pela coleta e monitoramento dos ovos dos animais — apesar dos esforços, a da expansão do número de praias de coleta, a quantidade coletada em cada local vem caindo ano a ano.

Paul Clark e Bianca Bencivenni recebem turistas na escola que montaram no meio da floresta

O casal também coordena um projeto para proteção de tartarugas

O porto

A imersão pela floresta amazônica faz parte de inúmeros passeios, que movimentam o turismo local. Uma das rotas mais exclusivas — que promete encontros com animais selvagens sem abrir mão de um iate com cabines climatizadas — parte de Novo Airão, a 195 quilômetros de Manaus. Com 18.000 habitantes, o município começou a mudar em 2012 com a inauguração de uma ponte sobre o rio Negro, em Manaus, que permite o acesso à cidade a partir da capital sem o uso de balsas, o que torna a viagem mais rápida.

O novo porto, floresta a dentro, redesenhou as fronteiras turísticas da região ao levar os viajantes mais longe na Amazônia.

No município, a principal atração turística é o Flutuante dos Botos. O local abrigava a família de Marilza Medeiros, que tinha por hábito dar peixe aos mamíferos aquáticos que passavam por perto.

Com o passar do tempo, o lugar começou a atrair curiosos e turistas e hoje virou referência para observação e integração com botos cor-de-rosa.

Os animais vivem na natureza, mas assim como o jacaré-açu de Xixuaú, vêm se alimentar pertinho. Mas, neste caso, podemos até tocá-los.

Ar-condicionado na selva

Novo Airão é banhado pelo rio Negro, segundo maior em volume de água do mundo (atrás apenas do Amazonas). Seu ph muito ácido, que impede a proliferação de mosquitos, e suas águas tranquilas pontuadas por praias permitem uma navegação suave e contemplativa. Essa receita impulsiona os cruzeiros de luxo e os hotéis de selva da região, que atraem muitos estrangeiros e alguns brasileiros. Ao lado de sócios locais, o empresário paulistano Ruy Tone montou um hotel e dois barcos de cruzeiro, o Jacaré-Açu e o Jacaré-Tinga.

Feitos com madeira de lei certificada e tecidos de fibras naturais, as embarcações foram desenhadas para não destoar da natureza

Viajamos no Jacaré-Açu, que em três andares acomoda oito cabines (com ar-condicionado, lençóis com algodão egípcio e travesseiros de pluma), salas de refeições e de convivência, um deque aberto com redes e até um pequeno cinema. Os guias bilingues são moradores locais, que foram treinados para o trabalho. No cardápio, pato no tucupi, caldeirada de tucunaré, pirarucu e pacu, entre outros pratos típicos. Tudo incluso no pacote, que varia 7.610 reais a 12.960 reais por oito dias de viagem.

Jacaré-Açu: oito cabines em três andares

Cabeça de jacaré esculpida na proa do barco

Sala de refeições do Jacaré-Açu

Sala de convivência do barco com vista panorâmica do passeio

Roteiro

Serpenteamos o rio Negro e seus afluentes Jaú, Jauaperi, Pauini e Carabinani. O trajeto de 650 quilômetros passa pelos gigantescos parques de Anavilhanas e Jaú, além da Reserva Extrativista Baixo Rio Branco, em Xixuaú, Roraima.

Vídeo interativo em 360 graus: arraste em qualquer direção


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Captação de imagens com Samsung Gear 360º

Os donos da mata

A viagem oscila entre o conforto do Jacaré-Açu e incursões floresta adentro. A tranquilidade de contemplar a distância a mata ribeirinha, botos e pássaros dá lugar à aventura quando saímos em pequenos botes para as expedições pelos igarapés.

Numa das noites surge a oportunidade de trocar a cabine climatizada por uma rede em terra firme, no Mirante do Madadá, uma choupana isolada no parque de Anavilhanas, sem paredes e a 50 metros da margem, no alto de um morro.

Metade dos participantes não desembarcou.

Outros foram desistindo ao constatar que caranguejeiras enormes circulavam serenamente pelo local. É uma demonstração de força sutil e silenciosa, mas que atesta quem de fato manda na floresta.

Fotos: Paulo Vitale
Design e programação: Alexandre Hoshino, André Fuentes e Sidclei Sobral